Não me considero um ensaísta, apenas escrevi um livro no gênero faz alguns anos; no entanto, como me fizeram algumas perguntas sobre isso, teci umas poucas considerações sobre o assunto, que muito me interessa.
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O ensaio “comenta sobre”, para usar sua expressão. Esse comentário pode tomar caminhos variados, inclusive perder o objeto, mas essa é uma ousadia para poucos. Ou pode (re)inventar o objeto comentado. O gênero demanda uma liberdade que somente uma cultura muito vasta pode proporcionar e/ou uma capacidade de análise excepcional e/ou uma capacidade de imaginação desconcertante. Há uma passagem de Beatriz Sarlo nos Sete ensaios sobre Walter Benjamin a respeito do método de Benjamin que corresponde ao que me agrada no gênero: “Seu olhar é fragmentário, não porque renuncie à totalidade, senão porque a busca nos detalhes quase invisíveis.”
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Depende do que o ensaísta quiser fazer dele. Um Steiner enfatizará o caráter teórico. Virginia Woolf (“As teorias portanto são coisas perigosas.”) ou Eliot (“Sou apenas um homem de letras que acredita levantar questões interessantes, mesmo que as respostas que dê sejam negligenciáveis.”), a dimensão literária. Um Magris poderá fazer algo mais híbrido, combinando com a ficção. Já em Montaigne o ensaio podia assumir um cunho autobiográfico. Gosto de todas essas possibilidades, todas podem ser ricas em pensamento e engajadas formalmente. Alguns poetas gostam de emular a forma do ensaio, como Alberto Pimenta – e fazem poesia com isso (o “discurso preliminar”, de Os entes e os contraentes). Borges fez o mesmo no conto (“Pierre Ménard, autor do Quixote” é um exemplo célebre). Um dos livros teóricos de Pimenta, por sinal, A magia que tira os pecados do mundo, pela sua liberdade intelectual de relacionar Adorno, Dante e ocultismo, só seria mesmo concebível como coleção de ensaios. Nesse sentido, esse gênero é um espaço de liberdade e, portanto, sua escrita é essencialmente política; cito o livro de Pimenta: “O mundo dos fenómenos é um mundo da necessidade: se a chávena cai, parte-se. O mundo da consciência é livre: inventa e organiza a seu gosto o tempo e o espaço e os fenómenos. A metáfora é apenas uma manifestação da liberdade cognitiva do ser humano; codificar essa liberdade com o intuito de restringi-la é tarefa da polícia do espírito, que durante séculos teve duas corporações: os filósofos e os teólogos.”
Há hoje outras corporações com essa função; no Brasil, creio que se trate de uma vitória da censura que não seja mais necessário haver um órgão federal para tanto; ocorre aí mais uma economia para o Estado, além de o fato de ela ter sido amplamente terceirizada, por exemplo, pelas milícias fascistoides que estão proibindo obras de arte pelo Brasil e incentivando iniciativas policialescas do tipo “escola sem partido”; ou pelo braço armado das teologias do capital, como o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, censurando com fundamentos alegadamente neopentecostais os cultos de ascendência africana. Esses obstáculos de caráter político e social recaem e recairão sobre o ensaio nas três vertentes a que o problema alude: manifesto, teoria e arte. Nos três casos, poderá haver um pensamento ou uma forma de vida que os fascistoides desejarão silenciar.
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Creio que são pessoas de áreas diferentes, pelas citações com que já me deparei, mas não tenho ideia precisa. Não devo me preocupar com quem é meu leitor, ele deve inventar-se por si mesmo; se meus textos o ajudarem nessa tarefa, justificar-se-ão de alguma forma.
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Creio que são pessoas de áreas diferentes, pelas citações com que já me deparei, mas não tenho ideia precisa. Não devo me preocupar com quem é meu leitor, ele deve inventar-se por si mesmo; se meus textos o ajudarem nessa tarefa, justificar-se-ão de alguma forma.
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Muito obrigado pela deferência, no entanto creio que não tenho realmente uma relação com o público. De vez em quando vejo manifestações sobre o que escrevi, mas não estou interessado em compilar ou verificar essas reações. Apesar de poucas, não me sobra energia para tal ocupação. Sei que há autores contemporâneos que dedicam mais energia a isso do que à criação literária, porém não tenho o prestígio dessas pessoas. Estou preocupado com a recepção crítica dos autores sobre que escrevo.
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Sei que há ensaios que se limitam à descrição de textos, no entanto não correspondem aos que me interessam. Sua pergunta me faz lembrar de Montaigne, que é muito interessante. No ensaio sobre os canibais, esse autor afirma que as pessoas com espírito mais fino são mais curiosas, notam mais coisas, porém as comentam e, para persuadir os outros da interpretação que fizeram, alteram um pouco os acontecimentos. A essa objeção, alguém poderia retrucar que o recorte desses acontecimentos, que é o que nos permite contá-los, já é uma forma de alteração ou, melhor, de (re)constituição da paisagem. Talvez um pouco de modificação seja inevitável… Voltando a Montaigne: aos homens de espírito fino, ele diz preferir o testemunho de um homem simples que teria vivido na França Antártica (colônia francesa nas margens da Baía de Guanabara, cuja derrota para os portugueses levaria à fundação da cidade do Rio de Janeiro). É possível que esse homem nunca tenha existido e, assim, que ele não passe de outra manifestação do “espírito fino” do escritor. Isso indicaria, mesmo em Montaigne (não no que diz naquele trecho mas em seu modo de produção, que é o mais importante), que a capacidade de descrever depende da invenção.
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Claro que sim! Somente, porém, se o autor tiver talento, condição que vale, por sinal, para qualquer assunto, em especial para um universo tão complexo quanto o da tevê. Veja o humor da defesa da televisão por Enzensberger em Mediocridade e loucura. É verdade também que não há temas simples (mesmo programas televisivos sem muita imaginação, cuja popularidade há de ser entendida), se se quer realmente enfrentá-los, e sim abordagens simplórias.
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As redes sociais afetaram como assunto, mas não creio que eu já tenha escrito algo de relevante sobre isso. No tocante a suporte de publicação, não creio que constituam um bom abrigo para ensaios, tendo em vista a volatilidade das redes e pelo fato de serem espaços dedicados à desleitura ou à não-leitura, daí os gifs, as fotos, os quadrinhos coloridos com frases supostamente de impacto ou com atribuições errôneas, bem como discussões sem fim e sem posições que façam algum sentido. O etos encorajado pelas redes, de falar sem estudo e pesquisa todo o tempo sobre não importa o quê (junk speech), tornando papos de bêbados em bar algo comparativamente mais intelectual e muito mais divertido, infelizmente vêm contaminando a produção teórica de gerações mais jovens. Talvez se possa chegar à existência de críticos literários que empreguem sua própria ignorância como fundamento (com posições tomadas a partir de “nunca vi isto”, “jamais soube de nada parecido”, "eu nunca tinha lido" etc, e outras magnificações da própria falta de estudo) e acreditem que a humanidade foi fundada pelo livro que chegou a suas mãos agora e, assim, o movimento negro, o monólogo interior, a poesia narrativa, o feminismo e o chapéu seriam reputados criações da segunda década do século XXI.
É claro que nada de avançado ou crítico pode-se fundar com bases tão frágeis, com a negação da história. Tal presenteísmo, como todos os outros, é fundamentalmente acrítico. O risco da magnificação da ignorância, que se tornaria um modo de produção intelectual, parece-me fruto, entre outros fatores, das redes sociais, que têm essa relação tão volátil com a história... Ou mesmo com a semana anterior: em algumas delas, é até difícil buscar textos mais antigos; ademais, nelas ocorre o fenômeno das pessoas tontas demais para verificar a data das notícias que compartilham: certos artistas falecidos voltam a morrer diversas vezes em razão desse fenômeno.
O instantaneísmo exacerbado por essas redes provavelmente afeta a memória e a atenção. Sem ambas, não há produção nem leitura de ensaio.
Eu as emprego apenas para divulgação do que escrevo ou das causas em que acredito, e para saber do que os outros estão a publicar (especialmente o twitter, muito melhor do que outras redes para isso).
Em relação à pós-verdade, não emprego esse léxico, pois fazê-lo seria uma capitulação.
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Trata-se uma pesquisa de sociologia da leitura que já deve ter sido feita mais de uma vez, mas ainda não a li, tampouco a realizei. Em razão de minha ignorância do assunto, não posso ajudá-lo. Se minha opinião for relevante, creio que, como no Brasil a população alfabetizada é tão pequena, o pequeno público para ensaio e para hard news deva coincidir em alguma medida. Creio, no entanto, que seria útil diferenciar entre as subespécies temáticas do ensaio para verificar a hipótese.
Muito obrigado pela deferência, no entanto creio que não tenho realmente uma relação com o público. De vez em quando vejo manifestações sobre o que escrevi, mas não estou interessado em compilar ou verificar essas reações. Apesar de poucas, não me sobra energia para tal ocupação. Sei que há autores contemporâneos que dedicam mais energia a isso do que à criação literária, porém não tenho o prestígio dessas pessoas. Estou preocupado com a recepção crítica dos autores sobre que escrevo.
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Sei que há ensaios que se limitam à descrição de textos, no entanto não correspondem aos que me interessam. Sua pergunta me faz lembrar de Montaigne, que é muito interessante. No ensaio sobre os canibais, esse autor afirma que as pessoas com espírito mais fino são mais curiosas, notam mais coisas, porém as comentam e, para persuadir os outros da interpretação que fizeram, alteram um pouco os acontecimentos. A essa objeção, alguém poderia retrucar que o recorte desses acontecimentos, que é o que nos permite contá-los, já é uma forma de alteração ou, melhor, de (re)constituição da paisagem. Talvez um pouco de modificação seja inevitável… Voltando a Montaigne: aos homens de espírito fino, ele diz preferir o testemunho de um homem simples que teria vivido na França Antártica (colônia francesa nas margens da Baía de Guanabara, cuja derrota para os portugueses levaria à fundação da cidade do Rio de Janeiro). É possível que esse homem nunca tenha existido e, assim, que ele não passe de outra manifestação do “espírito fino” do escritor. Isso indicaria, mesmo em Montaigne (não no que diz naquele trecho mas em seu modo de produção, que é o mais importante), que a capacidade de descrever depende da invenção.
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Claro que sim! Somente, porém, se o autor tiver talento, condição que vale, por sinal, para qualquer assunto, em especial para um universo tão complexo quanto o da tevê. Veja o humor da defesa da televisão por Enzensberger em Mediocridade e loucura. É verdade também que não há temas simples (mesmo programas televisivos sem muita imaginação, cuja popularidade há de ser entendida), se se quer realmente enfrentá-los, e sim abordagens simplórias.
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As redes sociais afetaram como assunto, mas não creio que eu já tenha escrito algo de relevante sobre isso. No tocante a suporte de publicação, não creio que constituam um bom abrigo para ensaios, tendo em vista a volatilidade das redes e pelo fato de serem espaços dedicados à desleitura ou à não-leitura, daí os gifs, as fotos, os quadrinhos coloridos com frases supostamente de impacto ou com atribuições errôneas, bem como discussões sem fim e sem posições que façam algum sentido. O etos encorajado pelas redes, de falar sem estudo e pesquisa todo o tempo sobre não importa o quê (junk speech), tornando papos de bêbados em bar algo comparativamente mais intelectual e muito mais divertido, infelizmente vêm contaminando a produção teórica de gerações mais jovens. Talvez se possa chegar à existência de críticos literários que empreguem sua própria ignorância como fundamento (com posições tomadas a partir de “nunca vi isto”, “jamais soube de nada parecido”, "eu nunca tinha lido" etc, e outras magnificações da própria falta de estudo) e acreditem que a humanidade foi fundada pelo livro que chegou a suas mãos agora e, assim, o movimento negro, o monólogo interior, a poesia narrativa, o feminismo e o chapéu seriam reputados criações da segunda década do século XXI.
É claro que nada de avançado ou crítico pode-se fundar com bases tão frágeis, com a negação da história. Tal presenteísmo, como todos os outros, é fundamentalmente acrítico. O risco da magnificação da ignorância, que se tornaria um modo de produção intelectual, parece-me fruto, entre outros fatores, das redes sociais, que têm essa relação tão volátil com a história... Ou mesmo com a semana anterior: em algumas delas, é até difícil buscar textos mais antigos; ademais, nelas ocorre o fenômeno das pessoas tontas demais para verificar a data das notícias que compartilham: certos artistas falecidos voltam a morrer diversas vezes em razão desse fenômeno.
O instantaneísmo exacerbado por essas redes provavelmente afeta a memória e a atenção. Sem ambas, não há produção nem leitura de ensaio.
Eu as emprego apenas para divulgação do que escrevo ou das causas em que acredito, e para saber do que os outros estão a publicar (especialmente o twitter, muito melhor do que outras redes para isso).
Em relação à pós-verdade, não emprego esse léxico, pois fazê-lo seria uma capitulação.
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Trata-se uma pesquisa de sociologia da leitura que já deve ter sido feita mais de uma vez, mas ainda não a li, tampouco a realizei. Em razão de minha ignorância do assunto, não posso ajudá-lo. Se minha opinião for relevante, creio que, como no Brasil a população alfabetizada é tão pequena, o pequeno público para ensaio e para hard news deva coincidir em alguma medida. Creio, no entanto, que seria útil diferenciar entre as subespécies temáticas do ensaio para verificar a hipótese.
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No entanto, fala-se com alguém, quando se escreve um ensaio? Ele se coaduna com a tese kantiana de que pensamos melhor em público, com os outros? E, nesse pensar com os outros, o quanto tenho de imaginá-los já no momento da elaboração do texto?
Montaigne, membro da elite francesa, provavelmente criou um outro, o colono da França Antártica, menos diverso de si do que o outro de que ele falava, os indígenas americanos, que não entendiam como os miseráveis na Europa não se revoltavam e matavam os ricos. No entanto, pôde escrever sobre eles e, nessa abertura, creio que se configura uma generosidade do ensaio (ao contrário do que se chama de "post" nas redes sociais, que não passa, em geral, de mera reiteração de posição pessoal, com muito interesse em ser "curtida", mas pouco em discutir e transigir).
Essa generosidade é necessária também para a vida social, e talvez indique a necessidade do gênero nos dias de hoje. Nesse sentido, as redes sociais talvez realizem o oposto, em razão da tendência à sectarização (ou o que chama de "bolha", favorecida pelos algoritmos, que obedecem à lógica do mercado - que não pode mesmo ser democrática) e, como no jornalismo mais sensacionalista, à criação de frases de impacto para gerar cliques. Em vez de um pensamento em conjunto, estimula-se uma lógica da facção. A discordância parcial é desencorajada, e aquele que discorda é visto como inimigo, que deve ser bloqueado.
Dessa forma, surge esse fenômeno de pessoas, ou "perfis", que comentam sobre tudo, de forma mais ou menos superficial, pois não há outro jeito de fazê-lo, e porque a superficialidade confere o tom necessário para atrair mais seguidores. Esse fenômeno ocorre tanto à direita quanto à esquerda. Imaginem jovens professores que dizem que nunca um presidente foi chamado publicamente de louco no Brasil, exceto a presidenta deposta; alertados de um exemplo tão recente quanto Collor, não corrigem a bobagem curtida centenas de vezes; tentem conceber um ex-roqueiro que fique a espalhar, desdenhando os desmentidos, notícias falsas sobre mortes (fictícias) de grandes especuladores, de fraudes (não verificadas) em eleições etc. Afinal, os campos que desconhecemos são aqueles em que somos, usualmente, mais cheios de certezas.
Creio que interessa menos o absurdo conteúdo dessas afirmações do que a sua nefasta ética de produção: fala-se sem nenhum compromisso com as fontes da informação (muitas vezes disseminam-se notícias falsas sem pudor algum, especialmente veículos de "imprensa", à esquerda e à direita, que apenas estão a fazer campanha), com sua veracidade e/ou verossimilhança. É interessante notar que esse tipo de leviandade faz-se presente também nos textos em redes sociais de pesquisadores, jornalistas e professores, pessoas que deveriam ter aprendido a checar dados e a analisar textos. A má-fé confirma-se, nesses casos, quando a pessoa se depara com o desmentido e prefere manter as informações falsas ou bloquear quem alertou.
É claro que tudo isso se espalha porque o falso tornou-se um mercado importante para as grandes corporações e para os partidos políticos. Hannah Arendt (minha ensaísta favorita), no ensaio sobre a mentira na política (recolhido no Crises da República), ao notar que grande parte das informações que o governo havia tentado ocultar já tinha sido divulgada pela imprensa, comentou que "so long as the press is free and not corrupt, it has an enormously important function to fulfill and can rightly be called the fourth branch of government." As duas condições que a autora destacou, infelizmente, estão em crise mais aguda, uma vez que a própria imprensa tem participado ativamente e lucrado com a corrupção da verdade. Pode-se acrescentar a esse quadro a crescente fraqueza intelectual do jornalismo, que tornou até a ortografia motivo de apreensão. A nota que escrevi no fim de 2016 sobre "apequenamento da imprensa, estreitamento da literatura" trata disso.
Esse é o tipo de esfera pública que se forma nesses grandes conglomerados privados que são as redes sociais, evidentemente mais interessadas com o lucro do que com outras considerações. Não à toa, essa dinâmica é tão favorável à difusão de ideias fascistoides: no seu modo de produção, ela apresenta semelhanças à sociedade autoritária que aquelas facções desejam implantar. Os políticos já o notaram, a imprensa de direita e os defensores de execuções extrajudiciais não perdem tempo a espalhar notícias falsas, como, no infame caso de censura que envolve MBL e Santander contra as obras do QueerMuseu.
Recente matéria do programa de Gregório Duvivier apresentou algumas das informações falsas propagandeadas pelo MBL (pró-direita e contra direitos humanos, claro), e que o Truco, da Agência Pública, desmentiu. A réplica do MBL é típica de junk speech: afirmaram que estavam sendo "censurados" com a verificação de fatos e mandaram a imagem de um pênis de borracha: https://www.youtube.com/watch?time_continue=249&v=V4E0yXQeI2Y. Parece uma discussão comum de facebook, ao nível do qual a discussão política parece ter sido rebaixada.
Chamo junk speech em analogia à junk food: um discurso rápido de engolir, com uma atratividade superficial e calorias vazias (pode ser composto de uma figurinha, com uma frase ou não, com atribuição correta ou não, com erros de sintaxe e ortografia ou não) e que envenena a esfera pública. Seu sucesso faz compreender a facilidade da proliferação e o sucesso dos robôs nas redes, contratados por partidos políticos e outras organizações empenhadas na destruição da esfera pública. O baixíssimo grau de inteligência e a agressividade nos intercâmbios virtuais faz com que esses robôs pareçam verossímeis.
Urge, pois, encontrar novo uso das redes, debate que deve ser acompanhado da discussão sobre o direito digital e o bloqueio das iniciativas do capital contra a abertura e a neutralidade da internet - se estas se forem de vez, as possibilidades de esfera pública aí estarão ainda mais perdidas.
Dessa forma, surge esse fenômeno de pessoas, ou "perfis", que comentam sobre tudo, de forma mais ou menos superficial, pois não há outro jeito de fazê-lo, e porque a superficialidade confere o tom necessário para atrair mais seguidores. Esse fenômeno ocorre tanto à direita quanto à esquerda. Imaginem jovens professores que dizem que nunca um presidente foi chamado publicamente de louco no Brasil, exceto a presidenta deposta; alertados de um exemplo tão recente quanto Collor, não corrigem a bobagem curtida centenas de vezes; tentem conceber um ex-roqueiro que fique a espalhar, desdenhando os desmentidos, notícias falsas sobre mortes (fictícias) de grandes especuladores, de fraudes (não verificadas) em eleições etc. Afinal, os campos que desconhecemos são aqueles em que somos, usualmente, mais cheios de certezas.
Creio que interessa menos o absurdo conteúdo dessas afirmações do que a sua nefasta ética de produção: fala-se sem nenhum compromisso com as fontes da informação (muitas vezes disseminam-se notícias falsas sem pudor algum, especialmente veículos de "imprensa", à esquerda e à direita, que apenas estão a fazer campanha), com sua veracidade e/ou verossimilhança. É interessante notar que esse tipo de leviandade faz-se presente também nos textos em redes sociais de pesquisadores, jornalistas e professores, pessoas que deveriam ter aprendido a checar dados e a analisar textos. A má-fé confirma-se, nesses casos, quando a pessoa se depara com o desmentido e prefere manter as informações falsas ou bloquear quem alertou.
É claro que tudo isso se espalha porque o falso tornou-se um mercado importante para as grandes corporações e para os partidos políticos. Hannah Arendt (minha ensaísta favorita), no ensaio sobre a mentira na política (recolhido no Crises da República), ao notar que grande parte das informações que o governo havia tentado ocultar já tinha sido divulgada pela imprensa, comentou que "so long as the press is free and not corrupt, it has an enormously important function to fulfill and can rightly be called the fourth branch of government." As duas condições que a autora destacou, infelizmente, estão em crise mais aguda, uma vez que a própria imprensa tem participado ativamente e lucrado com a corrupção da verdade. Pode-se acrescentar a esse quadro a crescente fraqueza intelectual do jornalismo, que tornou até a ortografia motivo de apreensão. A nota que escrevi no fim de 2016 sobre "apequenamento da imprensa, estreitamento da literatura" trata disso.
Esse é o tipo de esfera pública que se forma nesses grandes conglomerados privados que são as redes sociais, evidentemente mais interessadas com o lucro do que com outras considerações. Não à toa, essa dinâmica é tão favorável à difusão de ideias fascistoides: no seu modo de produção, ela apresenta semelhanças à sociedade autoritária que aquelas facções desejam implantar. Os políticos já o notaram, a imprensa de direita e os defensores de execuções extrajudiciais não perdem tempo a espalhar notícias falsas, como, no infame caso de censura que envolve MBL e Santander contra as obras do QueerMuseu.
Recente matéria do programa de Gregório Duvivier apresentou algumas das informações falsas propagandeadas pelo MBL (pró-direita e contra direitos humanos, claro), e que o Truco, da Agência Pública, desmentiu. A réplica do MBL é típica de junk speech: afirmaram que estavam sendo "censurados" com a verificação de fatos e mandaram a imagem de um pênis de borracha: https://www.youtube.com/watch?time_continue=249&v=V4E0yXQeI2Y. Parece uma discussão comum de facebook, ao nível do qual a discussão política parece ter sido rebaixada.
Chamo junk speech em analogia à junk food: um discurso rápido de engolir, com uma atratividade superficial e calorias vazias (pode ser composto de uma figurinha, com uma frase ou não, com atribuição correta ou não, com erros de sintaxe e ortografia ou não) e que envenena a esfera pública. Seu sucesso faz compreender a facilidade da proliferação e o sucesso dos robôs nas redes, contratados por partidos políticos e outras organizações empenhadas na destruição da esfera pública. O baixíssimo grau de inteligência e a agressividade nos intercâmbios virtuais faz com que esses robôs pareçam verossímeis.
Urge, pois, encontrar novo uso das redes, debate que deve ser acompanhado da discussão sobre o direito digital e o bloqueio das iniciativas do capital contra a abertura e a neutralidade da internet - se estas se forem de vez, as possibilidades de esfera pública aí estarão ainda mais perdidas.
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Outra questão seria a relativa raridade do gênero ensaio no direito brasileiro. Às vezes, deparamo-nos com textos que levam indevidamente o nome de ensaio, pois não passam de artigos frouxos, sem a escrita mais livre e a aventura intelectual próprias do gênero. Além da evidente falta daquela generosidade, a falta de pensamento também corresponde a um impeditivo sério em um meio em que magistrados decidem contra fundamentos científicos para impor uma fé pessoal, em que os tribunais sistematicamente negam seus precedentes e sabotam as exigências constitucionais e legais de fundamentação das decisões, e, especialmente, em um habitus de culto à autoridade desde a formação jurídica, em que se aprende a seguir o dominante (jurisprudência, autor, editora etc.) e a chamar de doutrina o que faria o papel, em áreas menos infensas à reflexão, da teoria (cujo nome, ao menos, é ressalvado).
Note-se também a atuação de magistrados em espalhar informações falsas sobre a Justiça brasileira (contra os direitos sociais), bem como o acolhimento pelo Ministério Público de divulgadores de notícias falsas na condição de palestrantes. Vejam este breve resumo de Pedro Abramovay: https://twitter.com/marcelorubens/status/888057086793457665; falas desse movimento ocorreram neste ano à convite do MP do Rio de Janeiro e em evento do Ministério Público Federal de Goiás.
Raras vezes o meio jurídico nacional trabalhou em prol da democracia. Deve-se lembrar que estamos sofrendo a presidência de um jurista professor de direito constitucional. Não é de estranhar que nesse campo hostil ao pensamento o junk speech tenha encontrado solo fértil, ao contrário do ensaio.
P.S.: Os primeiros pontos, escrevi-os para responder a uma enquete de Gustavo Frank, por indicação de Heitor Ferraz Mello.
Raras vezes o meio jurídico nacional trabalhou em prol da democracia. Deve-se lembrar que estamos sofrendo a presidência de um jurista professor de direito constitucional. Não é de estranhar que nesse campo hostil ao pensamento o junk speech tenha encontrado solo fértil, ao contrário do ensaio.
P.S.: Os primeiros pontos, escrevi-os para responder a uma enquete de Gustavo Frank, por indicação de Heitor Ferraz Mello.
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