O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 31 de julho de 2016

Desarquivando o Brasil CXXVI: O AI-5 dos estrangeiros, ainda em vigor

Na gestão de Aloizio Mercadante à frente do então Ministério da Educação, o governo federal já tinha adiantado que seria bom que o físico franco-argelino Adlène Hicheur deixasse o Brasil. Condenado em 2012 na França por trocar mensagens com um membro da organização jihadista Aqmi, ele veio ao Brasil em 2013, depois de cumprir a pena. Passou a trabalhar como professor visitante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em janeiro deste ano, a revista Época revelou que ele estava sendo vigiado pelo Abin. Naquela ocasião, colegas da Física manifestaram seu apoio a Hicheur;
A. Hicheur veio ao Brasil para realizar um pós-doutorado no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) por sugestão do coordenador do experimento LHCb e com 3 cartas de recomendação, do seu orientador de doutorado e dos diretores do Instituto de Física da Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL) e do Laboratoire d’Annecy le Vieux de Physique de Particules (LAPP). O doutor Hicheur veio ao Brasil de maneira totalmente legal e, como qualquer outro cientista, depois de um estudo detalhado do seu currículo e da avaliação das contribuições que ele poderia trazer para a área no Brasil. Os responsáveis por sua contratação e as autoridades brasileiras responsáveis pela concessão de visto foram informados do seu caso judicial. Após uma produtiva estadia de 2 anos no CBPF A. Hicheur foi contratado pela UFRJ como Professor Visitante. Ele é um dos membros do grupo LHCb-Rio com maior produção, tendo assumido a liderança de vários projetos no âmbito da Colaboração LHCb.
As vozes da comunidade científica, como é praxe, não encontraram eco algum no governo brasileiro, e o físico teve indeferido o pedido de prorrogação da autorização de trabalho no Brasil, neste governo interino de Temer; a publicação é de 15 de julho deste ano, e o despacho do Coordenador-Geral de Imigração é do dia anterior:
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=67&data=15/07/2016
Quando foi deportado, no dia 15, estava no meio de uma conferência virtual e teve uma hora para arrumar suas coisas. A UFRJ soltou nota à imprensa no mesmo dia, afirmando que "Manifestamos extrema preocupação com a ação, anunciada sem apresentação de justificativas claras e atenção a princípios democráticos básicos, como direito à defesa." Vi também o Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior, no dia seguinte, repudiar a deportação de Hicheur.
Pode surpreender que o governo federal, ao menos neste caso, estivesse amparado por lei brasileira. No entanto, a Universidade tem razão em apontar a falta de justificativas e de "princípios democráticos básicos". A norma que fundamentou o governo não os pressupõe, ela faz parte do chamado entulho autoritário: trata-se da lei federal nº 6815, de 19 de agosto de 1980.
A ditadura militar, após o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, que fechou o Congresso Nacional, teve como uma de suas preocupações continuar a reformular o ordenamento jurídico brasileiro segundo as diretrizes da doutrina de segurança nacional. E uma das questões era, sem dúvida, o controle dos estrangeiros (não os das multinacionais, claro; os militares abriram-se para elas, inclusive aceitando cargos  ou verbas dessas empresas, como Golbery com a Dow Chemical); afinal, o próprio comunismo era visto como uma doutrina "alienígena", incompatível com a democracia brasileira, a qual teria encontrado, segundo os ideólogos governistas da época, sua formulação mais fiel nos governos militares.
Tratava-se, na verdade, de expulsar o estrangeiro de esquerda, o que incluía religiosos que atuassem com índios, camponeses e operários. O decreto-lei nº 417 de 10 de janeiro de 1969, específico para "expulsão de estrangeiro", enquadrava-a como ato do presidente da república. Segundo o artigo 1º, ela destinava-se ao estrangeiro que  "atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade e moralidade públicas e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo ou perigoso a conveniência ou aos interêsses nacionais". Ou seja, quando o presidente bem quisesse praticar o ato.
Em se tratando de segurança nacional, o procedimento era sumário:

Art. 2º Em se tratando de procedimento contra a segurança nacional, a ordem política e social e a economia popular, assim como no caso de desrespeito à proibição especialmente prevista em lei para estrangeiro, a expulsão far-se-á mediante investigação sumária, que não poderá conceder, o prazo de quarenta e oito horas.
Parágrafo único. Dispensar-se-á a investigação sumária que quando o estrangeiro houver prestado depoimento em inquérito policial ou inquérito policial militar ou administrativo, no qual se apure haja êle se tornado passível de expulsão.
O inquérito não era, de fato, necessário. A expulsão era um ato discricionário do ditador em plantão;
Art. 4º A expulsão poderá efetivar-se, a juízo do Presidente da República, antes de concluído o inquérito policial, policial militar ou a ação penal a que esteja respondendo o estrangeiro e, na hipótese de condenação, durante o cumprimento da pena.
Com a doença de Costa e Silva, e o golpe dado pelo ministros militares contra o vice, civil, Pedro Aleixo, impedido de assumir a presidência (afinal, se o golpe foi civil-militar, pois as lideranças civis tiveram protagonismo, a ditadura a que ele se seguiu foi militar - as elites civis tinham o papel de apoiar e financiar, mas não de decidir os rumos do país ou do governo), houve uma intensa produção normativa de caráter fortemente autoritário. Nesse momento foi instituída a anômala Constituição de 1969, editada na esdrúxula forma de emenda constitucional em 17 de outubro de 1969, e também o decreto-lei nº 941 de 13 de outubro de 1969. Disciplinava-se o inquérito de expulsão para "o estrangeiro que, por qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou a moralidade pública e à economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo ou perigoso à conveniência e aos interesses nacionais" (art. 73), isto é, do indesejável:
Art. 75. Caberá exclusivamente ao Presidente da República, mediante decreto resolver sôbre conveniência e oportunidade da expulsão ou de sua revogação.
Art. 76. Desde que seja conveniente e interêsse nacional, a expulsão do estrangeiro poderá efetivar-se, ainda que haja processo ou já se tenha efetivado sua condenação.
Art. 77. Os Tribunais e Juízes remeterão ao Ministério da Justiça, de ofício, até trinta dias após o trânsito em julgado, cópia da sentença condenatória de estrangeiro como autor de crime doloso, ou de qualquer crime contra a segurança nacional, a ordem política e social, a economia popular e a saúde pública, assim como da fôlha de antecedentes penais constante dos autos.
Parágrafo único. - O Ministério da Justiça, recebidos os documentos referidos neste artigo, poderá ordenar a instauração de inquérito para a expulsão do estrangeiro.
Art. 78. O Ministro da Justiça, a qualquer tempo, poderá determinar a prisão do estrangeiro submetido a processo de expulsão, no máximo por 90 (noventa) dias, e, para assegurar execução da medida, mantê-la por igual prazo.
Art. 79. Compete ao Ministério da Justiça, de ofício ou mediante solicitação fundamentada, determinar ao Departamento de Polícia Federal a instauração de inquérito para a expulsão de estrangeiro.
§ 1º O inquérito será iniciado mediante portaria da autoridade policial competente.
§ 2º O expulsando será notificado da instauração do inquérito e do dia e hora fixados para o interrogatório, com a antecedência mínima de três dias úteis.
§ 3º Comparecendo o expulsando, será interrogado, identificado, qualificado e fotografado, podendo, nessa oportunidade, indicar defensor.
§ 4º Se o expulsando não o indicar, ou se ocorrer a hipótese prevista no final do parágrafo seguinte, a autoridade processante designar-lhe-á defender dativo, ressalvada a êle a faculdade de substituí-lo a qualquer tempo, por outro de sua confiança.
§ 5º Se o expulsando estiver prêso, será requisitado à autoridade competente e, se não fôr encontrado, será notificado por edital, com o prazo de 10 (dez) dias, publicado duas vêzes, no órgão oficial local, e, em sua falta, em periódico de grande circulação na região, valendo a notificação para todos os atos do processo.
§ 6º Encerrada a instrução do inquérito, abrir-se-á, com o prazo de 5 (cinco) dias, vista ao expulsando e a seu defensor para apresentação de defesa.
§ 7º Se o expulsando, ou o seu defensor, não apresentar defesa, à autoridade processante dar-lhe-á defensor dativo, nos têrmos do § 4º deste artigo, concedendo-lhe nôvo prazo de 5 (cinco) dias.
No entanto, isso ainda não era a expulsão sumária, apesar da exiguidade dos prazos. Ela era prevista nos mesmos casos do decreto-lei 471, que não era explicitamente revogado por este, o 817:
Art. 81. Em se tratando de procedimento contra a segurança nacional, a ordem política ou social e a economia popular, assim como no caso de desrespeito à proibição especialmente prevista em lei para estrangeiro, a expulsão poderá ser feita mediante investigação sumária, que não poderá exceder o prazo de 5 (cinco) dias dentro do qual fica assegurado ao expulsando o direito de defesa.
Em 1971, o caput do artigo 81 foi alterado para abranger o tráfico de entorpecentes:
Art. 81. Tratando-se de infração contra a segurança nacional, a ordem política ou social e a economia popular, assim como nos casos de comércio, posse ou facilitação de uso de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica ou de desrespeito à proibição especialmente prevista em lei para estrangeiro, a expulsão poderá ser feita mediante investigação sumária, que não poderá exceder o prazo de 5 (cinco) dias, dentro do qual fica assegurado ao expulsando o direito de defesa. (Redação dada pela Lei nº 5.726, de 1971)Parágrafo único. Nos casos deste artigo, dispensar-se-á a investigação sumária quando o estrangeiro houver prestado depoimento em inquérito policial ou inquérito policial militar ou administrativo, no qual se apure haja ele se tornado passível de expulsão.
O parágrafo único provavelmente foi criado para aproveitar as declarações obtidas por tortura, dispensando a investigação. No caso do rito sumário, não cabia pedido de reconsideração (art. 82).

Vejam que o Bispo Casaldáliga, de São Félix do Araguaia, com sua forte atuação junto a camponeses e índios, foi ameaçado de expulsão mais de uma vez nessa época, o que gerou forte reação da Igreja Católica, bem como protestos pelo país, como o que o DOPS de São Paulo verificou na Universidade de São Paulo em 26 de setembro de 1975.
O documento ao lado está no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo - Apesp.

A ditadura militar não revogou expressamente, nesse momento, os decretos-lei racistas de Getúlio Vargas: o decreto-lei nº 7.967 de 18 de setembro de 1945. sobre imigração e colonização, que previa, no art. 2º, "Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional."; e o decreto-lei nº 406 de 4 de maio de 1938. sobre entrada de estrangeiros, que previa também no art. 2º, que "O Governo Federal reserva-se o direito de limitar ou suspender, por motivos econômicos ou sociais, a entrada de indivíduos de determinadas raças ou origens, ouvido o Conselho de Imigração e Colonização."

Essas normas somente foram revogadas com o ainda atual Estatuto dos Estrangeiros, do governo Figueiredo.
No entanto, esse projeto da ditadura não foi bem visto e foi apelidado pelos movimentos de anistia de "AI-5 dos estrangeiros".
Em primeiro lugar, essa "lei" não foi votada pelo Congresso Nacional. ele não estava fechado nesse momento específico da ditadura, mas não apreciou o projeto do Executivo porque ele fora enviado em regime de urgência, o que dava ao Legislativo 45 dias para apreciá-lo em sessão conjunta. Com o uso das manobras protelatórias, ele foi aprovado por decurso de prazo, como previa a Constituição de 1969.
Portanto, é só por um abuso institucionalizado da palavra "lei" (norma que é aprovada pelo Legislativo) que ela é empregada no caso do Estatuto, que, na prática, foi um decreto-lei: um ato do Executivo com (tendo em vista a ditadura) força de lei.
O documento ao lado, do fundo do Brasil Nunca Mais, foi produzido pela seção de São Paulo do Comitê Brasileiro pela Anistia, foi consultado no Armazém Memória (lembro que continua sendo tempo para apoiar o Armazém Memória, que lançou financiamento coletivo para digitalizar os documentos secretos da ASI da Funai: http://www.indio-eh-nos.eco.br/2016/07/07/documentos-secretos-da-funai-campanha-amigs-da-memoria-para-inclusao-de-acervo/).
Henfil bem captou o tipo de estrangeiro que não sofreria ameaça de expulsão. O texto do panfleto elenca os motivos principais por que o Estatuto deveria ser repudiado: dissolução da família do estrangeiro com cônjuge ou filho brasileiro (o que acabou sendo modificado, para beneficiar o estrangeiro, pela Lei nº 6964, de 9 de dezembro de 1981), a "delação oficial dos estrangeiros" por hotéis síndicos, imobiliárias, proprietários de imóveis; confinamento de estrangeiros; cassação imotivada e a qualquer tempo do visto de turista.
Os militantes também viam a real motivação do Estatuto: dar instrumentos legais de perseguição aos asilados, banidos da América Latina, coalhada por ditaduras pró-EUA; até a "devolução, pura e simples, dos perseguidos dos Pinochets e Videlas, aos torturadores que os forçaram a procurar outro país".
Segundo reportagem d'O Estado de S.Paulo ("Brasil expulsou mais de mil refugiados no auge da ditadura do Cone Sul", por Jamil Chade, em 3 de novembro de 2002), que havia consultado documentos da ONU, a denúncia estava realmente correta:
No total, 3,3 mil latino-americanos chegaram ao Brasil entre 1977 e 1982 em busca de asilo político e fugindo da tortura. Mas o status de refugiado seria dado para apenas 1380 deles e todos, sem exceção, seriam transferidos pela ONU a locais "seguros" à [sic] pedido do governo brasileiro. Quase 90% deles eram argentinos ou uruguaios.
Nesse momento, a Igreja Católica brasileira protegeu diversos refugiados da perseguição política, por meio da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e de São Paulo. A Cáritas continua exercendo um papel importante no tocante aos refugiados.

O Estatuto dos Estrangeiros estava sendo imposto no contexto de aproximação das ditaduras militares do Brasil e da Argentina. Videla visitava o país pela primeira vez justamente em agosto de 1980.
Vejam, ao lado, outro panfleto do CBA/SP, denunciando a visita do ditador argentino ao brasileiro, com a presença de Paulo Maluf, então governador de São Paulo, não eleito pelo povo (as eleições diretas para os governos dos Estados só voltariam em 1982, e nesse ano o candidato de Maluf, Reinaldo de Barros, seria derrotado por Franco Montoro).
O Estatuto dos Estrangeiros permanece, o que diz bastante do comprometimento dos parlamentos da democracia com os valores democráticos, o que condiz com uma "política migratória fragmentada, opaca e casuística", conforme escreveu Deisy Ventura em 2014.
Sobre as discussões para substituição dessa "lei", sugiro a leitura de outro artigo de Deisy Ventura, "Estatuto do Estrangeiro ou lei de imigração?", publicado no Le Monde Diplomatique brasileiro em agosto de 2010, que aponta novos riscos aos refugiados::
Atualmente, a repatriação consiste no retorno ao Brasil, custeado pelo Estado, em situações excepcionais, de cidadão brasileiro. De acordo com o PL n 5.655/09, a repatriação passa a consistir no “impedimento da entrada do estrangeiro sem autorização para ingressar no território nacional que ainda esteja em área de aeroporto, porto ou fronteira”12. Inexistente na lei do regime militar, esta nova dimensão do instituto causa inquietação. A depender de como for aplicada pelas autoridades policiais, teme-se que, no futuro, possa dar origem a práticas, já adotadas em outros países, que violam o direito internacional dos refugiados – como a criação de zonas não consideradas como território nacional para descaracterizar o ingresso do migrante no país, e com isto impedir a formulação do pedido de refúgio.
Por sinal, a situação internacional para os refugiados só vem se agravando, com as novas restrições criadas pela União Europeia neste ano.
Pode-se acompanhar a tramitação do projeto de lei 5655/2009 por meio desta ligação da Câmara dos Deputados: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=443102
Note-se que o governo interino, no seu ataque aos setores de direitos humanos ainda existentes no âmbito federal, tem logrado piorar as políticas brasileiras no campo dos refugiados; por meio do ministro Alexandra de Moraes, foram suspensas as negociações para receber imigrantes sírios; leiam esta reportagem de João Fellet para a BBC Brasil,  "Governo Temer suspende negociação com europa para receber refugiados sírios".


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