O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 13 de agosto de 2016

Jonas Kaufmann com Helmut Deutsch no Brasil

O tenor alemão Jonas Kaufmann veio ao Brasil, pela primeira vez, com o pianista Helmut Deutsch para um recital na Sala São Paulo no último 10 de agosto. Uma grande estrela da ópera, veio, no entanto, interpretar canções de câmara.
Já vi pessoas confundindo esses gêneros, mas as exigências são diferentes. Para um cantor de ópera, o repertório de câmera, que exige um canto mais íntimo, em que a restrição dos meios é tão importante, pode ser vocalmente muito desconfortável. Vejam a diferença entre cantar a "Ave Maria" de Schubert, no original (ou seja, em alemão e com piano) e uma cena de ópera; no caso, A Valquíria, de Wagner, com uma orquestra possante, nos dois casos, com Jessye Norman;
Schubert: https://www.youtube.com/watch?v=do5ZmQQM8AE
Wagner: https://youtu.be/vb_g8GXrZPc?t=1m15s
Vejam que não é realmente o mesmo uso da voz; um cantor pode ser adequado para a música de câmera e não para ópera, e vice-versa. Ademais, ao contrário da canção de câmara, muitas vezes, em ópera, a palavra é bem menos importante do que a música; veja-se o final d'As bodas de Fígaro, de Mozart (exemplo do Joseph Kermann em A ópera como drama), momento em que o libreto (de Lorenzo dal Ponte) não tem valor poético algum, e é a música que transfigura tudo.
Mas pode-se escolher este outro exemplo da mesma ópera; as cantoras (Renée Fleming e Cecilia Bartoli) repetem as mesmas palavras, é a música que sustenta o interesse: https://www.youtube.com/watch?v=BLtqZewjwgA
Dito isso, o libreto das Bodas é maravilhoso. Essas repetições ajudavam, claro, o público a entender o texto e tinham valor mnemônico.
Já a canção de câmera é, em geral, feita a partir de poemas; nem sempre os melhores, mas poemas (muitos dos maiores poetas foram musicados: Celan, Heine, Baudelaire, Goethe...). Nem sempre o cantor de ópera possui o tipo de sensibilidade para a palavra específica para a canção de câmera.
Alguns cantores conseguiram fazer coisas excelentes nos dois campos; creio que é o caso de Dietrich Fischer-Dieskau; também é o de Hermann Prey. Entre os tenores, o falecido Ernst Haefliger, schubertiano, bachiano e mozartiano, foi um exemplo e, com uma voz muito diversa (é só comparar ambos cantando o Florestan...), Jonas Kaufmann também é um caso de sucesso. O pianista Helmut Deutsch, que o acompanhou, é um dos grandes pianistas atuais do Lied (a canção de câmera germânica) e já gravou discos com o tenor.

Parecia claro que o recital seria de altíssimo nível; os ingressos estavam esgotados há muito, mas ainda vi quem tentasse, no dia, achar alguma entrada. Não sei que valores atingiram no mercado paralelo.
O programa do recital foi basicamente composto por canções muito conhecidas: "Der Musensohn", de Schubert, "Stille Tränen", de Schumann, "L'invitation au voyage", de Duparc, "Cäcilie", de Richard Strauss... Os Três Sonetos de Petrarca, de Liszt, com sua escritura vocal operística, nesse contexto, eram o momento mais interessante, talvez. Trata-se, porém, do que Kaufmann geralmente canta fora da ópera. Pode-se verificar em outros programas dele seu repertório habitual, como este do Carneggie Hall, em que o Liszt e alguns dos Lieder de Richard Strauss são os mesmos, ou este no Metropolitan Opera House, com alguns dos Duparc e dos Richard Strauss ouvidos aqui.
Isto é, ele não é um expoente do repertório contemporâneo (creio que não o veremos gravar Rihm, por exemplo). Nesse ponto, talvez ele esteja realmente submetido ao star system do mundo lírico - seu próximo disco, que sairá em outubro, trará aquelas músicas napolitanas que os tenores gravam desde Caruso, chegando ao repertório de Andrea Bocelli (dito isso, gosto muito de "Musica proibita"). Com outros cantores, como Christian Immler, Helmut Deutsch grava Schreker, Eisler, Wilhelm Grosz...
Trata-se, porém, de um tipo legítimo de artista e, como Kaufmann fez tudo excelentemente, não há por que reclamar. O primeiro bloco do recital em São Paulo, dedicado a Schubert, teve um ligeiríssimo desencontro entre tenor e pianista no primeiro Lied, "Der Musensohn", que soou como aquecimento. No terceiro, porém, "Der Jüngling an der Quelle", a beleza dos pianíssimos encantava; ouçam esse Lied com os mesmos artistas em outra ocasião: https://www.youtube.com/watch?v=Cs6EPriC4c0
Ele fechou o Schubert com "Der Lindenbaum", do ciclo Die Winterreise, que Kaufmann gravou completo com Helmut Deutsch. Dessa interpretação, destacaria a segurança vocal do cantor: uma frase grave como "Ich wendet mich nicht" soou perfeitamente clara, o que não é fácil para um tenor: https://youtu.be/ErKUhoSYp2U?t=2m39s
A seleção de Schumann foi ainda melhor, pois propiciou mais variedade expressiva e oportunidades para Helmut Deutsch brilhar. O tenor foi particularmente eloquente em "Frage" e em "Stille tränen", em que ele e o pianista mostraram um controle notável da dinâmica. O agudo pianíssimo em "durch die Au" contrastou com o forte em "oft mancher aus dem Schmerz", emitido com a voz perfeitamente colocada. Os detratores do tenor alemão criticam a suposta falta de harmônicos da voz dele, mas o que constatei foi bem oposto: na frase forte, o som de Kaufmann era tão rico e pleno que fiquei momentaneamente desnorteado, o que nunca me havia ocorrido.
Cantando Duparc, o tenor novamente destacou-se pela suavidade. "L'invitation au voyage" teve um brevíssimo engano no poema de Baudelaire (no verso "Les soleils mouillés"), embora tanto o tenor quanto o pianista estivessem com partitura; ele cantou ainda mais docemente do que na gravação que indiquei no youtube. Em "Chanson triste", o agudo pianíssimo do tenor em "mon amour, quand tu berceras" foi de chorar (ainda melhor do que na gravação que achei na internet); depois, veio a ternura de "Repose, ô Phidylé", da última canção escolhida de Duparc, "Phydilé".
Após o intervalo, Liszt e Richard Strauss. O tenor parecia um pouco cansado; não sei se havia chegado ao Brasil pouco tempo antes da apresentação. Os Três Sonetos de Petrarca, de Liszt, cheios de pianissimi do tenor, como nunca ouvi antes, sofreram levemente com a instabilidade do agudo; quando ele tentava fazer um crescendo, a nota podia oscilar; mantiveram-se firmes, porém, as finas intenções do intérprete.
No Richard Strauss, a variedade dos humores das canções escolhidas foi interpretada magnificamente pelo duo: a ironia de "Wozu noch, Mädchen", a paixão de 'Heimliche  Aufforderung", foi tudo excepcional, especialmente "Ich liebe dich". Ele encerrou com a enfática "Cäcilie", provavelmente por causa do agudo retumbante na frase final.
O primeiro bis, "Ach weh mir unglückhaftem Mann", outro Lied de Richard Strauss, foi magistral; Kaufmann estava completamente em casa. Depois, cantou uma sombria ária da ópera Adriana Lecouvreur, de Cilea, "L'anima ho stanca", que é uma ária de tenor que exige bastante do centro e do grave - não se trata de território para Pavarotti, mas de Mario del Monaco e Franco Corelli, e Kaufmann gravou-a muito bem no seu disco de árias veristas, e assim ele soou em São Paulo.
O terceiro bis levou a plateia ao delírio: era mais ópera, "Recondita armonia", da Tosca de Puccini; o tenor estava sendo generoso (a frase "costei il mio solo pensiero" mostrou que ele estava cansado), e foi ainda mais, no quarto bis, ao cantar em português "Azulão", de Jaime Ovalle e Manuel Bandeira. Na segunda metade, ele atacou lindamente o "vai" agudo. Ele cantou ainda "Ombra di nube", de Refice, com uma dicção claríssima. Depois desses cinco números, voltou com Deutsch apenas para mandar um beijo para a plateia.
Enfim, tínhamos as três línguas do repertório usual deste tenor: o alemão, o francês e o italiano. Uma das marcas de Kaufmann é a de conseguir destacar-se em papéis nos três idiomas. Lembro que em uma transmissão de ópera do Metropolitan opera House pelo cinema, foi ressaltado que, naquele teatro, somente dois tenores, ele mesmo e Plácido Domingo, haviam cantado estes dois papéis bem diferentes: o Fausto de Gounod (um tenor lírico), e o Siegmund d'A Valquíria, de Wagner (tenor dramático). Kaufmann, provavelmente orgulhoso do próprio feito, replicou que ele tinha interpretado ambos na mesma temporada... Domingo cantou-os com mais de dez anos de diferença (o cantor alemão poderia ter acrescentado que ele cantava o dó agudo da ária "Salut, demeure" do Fausto, ao contrário do espanhol...).
Mas é claro que importante não é o que ele canta, e sim como o faz. Quando ele interpreta Alvaro d'A força do destino, de Verdi (só para citar um exemplo da área em que ele é mais contestado, a ópera italiana), ele encontra nuances que os italianos (até mesmo Carlo Bergonzi) nunca suspeitaram; vejam o início de "O tu che in seno agli angeli", que se torna verdadeiramente uma evocação de uma alma nos céus: https://youtu.be/P7QHE97iVN4?t=4m11s.
Troco a "voz italiana" pela musicalidade de Kaufmann, formada, como ele mesmo diz, na canção. Para ver como essa formação favoreceu-o em ópera, sugiro ver este bis de concerto recente com Daniel Barenboim na regência e no piano: ele canta a "Canção da primavera", uma ária (pode-se assim dizer) do personagem Siegmund, d'A Valquíria (papel em que ele hoje talvez seja o melhor, e que já gravou em disco com Gergyev  e em dvd com Levine) e, depois, um dos Wesendock Lieder, ambos de Wagner. Um mestre cantor.

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