Morreu anteontem Modesto da Silveira, aos 89 anos. A matéria da EBC destaca sua atuação como o advogado que defendeu o maior número de presos políticos (o que lhe valeu ser detido ilegalmente pela repressão política), e sua participação na campanha pela anistia: "Morre Modesto da Silveira, defensor de presos políticos durante a ditadura".
Nunca vi os números, mas sempre vi repetida essa referência em relação à sua atuação, inclusive no livro Os advogados e a Ditadura de 1964, organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, publicado pela PUC Rio e pela Vozes em 2010. O capítulo que recolhe o depoimento dele foi escrito por Fernanda Machado Moreira.
Boa parte do que está ali escrito foi objeto de sua fala no seminário O Direito e a Ditadura na UFSC em 2010: https://vimeo.com/17770013.
Vejam ou leiam o que ele diz da extinção do habeas corpus para os crimes políticos, que levou os advogados, em exercício de imaginação jurídica, a buscar o mesmo efeito do instrumento proibido com outras petições.
Como ocorria com os (poucos) advogados de presos políticos, ele foi preso ilegalmente e sofreu ameaças, inclusive promovidas pelos grupos paramilitares de direita, responsáveis por diversos atentados no governo do general Figueiredo.
Vejam o panfleto ao lado, de 1980 (ele está no acervo do Deops/SP, no Arquivo Público do Estado de São Paulo). Modesto da Silveira é o terceiro dos alvos, que envolvem gente que havia sido de grupos da esquerda clandestina, nomes da Igreja, das artes, sindicatos e da política institucional.
Dalmo Dallari, referido pelos terroristas, havia sido capturado e espancado em 1980, depois de haver sido preso ilegalmente. O capítulo "A atuação dos advogados na defesa dos presos políticos" da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" conta o episódio, jamais esclarecido pela polícia, que facilitava os múltiplos atentados dessa época por meio da garantia da impunidade:
Os atentados terroristas contra o lento processo de abertura política, que vitimaram jornais de esquerda, militantes políticos, sindicatos, atingiram também os advogados. Em São Paulo, pode-se lembrar do atentado a Dalmo Dallari, que foi capturado e espancado em 2 de julho de 1980, pouco antes da visita do Papa João Paulo II ao Brasil. Segundo o advogado: “durante a greve dos metalúrgicos de São Paulo, foi preso juntamente com outro advogado ligado à Igreja, José Carlos Dias, e que a impunidade dos que o prenderam serviu para encorajar atos como o que aconteceu à porta de sua casa”.
Com efeito, em 19 de julho do mesmo ano ele havia sido preso imotivadamente por agentes à paisana e levado ao DEOPS/SP. O Secretário de Segurança Pública, o Desembargador Otávio Gonzaga Jr., apenas afirmou, assegurando a impunidade do aparelho de repressão, que não sabia quem o prendera, e que tudo ocorreu por causa do dia confuso, em que Luís Inácio Lula da Silva também havia sido preso, por causa da greve dos metalúrgicos.
O delegado Romeu Tuma negou-se a permitir a identificação dos agentes do DEOPS/SP que teriam cometido o atentado. A investigação foi arquivada sem apontar culpados.
A própria Ordem passou a sofrer ameaças de atentados, o que culminou, no Rio de Janeiro, em agosto de 1980, com a morte da secretária Lyda Monteiro da Silva devido à explosão de carta destinada ao presidente do Conselho Federal da OAB, Eduardo Seabra Fagundes.
Embora o capítulo dessa Comissão se concentre, evidentemente, nos advogados com atuação em São Paulo, Modesto da Silveira é nele citado como uma das referências da época.
Ele era deputado federal pelo MDB quando foi discutida a lei de anistia; ele não se limitou a essa pauta, porém. Dou o exemplo da defesa dos povos indígenas.
No discurso ao lado, de abril de 1981, ele atacou a administração de Figueiredo e o presidente da Funai., coronel Nobre da Veiga, que havia afastado diversos antropólogos e indigenistas da Fundação e tinha paralisado as demarcações de terras indígenas.
O governo adotava uma política essencialmente repressiva contra os povos originários:
O governo adotava uma política essencialmente repressiva contra os povos originários:
O comportamento da direção da FUNAI em relação aos índios é invariavelmente restritivo e, com frequência, explicitamente repressivo ou punitivo.
Mas a FUNAI, por sua incompetência, não ultrapassa muito os quadros de uma ação puramente policial e repressiva. A consciência de que as decisões realmente importantes estejam sendo tomadas, cada vez com mais frequência e autonomia, por outras agências governamentais, tem causado um mal-estar crescente aos dirigentes do órgão. [...]
Quero salientar ainda que esses atos não são isolados de maneira nenhuma e encontram guarida não apenas em inúmeros documentos da FUNAI, mas inclusive em vários documentos aqui transcritos do próprio Palácio do Planalto; documentos do General Golbery do Couto e Silva, ordenado pelo Presidente General Figueiredo.
A paralisação das demarcações e a ação contra os aliados dos índios estavam ligadas à militarização da Funai, o que está voltando a ocorrer hoje, no ainda atual governo de fato, que suscita vômitos generalizados também por essa razão. Vejam a ação dos Terenas contra a nomeação de coronel do Exército no Mato Grosso do Sul; e os planos de nomear um general para a presidência da Funai. E a ameaça contra as demarcações no Ministério da Justiça.
Anos depois, Modesto da Silveira foi um dos participantes da audiência pública conjunta da Comissão de Direitos Humanos e Minorias e da Comissão de Legislação Participativa, com o fim de "debater o princípio da imprescritibilidade dos crimes de tortura e as ações de responsabilização dos agentes do Estado que praticaram tais crimes na ditadura civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985", no Congresso Nacional, em 24 de setembro de 2009. Ainda não havia Comissão Nacional da Verdade, mas já existia a Comissão da Anistia - Paulo Abrão, que a presidia, participou da audiência, assim como Fábio Konder Comparato. O Supremo Tribunal Federal ainda não tinha decidido em favor dos torturadores e assassinos a ADPF 153. Ele relatou o caso de uma de suas clientes:
Ora, quando os torturadores me sequestraram, e sequestraram milhares de pessoas, quando eles torturaram, quando eles estupraram inclusive a minha cliente lá de... — quem é de Pernambuco aqui? — ... Brejo da Madre de Deus, no interior de Pernambuco. Quando a torturaram junto ao marido por ser uma líder católica do Dom Hélder, fugida para o Rio de Janeiro, trabalhando sob a proteção da CNBB, o casal acabou localizado pelas autoridades de então. Prenderam os 2, depois de localizados no Rio de Janeiro. Torturaram os 2 juntos. Depois, foi a vez só dela. Ela foi, além de todo o sofrimento anterior, estuprada em fila, em fila. Ela disse que só viu o primeiro e mal o segundo, desmaiou.
Não é à toa que os parlamentares defensores da ditadura e da tortura tenham uma atitude no mínimo dúbia em relação ao estupro. Este crime parece indissociável dos dois primeiros, como uma espécie de "prêmio" para os repressores na forma de um compensação de ordem sexual, um tipo de economia da repressão, assim como o saque das posses dos pobres integra a economia policial segundo Raúl Zibechi.
Modesto da Silveira criticou a lei de anistia imposta pela ditadura de Figueiredo e falou da possibilidade, naquele momento, em 2009, de "opção pelo lado errado", o dos sequestradores e torturadores, pelo governo e pelas Forças Armadas:
Quero repetir aqui, caso alguém não tenha ouvido, que nós temos acesso a listas de poucas centenas de torturadores assassinos sistemáticos, às vezes estimulados ou apoiados aqui e ali. As vítimas, inclusive militares, se contam às centenas. Se as Forças Armadas e o Governo brasileiro optarem por essa minoria torturadora, ainda que alegando reconciliação, e ficarem do lado dessa minoria, contra a grande maioria de oficiais do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, da PM etc., então estarão escolhendo o lado errado da história, o lado errado da educação para o futuro. Se ficarem assim, esses mesmos “brilhantes” sequestradores e torturadores seguramente tentarão de novo. Porque, às vezes, nos mandam mensagens com ameaças — discretas algumas, ousadas outras — para o futuro: comportem-se bem e reconheçam que sou tão bom quanto todo o mundo, ou então o País pode sofrer.
[...]
Esse é um problema que temos para nós agora, para os nossos filhos, netos e bisnetos dos nossos netos. É uma questão difícil. E isso não dá para reconciliar ao contrário, na medida em que você perdoa o assassino, dá a ele uma anistia prévia, geral e irrestrita pelo passado, presente e futuro, como foi essa lei que deu para o futuro. E o que aconteceu? Eles ficaram anistiados pelo Rio-Centro, pelos 38 — só em Brasília! — crimes de terrorismo oficioso aqui em Brasília; se falarmos no Brasil todo serão centenas ou milhares.
Essa é uma questão de vida ou morte.
Nós, nem tanto. Eu, por exemplo, não tenho problema. Sou um octogenário, não tenho problema. Se eu morrer amanhã terei morrido com uma longevidade maior que a do povo brasileiro, que tem 70 anos como média de longevidade [...] Mas — perdão pelo tempo excessivo — temos que repensar essa questão, o que vai ser bom para a história futura deste País e até para as gerações atuais.
Não se pode falar, hoje, em mera possibilidade. A opção já foi realizada, inclusive pelo Judiciário.
De fato, uma questão de vida ou morte; sequestradores e torturadores seguramente tentam de novo, seguros na moldura institucional de uma "democracia das chacinas", como chamam o atual regime as Mães de Maio, com o desfile incessante de mortos e desaparecidos pelo terror de Estado.
As Mães de Maio, por sinal, lançaram livro novo e uma campanha, a que vou me referir em outra nota.
De fato, uma questão de vida ou morte; sequestradores e torturadores seguramente tentam de novo, seguros na moldura institucional de uma "democracia das chacinas", como chamam o atual regime as Mães de Maio, com o desfile incessante de mortos e desaparecidos pelo terror de Estado.
As Mães de Maio, por sinal, lançaram livro novo e uma campanha, a que vou me referir em outra nota.
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