O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Desejo e aflição em "ratzara", de Sergio Maciel

O interessante livro de estreia de Sergio Maciel, ratzara (Fortaleza: Dybbuk, 2017), apresenta duas epígrafes que servem para entender o curioso título e os procedimentos poéticos em jogo. A primeira, o artigo 47 da lei de direitos autorais; a segunda, trecho da novela Até agora, de Shai Agnon, traduzida por Toba Sender em sua tese defendida na UERJ.
O artigo 47 trata da liberdade de paráfrase e paródia, algo comum na poesia, não menos na poesia brasileira de hoje. O trecho reproduzido aponta para outra coisa: "Depois peguei as palavras prazer (oneg), abundância (shefa), beleza (shefer) e desejo (ratza), que trocando as letras ficam praga (nega), lodo (refesh), dejeto (feresh), crime (fesha) e aflição (tzara)."
Além da transformação de palavras, note-se a conjunção de desejo e aflição no título. A marota citação de Eliot após o último poema ("I'm glad it's over.") não deixa de refletir a angústia, mais que da estreia, de escrever poesia hoje. Rodrigo Tadeu Gonçalves, no interessante posfácio, salienta o paroxismo das referências:
[...] citações diretas, recontextualizações, alusões, intertextualidades, remendos, arremedos, mosaicos, reordenações aleatórias de passagens conhecias ou desconhecidas se produzem de maneira desconcertante e atordoante. Eu mesmo sou ali plagiado com descaramento, para meu grande prazer. Mas não fui exatamente eu o plagiado, pois se trata de passagem minha vertendo/redizendo/reescrevendo Catulo.
O poema a que se refere, "díade", traz o esclarecimento: "sobre safo, horácio & catulo/ sobre gontijo & gonçalves". O outro tradutor e poeta referido é Guilherme Gontijo Flores, que também sentiu o peso da tradição poética ocidental e respondeu por meio de uma poética dos desvios e dos recortes de textos traduzidos em Tróiades: remix para o próximo milênio.
A resposta de Sergio Maciel é diferente da de Gontijo Flores; o poeta estreante em livro, com seu desejo por essa tradição e o de pertencer a ela, confessa-nos diretamente, depois de citar "Horácio via Gontijo":
não consigo escrever sobre o mundo nem tenho a capacidade de descrever de modo lírico os acontecimentos bárbaros que o compõem os linchamentos que antropologicamente compõem o território brasileiro os desastres ambientais as guerras não consigo escrever não consigo escrever os acontecimentos se estraçalham com tanta violência destroem-se em tantos pedaços que se transforma num vazio áspero em nós
Trata-se de outra face da figura bifronte desejo/aflição: falar dos acontecimentos. a poesia faz-se deles? Não, mas sim, diria Drummond. ratzara não tenta fazer o papel d'A rosa do povo para o jovem autor; neste livro, a poesia é o próprio acontecimento, e difícil, pelo que exige de reflexão, captura e desvio.
O texto quase todo riscado que serve de introdução corresponde a trechos de um ensaio de Adriano Scandolara, publicado na Germina em 2014: "da comunidade à busca malograda", sobre a herança mítica e o espaço do poeta na modernidade. Apenas não está riscado o final, que exorta o "poeta escrevendo hoje" a refletir sobre "isso" (o que está riscado...) em vez de repetir os "velhos clichês sobre a herança xamânica da poesia".
A escolha de Agnon, penso, é significativa para a epígrafe por esse esforço de uma relação construída com a tradição; no caso do ficcionista, cito Toba Sender, temos a tarefa de "fiar e emendar deliberadamente o fio da tradição cortado e rasgado, negando o mundo profano e sacralizando a Jerusalém terrena" (p. 18 da tese). Sergio Maciel não tenta a sacralização, que aqui seria regressiva; talvez faça o contrário, no seu recorte dos fios da tradição poética.
Sergio Maciel evita os clichês; este livro responde a essa exortação com um tom grave que convive com o sentido lúdico de brincar com a tradição: por exemplo, escrever o poema já em fragmentos, como se "em pleno viço", na referência a Safo. O tom grave, de "por uma brecha brilha a agonia", e a poesia é tanto essa brecha quanto o brilho, predomina, mesmo com a ironia de "entre o caco e retalho/ humano é estacar em meio às coisas".
Predomina a poesia em verso, com híbridos entre verso e prosa no segundo e no terceiro poemas, que soam como trechos de tragédias perdidas e foram publicados antes sob o pseudônimo artificioso Ernesto von Artixzffski. Depois deles, temos um poema muito divertido em forma de carta "p/ ricardo domeneck", em que, de fato, Domeneck é citado, especialmente na condição de ensaísta. O poema é tanto metalinguístico (fala-se sobre poesia, pós-utópico, política e poética) quanto erótico (pela situação); o papel do inaudível nesse poema parece-me atender às duas dimensões eroticamente entrelaçadas (note-se, no entanto, que o autor errou na regência do verbo assistir no começo do poema).
O risco do maneirismo, creio, é praticamente descartado (a seção V do poema "p/ rafael falasco", no entanto, parece-me cair nele), o que é notável nesta poética tão arriscada e em um livro de estreia, cujo único problema, parece-me, é a brevidade (34 páginas, não numeradas): ficamos querendo ler mais deste poeta e editor do Escamandro, importante blogue de poesia.
Fica, pois, o leitor com um desejo, mas não aflitivo...


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