Rodrigo de Lacerda Carelli escreveu em junho um interessante artigo, "Barroso, negros de primeira linha e a reforma trabalhista", em que tentou compreender por via da "dor social" tanto o elogio racista feito pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso ao Ministro aposentado Joaquim Barbosa, quanto o discurso que fez, com dados falsos, em favor da chamada reforma trabalhista.
Relembro: O Ministro Luís Roberto Barroso afirmou em 13 de maio em Londres (no "Brazil Forum") que 98% dos processos trabalhistas no mundo ocorreriam no Brasil e defendeu a reforma trabalhista e a da previdência, entre outras coisa, além de ter-se compadecido do pobre Citibank. Tratou-sem de uma fala de propaganda das "reformas" do governo, realizado por um Ministro do Supremo Tribunal Federal, mas não nessa condição institucional, segundo alertou, mas na de professor de direito constitucional. Tendo em vista as peculiaridades intelectuais e políticas do meio jurídico, ele é considerado por alguns juristas como um nome de esquerda.
O Ministro, em vez de retificar as informações, sentiu-se enxovalhado pelo artigo de Lacerda Carelli e se escusou dizendo que a esdrúxula pesquisa, que ele não citou, aliás (atitude metodologicamente estranha para um professor universitário), não foi realizada por ele. Aquele discurso de Barroso serviu, nos debates legislativos, para justificação da chamada reforma trabalhista, sancionada por Temer no dia 13 de junho.
O professor Cássio Casagrande tratou do erro em relação aos EUA no artigo "Brasil, 'Campeão de ações trabalhistas': Como se constrói uma falácia", publicado no Jota: "projetando-se este percentual de 11,18% sobre os quinze milhões de ações civis nas justiças estaduais, há razoável segurança para estimar que os processos trabalhistas na Justiça dos Estados devem girar em torno de 1,7 milhão ao ano".
Em um país em que persistem o trabalho escravo, tanto no campo quanto na cidade, e os seus apoiadores, conspira contra a dignidade humana esse tipo de afirmação contra o Direito do Trabalho e sua justiça especializada. Portanto, trata-se de algo a se esperar da atual administração.
Vejam, a propósito, os números de processos do Judiciário brasileiro segundo o último levantamento do Conselho Nacional de Justiça (como sempre, cliquem à direita no mouse para abrir a imagem em outra janela);
Não se trata de "processos demais", ainda mais num país formado numa cultura de que o trabalho não gera direitos. Tendo em vista a conjuntura política de saque aberto ao estado e de escancarada luta de classes, até que não surpreende ver a defesa da extinção de uma Justiça que serve a tanta gente, enquanto se arquiva o fechamento do elefante branco da Justiça Militar, cujos prédios seriam muito mais úteis se entregues à Justiça Federal.
Já que, entre outros infortúnios nacionais, Rodrigo Maia (DEM-RJ) é Presidente da Câmara dos Deputados, o país passa pela humilhação de ter alguém na linha da presidência da república que afirma que a Justiça do Trabalho nem deveria existir. Essa declaração de 8 de março deste ano, corajosamente, não foi proferida diante de trabalhadores.
A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho) protestou no mesmo dia:
A cassação dos trabalhadores de boa parte de seus direitos sociais gera, de fato, uma grande dor social. O racismo também o faz; a também recente declaração em "homenagem" ao Ministro aposentado Joaquim Barbosa, pela qual o Ministro pediu desculpas, "negro de primeira linha, um negro vindo de um doutorado em Paris", evidentemente provém das profundezas do "inconsciente político" (já vi Barroso aludir brevemente a esse conceito em aula) da elite brasileira, a que ele pertence, e que é racista. Um racismo tão arraigado que se manifesta até mesmo no elogio.
Resolvi escrever esta breve nota, no entanto, porque creio que se podem ver as duas declarações recentes sob outro prisma: o de uma visão antiquada de direitos humanos, professada pelo Ministro, contrária à que foi consagrada na Constituição de 1988, para não falar no atual Direito Interamericano de Direitos Humanos, e conveniente para o atual momento político de retrocesso, também no campo jurídico.
Refiro-me ao discurso que o Ministro proferiu no Brazil UK Forum 2017. O professor de direito constitucional falou de ativismo judicial bom e ruim, como "colesterol". E explicou que:
Estes antolhos setecentistas apresentam uma evidente marca étnica: são brancos. E não deixam ver que a demarcação de terras indígenas é um direito fundamental para os povos originários, não se trata de mera "deliberação político-administrativa".
Um jurista como Ives Gandra da Silva Martins (completamente insuspeito de simpatia pela esquerda ou de ativismo pelos povos originários) já considerou que ela corresponde a uma cláusula pétrea na Constituição da República, insuscetível de ser alterada por emenda constitucional (lembro disto por causa da nefasta PEC 215, um dos projetos legislativos anti-indígenas em trâmite no Congresso Nacional).
Os povos indígenas, no Brasil, não têm direito de propriedade sobre seus territórios (eles são bens da União). Mas sua especial vinculação com suas terras originárias é reconhecida pela Constituição, de forma que a aquela vinculação territorial é definidora de um povo. Como essa relação é sagrada, não se trata de algo a se comprar ou vender, não se trata de um "bem imóvel"; quem trata assim a terra é o direito dos brancos...
O desprezo ou a ignorância da relação dos povos indígenas com seus territórios, bem como a imposição de uma concepção eurocêntrica de direito civil, corresponde a um exemplo, no Direito, do que é o racismo epistêmico. Foi esse o racismo mais grave que apareceu nas falas recentes de Barroso, e que ninguém, aparentemente, comentou, o que talvez indique que ele não cause estranheza no meio jurídico, o que é muito grave.
Essa forma de racismo, que atua sobre a legitimidade dos saberes, e quer calar formas de conhecimento, tradicionais, ligadas a certas etnias (vejam, por exemplo, o que César Augusto Baldi escreve sobre as comunidades quilombolas e a justiça cognitiva).
Os direitos originários, que decorrem dos modos de vida dos povos indígenas, são menosprezados
Pretender falar de direito constitucional em um país como o Brasil, de tão grande variedade cultural, étnica e linguística, sem lastro antropológico não é apenas um exemplo violento de racismo epistêmico, mas um caso de mau constitucionalismo, ou melhor, de um anticonstitucionalismo, tendo em vista os artigos 231 e 232 da Constituição da República, que reconheceu a legitimidade e a positividade daqueles direitos e modos de vida.
Os povos indígenas no Brasil, apesar da proteção constitucional, estão passando por uma série de ataques criminosos ou institucionais (às vezes, criminosos e institucionais). Na próxima semana, o Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de frear alguns deles. Copio o Índio é Nós:
Relembro: O Ministro Luís Roberto Barroso afirmou em 13 de maio em Londres (no "Brazil Forum") que 98% dos processos trabalhistas no mundo ocorreriam no Brasil e defendeu a reforma trabalhista e a da previdência, entre outras coisa, além de ter-se compadecido do pobre Citibank. Tratou-sem de uma fala de propaganda das "reformas" do governo, realizado por um Ministro do Supremo Tribunal Federal, mas não nessa condição institucional, segundo alertou, mas na de professor de direito constitucional. Tendo em vista as peculiaridades intelectuais e políticas do meio jurídico, ele é considerado por alguns juristas como um nome de esquerda.
O Ministro, em vez de retificar as informações, sentiu-se enxovalhado pelo artigo de Lacerda Carelli e se escusou dizendo que a esdrúxula pesquisa, que ele não citou, aliás (atitude metodologicamente estranha para um professor universitário), não foi realizada por ele. Aquele discurso de Barroso serviu, nos debates legislativos, para justificação da chamada reforma trabalhista, sancionada por Temer no dia 13 de junho.
O professor Cássio Casagrande tratou do erro em relação aos EUA no artigo "Brasil, 'Campeão de ações trabalhistas': Como se constrói uma falácia", publicado no Jota: "projetando-se este percentual de 11,18% sobre os quinze milhões de ações civis nas justiças estaduais, há razoável segurança para estimar que os processos trabalhistas na Justiça dos Estados devem girar em torno de 1,7 milhão ao ano".
Em um país em que persistem o trabalho escravo, tanto no campo quanto na cidade, e os seus apoiadores, conspira contra a dignidade humana esse tipo de afirmação contra o Direito do Trabalho e sua justiça especializada. Portanto, trata-se de algo a se esperar da atual administração.
Vejam, a propósito, os números de processos do Judiciário brasileiro segundo o último levantamento do Conselho Nacional de Justiça (como sempre, cliquem à direita no mouse para abrir a imagem em outra janela);
Não se trata de "processos demais", ainda mais num país formado numa cultura de que o trabalho não gera direitos. Tendo em vista a conjuntura política de saque aberto ao estado e de escancarada luta de classes, até que não surpreende ver a defesa da extinção de uma Justiça que serve a tanta gente, enquanto se arquiva o fechamento do elefante branco da Justiça Militar, cujos prédios seriam muito mais úteis se entregues à Justiça Federal.
Já que, entre outros infortúnios nacionais, Rodrigo Maia (DEM-RJ) é Presidente da Câmara dos Deputados, o país passa pela humilhação de ter alguém na linha da presidência da república que afirma que a Justiça do Trabalho nem deveria existir. Essa declaração de 8 de março deste ano, corajosamente, não foi proferida diante de trabalhadores.
A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho) protestou no mesmo dia:
Críticas sobre o aprimoramento de todas as instituições republicanas são aceitáveis, mas não aquelas - aí sim irresponsáveis - com o único objetivo de denegrir um segmento específico do Poder Judiciário que, especialmente neste momento de crise, tem prestado relevantes serviços ao país e aos que dela mais necessitam. Somente em 2015, 11,75% (4.980.359 processos) do total de novos processos ingressados no Poder Judiciário representaram as ações relativas ao pagamento de verbas rescisórias, dado que revela o quanto a Justiça do Trabalho é imprescindível em um país desigual e injusto.Evidentemente, a reforma é bastante patronal, inclusive em sua redação: das emendas apresentadas, "(34,3%) foram integralmente redigidas em computadores de representantes da Confederação Nacional do Transporte (CNT), da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística", segundo o levantamento do The Intercept.
A cassação dos trabalhadores de boa parte de seus direitos sociais gera, de fato, uma grande dor social. O racismo também o faz; a também recente declaração em "homenagem" ao Ministro aposentado Joaquim Barbosa, pela qual o Ministro pediu desculpas, "negro de primeira linha, um negro vindo de um doutorado em Paris", evidentemente provém das profundezas do "inconsciente político" (já vi Barroso aludir brevemente a esse conceito em aula) da elite brasileira, a que ele pertence, e que é racista. Um racismo tão arraigado que se manifesta até mesmo no elogio.
Resolvi escrever esta breve nota, no entanto, porque creio que se podem ver as duas declarações recentes sob outro prisma: o de uma visão antiquada de direitos humanos, professada pelo Ministro, contrária à que foi consagrada na Constituição de 1988, para não falar no atual Direito Interamericano de Direitos Humanos, e conveniente para o atual momento político de retrocesso, também no campo jurídico.
Refiro-me ao discurso que o Ministro proferiu no Brazil UK Forum 2017. O professor de direito constitucional falou de ativismo judicial bom e ruim, como "colesterol". E explicou que:
Há áreas em que o Poder Judiciário não deve intervir, espaços de decisão política, como eu falei, questões econômicas não é um bom espaço do Judiciário, deliberações político-administrativas do tipo demarcação de terras indígenas, transposição de rios, esses não são temas em que o Poder judiciário como regra deva interferir. Mas em outros o Poder Judiciário tem o dever de intervir, seja para assegurar direitos fundamentais, seja para proteger as regras do jogo democrático.Ele dá exemplos como liberdade de expressão, uniões homoafetivas, julgamento em curso pessoas transgênero, direito de privacidade e porte pessoal de maconha para consumo próprio. O professor propugnou pelo que chamou de "agenda iluminista mínima". Ou seja, o Ministro, embora professor de direito constitucional, crê que a atual Constituição é um produto da segunda metade do século XVIII e recalcou, com seu inconsciente político liberal, a presença de pautas menos antigas de direitos, do século XIX e XX, como direitos sociais e direitos difusos.
Estes antolhos setecentistas apresentam uma evidente marca étnica: são brancos. E não deixam ver que a demarcação de terras indígenas é um direito fundamental para os povos originários, não se trata de mera "deliberação político-administrativa".
Um jurista como Ives Gandra da Silva Martins (completamente insuspeito de simpatia pela esquerda ou de ativismo pelos povos originários) já considerou que ela corresponde a uma cláusula pétrea na Constituição da República, insuscetível de ser alterada por emenda constitucional (lembro disto por causa da nefasta PEC 215, um dos projetos legislativos anti-indígenas em trâmite no Congresso Nacional).
Os povos indígenas, no Brasil, não têm direito de propriedade sobre seus territórios (eles são bens da União). Mas sua especial vinculação com suas terras originárias é reconhecida pela Constituição, de forma que a aquela vinculação territorial é definidora de um povo. Como essa relação é sagrada, não se trata de algo a se comprar ou vender, não se trata de um "bem imóvel"; quem trata assim a terra é o direito dos brancos...
O desprezo ou a ignorância da relação dos povos indígenas com seus territórios, bem como a imposição de uma concepção eurocêntrica de direito civil, corresponde a um exemplo, no Direito, do que é o racismo epistêmico. Foi esse o racismo mais grave que apareceu nas falas recentes de Barroso, e que ninguém, aparentemente, comentou, o que talvez indique que ele não cause estranheza no meio jurídico, o que é muito grave.
Essa forma de racismo, que atua sobre a legitimidade dos saberes, e quer calar formas de conhecimento, tradicionais, ligadas a certas etnias (vejam, por exemplo, o que César Augusto Baldi escreve sobre as comunidades quilombolas e a justiça cognitiva).
Os direitos originários, que decorrem dos modos de vida dos povos indígenas, são menosprezados
Pretender falar de direito constitucional em um país como o Brasil, de tão grande variedade cultural, étnica e linguística, sem lastro antropológico não é apenas um exemplo violento de racismo epistêmico, mas um caso de mau constitucionalismo, ou melhor, de um anticonstitucionalismo, tendo em vista os artigos 231 e 232 da Constituição da República, que reconheceu a legitimidade e a positividade daqueles direitos e modos de vida.
Os povos indígenas no Brasil, apesar da proteção constitucional, estão passando por uma série de ataques criminosos ou institucionais (às vezes, criminosos e institucionais). Na próxima semana, o Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de frear alguns deles. Copio o Índio é Nós:
No dia 16 de agosto, é possível que o Supremo Tribunal Federal julgue três ações sobre o chamado marco temporal, tese anti-indígena que tem a finalidade de limitar as demarcações de terras no Brasil. Tanto os povos originários quanto os quilombolas, que também estão sob a ameaça de aplicação dessa tese inconstitucional, vêm se mobilizando contra esse marco, que pretende negar as territorialidades históricas desses povos, bem como legitimar o genocídio que eles sofreram e a usurpação de suas terras por invasores e grileiros.Tenho escrito sobre essa ameaça desde 2015, e mais várias pessoas, bem mais eminentes, como José Afonso da Silva, que elaborou extenso parecer, apresentado em seminário organizado por Manuela Carneiro da Cunha e Samuel Barbosa, sobre a inconstitucionalidade da tese do "marco temporal" que, significa o seguinte (copio novamente Índio é Nós):
Imaginem se, na Alemanha, fosse editada uma lei determinando que os bens das vítimas de genocídio pelo nazismo devessem ficar com os algozes e os colaboradores. Segundo a “lógica” dessa lei, as vítimas seriam “culpadas” de terem sido mortas ou expulas de sua terra e, portanto, os assassinos e invasores mereceriam ser recompensados por suas ações criminosas “em prol” da nação… Uma lei dessas, além de ferir princípios básicos de justiça e de dignidade humana, colocaria a Alemanha na berlinda das nações.
Isso não se fez lá, mas, no Brasil, acaba de acontecer algo parecido. A tese do “marco temporal” foi oficializada por Michel Temer no Diário Oficial da União do dia 20 de julho de 2017, por meio de um Parecer vinculante da Advocacia Geral da União (Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU), com a finalidade de paralisar processos de demarcação de terras indígenas no Brasil, bem como de anular demarcações já realizadas.
Os povos indígenas foram vítimas de genocídio no Brasil também durante a ditadura militar. Há ainda quem repita a mentira de que a ditadura matou menos de quinhentas pessoas; no entanto, só para dez etnias indígenas, a Comissão Nacional da Verdade, em seu trabalho incompleto, verificou 8.350 mortos e desaparecidos. O parecer da AGU cala sobre esses crimes e, violando os critérios mínimos de justiça de transição, tem como efeito legitimar a finalidade do crime, que era o de expulsar os índios de seus territórios.
Essa ameaça, que o governo ilegítimo de Michel Temer vem intensificando ferozmente, com ações anticonstitucionais (curiosamente, o ocupante da presidência da república também é um professor de direito constitucional), paira também sobre os quilombolas, e levou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) a coordenar toda uma agenda de manifestações e protestos: https://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.com/2017/08/07/semana-de-lutas-indigenas-em-todo-o-brasil-mobilizam-se-contra-o-marco-temporal/.
Sigam a Mobilização Nacional Indígena e participem. Além das datas indicadas, dias 9 e 15 de agosto ocorrerão tuitaços com o lema #MarcoTemporalNão. Esperemos que todo esse conjunto de ações possa propiciar a superação do racismo epistêmico anti-indígena (e, neste caso, também contra os quilombolas) pelo Judiciário brasileiro.
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