O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 27 de novembro de 2016

Os mortos têm voz: 10 anos dos crimes de maio e a continuidade das chacinas

Dia 17 de novembro, na sala dos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ocorreu o lançamento do livro Mães em luta: dez anos dos crimes de maio de 2006, editado pela Ponte Jornalismo, em projeto editorial de Danilo Dara e Debora Maria da Silva, das Mães de Meio. Foram lançados também a campanha Black Brazilians Matter e o dvd Vídeo-Memorial Mães de Maio, que reúne quatro curtas (Apelo, Chapa, Um memorial para mães e filhos, Mães - sobre reparação psíquica).

O fotógrafo Sérgio Civil fez uma pequena exposição da série "Piratas Urbanos".
O evento acabou com uma caminhada até a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, que não acompanhei, mas foi filmada. Tive de sair antes e não ouvi todas as falas.
Na página das Mães, há uma série de vídeos e matérias. Vi que a Revista Cláudia anunciou, em longa matéria, o lançamento do livro, que foi organizado por André Caramante. Sobre o evento, Débora Melo escreveu para a Carta Capital o texto "Consciência Negra: luta é contra a violência estatal, de ontem e de hoje", ainda mais longo do que o da Ponte Jornalismo. O Instituto Geledés enfatizou a campanha no texto que publicou.
Nem todos os anunciados na matéria do Cidade Lúdica conseguiram estar presentes: Eliane Brum, a autora do prefácio, apareceu, mas teve de ir embora antes de o evento começar (o atraso foi de quase uma hora) e Chico César teve um conflito de agenda.

Na foto ao lado, da esquerda para a direita, sentados, Milton Barbosa (Movimento Negro Unificado), Rosana Cunha (mãe de alunos secundarista), Silvia Bellintani (psicóloga e jornalista, viúva de Milton Bellintani, homenageado no livro), Rosária Ramalho (Secretária Municipal de Cultura), Paulo Magrão (Associação Capão Cidadão), Ângela Mendes de Almeida (Observatório da Violência Policial e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos), Felipe de Paula (Secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania), Alípio Freire (jornalista e ex-preso políticos); em pé, Danilo Dara (Mães de Maio), Eliane Elias (S.O.S. Racismo) e Debora Maria da Silva (Mães de Maio). Eliane Elias está com a palavra na foto. A Prefeitura de São Paulo e a Associação Capão Cidadão apoiaram a obra.
O evento foi carregado de emoção e seguiu tranquilo no auditório mais do que lotado (muitos ficaram de pé, inclusive Latuff, autor da arte da bandeira das Mães de Maio na primeira foto). O único momento de inquietação deu-se quando um jornalista da TV Cultura, de terno, foi confundido com um P2; mas ele se identificou e continuou filmando o evento.
Somente consegui filmar algumas falas. Debora Maria da Silva, a face mais pública das Mães, que perdeu irmão, o pai do filho e seu filho para a violência policial, acusou que "Se os crimes de maio tivessem tido punição, com certeza não teríamos mães de 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, de 2014, de 2015 e de 2016." Com efeito, o livro conta histórias de violência até 2016;
Depois, Danilo Dara fez uma homenagem a Guilherme da Silva Neto, o Guilherme Irish, assassinado pelo próprio pai por participar de uma ocupação escolar em Goiânia, e chamou Rosana Cunha, mãe de um dos secundaristas presos com ajuda de um agente do Exército, que continua a espionar e reprimir movimentos sociais. Ela contou que seu filho usa lentes de contato e estava com soro, que foi considerado uma "arma química" pela polícia.
A criminalização do protesto permanece, o que era previsível depois da impunidade generalizada da brutal repressão aos movimentos de 2013. Continuamos nos tempos do vinagre tratado como arma de destruição em massa.
Ângela Mendes de Almeida lembrou do assassinato do jornalista Luiz Eduardo Merlino, seu ex-companheiro, durante a ditadura, dos processos contra Brilhante Ustra, da impunidade que permanece e dos movimentos de hoje em prol de uma nova ditadura, da "cambada de cafajestes, que são o núcleo fascista, que tomaram o palco da Câmara municipal [federal] para defender a volta dos militares e que gritavam o nome de seu herói. Qual o nome de seu herói? Sérgio Moro."
Consegui gravar Janete Arruda; mãe de uma menina internada, conforme sua fala ocorreram espancamentos de jovens em unidade da Fundação Casa, na unidade de internação Parada de Taipas. Ela disse: "as que têm visita de pai e mãe não apanharam tanto quanto as meninas que não têm, e as meninas que não têm, ninguém tem acesso a elas". Ela agradeceu à Ponte, que fez uma reportagem e a entrevistou: "Unidade em Taipas teria vivido manhã de tensão na sexta (11). Governo nega: diz que unidade é 'modelo' e tem até piscina". Dia 18, a Defensoria Pública esteve lá e colheu depoimentos das jovens.
Fausto Salvadori Filho, que não consegui gravar, falou das iniciativas do Estado para criminalização da Ponte Jornalismo e das Mães de Maio, fazendo referência ao vídeo censurado da Ponte que mostra membro do Ministério Público afirmando que as Mães atacavam os policiais que eram contra o tráfico de drogas. Bruno Paes Manso refere-se ao episódio no livro. Lembrou também do desembargador Ivan Sartori, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que sugeriu, dias depois de votar pela absolvição no caso do massacre do Carandiru (em 27 de setembro deste ano) e ser criticado pela decisão, que "a imprensa e organizações de direitos humanos são financiadas pelo crime organizado".



O livro foi escrito por jornalistas da Ponte, que contam histórias de vítimas, desde 2006, da violência do Estado. Ao lado, está o sumário. Os capítulos são intitulados pelas mães ou por outros sobreviventes (por exemplo, Francilene Gomes Fernandes é a irmã de um dos mortos dos crimes de maio; a estadunidense Waltrina Middleton teve sua prima assassinada no Massacre de Charleston em 2015).
Este livro, indo além dos crimes de maio, além de ampliar o horizonte geograficamente, além do Estado de São Paulo e do Brasil, faz o mesmo no recorte temporal, pois as chacinas não pararam em 2006.
A última vítima do livro foi assassinada em 2016. Luana Barbosa dos Santos (exceção deste livro, é ela, e não os parentes sobreviventes, quem nomeia o capítulo, escrito por Tatiana Merlino), negra, lésbica e moradora da periferia de Ribeirão Preto, foi espancada por policiais militares, entrou em coma e morreu. Ela estava com o filho, que presenciou a ação criminosa, mas os policiais, felizmente, não o mataram também. Um traço em comum dessa história com as outras é a impunidade:
Em maio de 2016, o juiz Luiz Augusto Freire Teotônio, de Ribeirão Preto, negou o pedido de prisão temporária dos três policiais acusados de espancamento. O juiz ainda remeteu os autos do processo à justiça militar, alegando que não se trata de um crime contra a vida. O promotor de justiça Eliseu José Gonçalves recorreu da decisão do juiz, alegando que houve homicídio. Até a conclusão deste livro, o recurso aguardava julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo [...]
Nesses momentos, como nas histórias do livro, vê-se o Judiciário como o Poder político garantidor da polícia, e não dos direitos fundamentais, agindo em estreita simbiose com o Executivo.
A noção do inimigo interno, que fundamenta o genocídio da juventude pobre, preta e periférica, é filha da doutrina de segurança nacional. E é ela que é aplicada quando decisões obviamente inconstitucionais de busca e apreensão coletiva em todo um bairro são proferidas, sob o pretexto de medida excepcional - o último caso desses que percebi ocorreu contra a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, no último 21 de novembro. Pretexto duplamente falso, por sinal, se temos em mente o papel histórico desse Poder. Excepcional, de fato, seria o Judiciário brasileiro garantir os direitos fundamentais da população periférica...
O livro Mães em Luta conta como prefácio uma crônica de Eliane Brum, publicada originalmente na versão brasileira de El País, que me parece analisar bem esta situação de barbárie institucionalizada pelos Poderes do país:
[...] onde está o golpe? E quem são os golpeados neste país?
Basta seguir o sangue. Basta seguir o rastro de indignidades dos que têm suas casas violadas por agentes da lei nas periferias dos que têm seus lares destruídos pelas obras primeira da Copa, depois das Olimpíadas, dos que têm suas vidas roubadas pelos grandes empreendimentos na Amazônia, dos que abarrotam as prisões por causa de sua cor, dos que têm menos tudo por causa de sua raça [...]
E muitos outros. Estou completamente de acordo com a jornalista.
A campanha Black Brazilians Matter já foi traduzida para o espanhol, o francês e o inglês; leiam na página das Mães de Maio.

Uma nota sobre a formulação escolhida. Sobre o movimento dos EUA, Black Lives Matter, alguns ousam dizer que o lema está errado, ou é racista, pois não são apenas as vidas negras que importam, mas todas.
Há limites seja para a ingenuidade, seja para a leviandade ou para a má-fé, mas essas pessoas os ultrapassam sem muito constrangimento. Em primeiro lugar, o movimento não diz " vidas dos negros importam"; se o fizesse, seria contraditório com "todas as vidas importam". Como não o faz, a sanidade exige constatar que "as vidas dos negros importam" não só não contradiz, mas está contido em "todas as vidas importam".
Se está contido, por que destacar essas vidas? Uma pessoa muito alienada, que leia (ou não) aqueles autores que ganham dinheiro clamando "não somos racistas", poderia fazer a pergunta. Respondo. Porque os dados demonstram que esse grupo, o dos negros, é alvo preferencial dos órgãos de vigilância e repressão do Estado, de uma discriminação social específica que pede ações próprias. Há necessidade de foco para atacar o problema.
Para quem só entende metáforas médicas, dizer que todas as vidas importam é neutro, é como dar um antibiótico genérico para uma bactéria que exige medicação específica. Não funcionará. Poderá levar à morte, que é, no fim, o resultado da postura dos repetidores do mantra "all lives matter", e das outras posturas que têm por fim referendar o racismo negando que ele exista, ou pretendendo que ele só ocorra entre as pessoas que justamente estão lutando contra ele (no caso, os que lutam são exatamente os militantes do Black Lives Matter; os seus críticos nada fazem, exceto desmerecer o trabalho dos reais ativistas contra a violência).
O estadunidense Deray Mckesson, do Black Lives Matter, respondeu bem que jamais iria a uma marcha contra o câncer de mama gritando que o câncer de cólon importa... E que o assassinato de negros pelo Estado (que, como se sabe, também ocorre nos EUA, embora não nas proporções do Brasil) é uma questão específica, que deve ser abordada com seu foco distinto. O lema "all lives matter", nesse contexto, é uma distração, acusa Mckesson, que os racistas usam contra os militantes do movimento Black Lives Matter. Eu não poderia estar mais de acordo.
No Brasil, evitou-se a discussão, adotando-se tanto o Black Brazilians Matter quanto o Brazilian Lives Matter.

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