O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Desbloqueando a cidade XII: O direito à cidade e a imaginação jurídica

No fim de 2017, dois dos organizadores da IV Jornada de Filosofia Política da UnB, Cecília Almeida e Gilberto Tedeia, chamaram-me para falar do direito à cidade, assunto que me ocupa desde os anos 1990. O evento chamou-se "Pensar a cidade" e homenageou o filósofo Milton Meira do Nascimento, que esteve presente e deu uma conferência.
A palestra foi registrada em vídeo; comecei-a depois do ensaio de Luiz Paulo Rouanet sobre as mulheres na pólis: https://www.facebook.com/jornadafilosofiapoliticaunb/videos/vb.676054595800129/1686538498085062/?type=2&theater
A revista Philósophos, da Universidade Federal de Goiás, publicou em 2018 um dossiê especial sobre o tema, organizado pelas professoras Cecília Almeida e Helena Esser dos Reis. Ele pode ser consultado nesta ligação: https://www.revistas.ufg.br/philosophos/issue/view/2023
No meu artigo, "Lugares do direito à cidade e a filosofia do direito", citei a palestra que deu origem ao artigo de Marco Antônio Sousa Alves, "Cidade inteligente e governamentalidade algorítmica", publicado no dossiê.
Escrevi-o a partir de uma constatação de que dois autores dos mais referidos em relação a este direito, Henri Lefebvre (o primeiro formulador teórico do direito à cidade) e David Harvey, provavelmente por terem vindo de áreas outras (filosofia e geografia, respectivamente), não chegaram a articulá-lo com a filosofia do direito.
Na introdução, citei artigo ainda recente de Bianca Tavolari, "Direito à cidade: uma trajetória conceitual", que bem lembra do nascimento desse direito na filosofia (Lefebvre) em 1967 e nas ruas, com as reivindicações francesas de Maio de 1968.
No Brasil, tive de ressaltar, as primeiras formulações relativas a esse direito vêm dos urbanistas e dos arquitetos e são interrompidas pelo golpe de 1964 e a ditadura militar, que retira a reforma urbana do horizonte político. A repressão sobre as associações de moradores e os movimentos sociais correspondeu a outro bloqueio ao direito à cidade. Evidentemente, aquelas primeiras formulações não poderiam vir do campo jurídico, pois nele o discurso dos direitos, no âmbito dos temas de justiça distributiva, é geralmente repelido pelo Judiciário e pelos juristas, mais interessados em argumentos curtos de utilidade econômica que beneficiam, quem diria, os mais ricos.
Os movimentos urbanos e a pauta da reforma urbana reconstituíram-se ao longo da abertura política. A eles se deveu o capítulo da política urbana na Constituição de 1988, que, para sua efetividade, tem encontrado tantas resistências, seja das imobiliárias e das construtoras, das administrações municipais, seja dos juristas:




Dividi o artigo, que tem caráter evidentemente exploratório (gostaria que fosse apenas o começo para um ensaio mais extenso) nas seguintes seções: da filosofia e das ruas, o direito à cidade; a dimensão local em articulação com a internacional; a questão das diferenças e da diversidade; a construção do direito de baixo para cima: democracia participativa e a mobilização coletiva; unidade, indivisibilidade, a interdependência e a interrelação dos direitos humanos; as fronteiras fluidas entre o formal e o informal (aqui, trato dos meus velhos assuntos do "pluralismo paradoxal" e da "produção legal da ilegalidade"; alguns dos autores que cito nesse ponto são Raquel Rolnik, Enzo Bello, Rancière e Reva B. Siegel); "além do direito à cidade".
No último ponto, tive de lembrar das sociedades não urbanas, que têm travado algumas das lutas políticas mais acirradas e mais importantes do planeta, como as de tantos povos indígenas, e critiquei o eurocentrismo de Lefebvre e Harvey. Terminei desta forma:
As lutas no campo, nos rios, nas florestas não cabem na pauta do direito à cidade. De fato, a agenda da emancipação, se não pode, evidentemente, conformar-se às vias jurídicas institucionais, tem que ser muito maior do que a do direito à cidade no tocante à imaginação jurídica insurgente.
O que não significa, claro, que ele deva ser descartado, ou que a cidade deva ser minimizada como palco de reivindicações desse direito e de outros. Os próprios movimentos indígenas, que foram os primeiros a se levantar contra o atual governo federal, na série de ocupações que fizeram no início de 2019 com o "Janeiro Vermelho", usaram também o espaço urbano para reivindicações, o que incluiu São Paulo e a Avenida Paulista: http://www.indio-eh-nos.eco.br/2019/02/02/sangue-indigena-nenhuma-gota-a-mais-o-ato-em-sao-paulo/
Veja-se também que as relações entre a ilegalidade no espaço urbano e o grupo político que ocupa o governo federal; o domínio territorial da cidade pelo crime organizado é incompatível com o direito à cidade, evidentemente, que pressupõe a autonomia dos cidadãos. Se aquele grupo político já homenageou e defendeu milícias e milicianos (lembro de artigo de Guilherme Boulos, "As coincidências entre Bolsonaro e as milícias": https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/As-coincidencias-entre-Bolsonaro-e-as-milicias/4/43667; mas a imprensa de direita também resolveu noticiar tais elos: https://www.valor.com.br/politica/6214143/flavio-bolsonaro-fica-contrariado-com-proposta-de-cpi-das-milicias), é certo também que o direito à cidade nunca esteve em sua pauta, o que torna mais óbvio o desaparecimento do Ministério das Cidades, cujo eventual retorno se explica pela politicagem (vejam esta matéria da Folha de S.Paulohttps://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/05/governo-bolsonaro-cede-e-agora-admite-recriar-dois-ministerios.shtml), e não por alguma preocupação da presidência da república com a cidadania no espaço urbano.

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