O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 4 de maio de 2019

Nenhum jardim é inocente: Resenha estilo "nova era" do livro mais recente de Ana Martins Marques

[Nota: esta recensão é uma sátira, ao contrário do livro]

O atual ministro da educação queixou-se da balbúrdia nas universidades e das humanidades em geral. Portanto, como cidadão consciente de que a "nova era" vigente no Brasil é uma idade de ouro para a inteligência nacional, ofereço esta resenha adaptada aos tempos de hoje, em que a literatura tem licença para existir, porém como objeto de acusação.

O extremo-marxismo do livro de Ana Martins Marques publicado pela Editora Quelônio em 2019 (em algum momento estará disponível nesta ligação: https://www.quelonio.com.br/shop), embora esteja camuflado no título aparentemente inofensivo (O livro dos jardins), desnuda-se quando o abrimos no meio; que palavras iniciam o poema central?? Nada menos do que "Mais valia"...
Para os subversivos, tudo vale na guerra psicológica adversa, inclusive jogar conceitos marxistas na cara do leitor incauto. O poema continua, plantando mais sementes esquerdistas:
Mais valia, você sabe, plantar um jardim
do que escrever poemas sobre jardins.
Com o jardim você aprendeu o modo
como as coisas
anseiam ser
a concentração, a dispersão
a insistência
a alegria das novas
ocupações.
A poeta defende a primazia marxista da ação e da produção sobre a reflexão e a contemplação, em paralelo com sua concepção materialista da vida, inimiga do espiritualismo idealista! Nesse trecho, também não é possível deixar de ver o elogio esquerdista às "ocupações", tática guerrilheira empregada especialmente pelos movimentos sem-terra e sem-teto para combater a sacrossanta propriedade privada.
Combater a propriedade privada e esvaziar os palácios. O "Jardim francês", com sua alusão à triste Revolução que derrubou pela primeira vez o saudoso regime monárquico naquele país, impõe ao leitor as imagens violentas do palácio vazio, sitiado por uma "cerca viva", certamente composta pelos insurrectos animados pela energia belicosa do "touro":
Esculpir-me
como a uma
cerca viva
erigir-me
severa e simétrica
construir-me em volta
de um palácio (vazio)
ou apenas costurar-me
em torno
do touro
Há mais? Evidentemente. O investimento micropolítico nos jardins é uma ideia altamente subversiva que desde o movimento de 1964 a esquerda brasileira tenta impor. Gabriel Pundek Scapinelli, em sua dissertação "Refazenda: jardinagem e micropolítica" (defendida na... UFMG, uma das instituições que a "nova era" tenta combater em nome do ensino domiciliar e de EAD em faculdades privadas), insidiosamente afirma que "Se lembrarmos do programa ambiental proposto por Hélio Oiticica vemos que a arte é uma ferramenta importante de conscientização ambiental."
Para que serve esta "conscientização"? Lembremos da fala de nosso augusto chanceler, segundo a qual o aquecimento global é uma invenção gramscista da esquerda, confirmada pelo impoluto ministro do meio ambiente, explicando que se trata de mera questão acadêmica para daqui a 500 anos.
Este livro está a empregar esta tática da esquerda? Claro: além de a capa ter sido impressa em papel de bambu (em evidente alusão aos escritos de Mao Tsé-Tung), os poemas de Ana Martins Marques são todos escritos em letra verde... Trata-se da cor com que os vermelhos hoje colorem suas ambições. Ela mesma o diz, no início de "Jardim japonês": "Arqueio-me como uma ponte de madeira/ sobre um lago aceso por carpas vermelhas". A causa ecológica tornou-se o vetor para a infecção do vírus do socialismo!
Um dos poemas de O livro dos jardins começa com este verso: "Este ano não floriu". Muito suspeito publicar isto justamente no primeiro ano do governo da "nova era". No entanto, ele continua, ainda mais perigoso às instituições:
Floria sempre
a cada ano
indiferente aos acontecimentos
se havia guerras ou desastres
se um trem chocou-se no Egito
com um ônibus escolar
e 40 crianças morreram
floria
ainda assim
independente da cotação do dólar
Além do uso da alegada "questão ecológica" contra o sistema, é de ressaltar o antiamericanismo, típico dos comunistas, do verso que menospreza a digna moeda dos EUA, verdadeiro baluarte dos valores ocidentais!
A primeira parte do livro dedica-se a esta micropolítica subversiva da jardinagem. Na segunda parte, a autora dedica "jardins" (na verdade, manifestos esquerdistas, em insidiosa metáfora esquerdista) para poetas, todas mulheres e falecidas: Orides Fontela, Sylvia Plath, Wislawa Szymborska, Alejandra Pizarnik, Marina Tsvetáieva, Ingeborg Bachmann e Laura Riding.
Se a presença de autoras críticas às ditaduras comunistas, bem como a conformidade da jardinagem ao gênero feminino dentro da divisão sexual de trabalho poderiam tranquilizar os cidadãos de bem, o desconforto logo surge na leitura dos poemas. O poema para a poeta polonesa vencedora do Nobel de Literatura ("Um jardim para Wislawa") parece oferecer a chave do coração subversivo do livro:
Com que palavras então
darias a conhecer
a fala da folha
o pensamento da pedra
(quiçá a mesma língua com que fala
a mulher de Lot
após olhar para trás)
A blasfêmia de imaginar que a esposa de Lot, castigada por Deus em razão de sua curiosidade (tão feminina!) de ainda tentar ver o que acontecia com a cidade de pecadores, possa ainda falar, equivale a uma rebelião das mulheres contra os mandados religiosos! Equivale a reconhecer a voz daquelas que sempre foram julgadas subalternas; a encontrar o discurso do subalterno, do minúsculo, das folhas, das pedras; a buscar uma democracia dos elementos, a querer ouvir as falas, inclusive as menores, em todas as reentrâncias do mundo e da sociedade, revirando todas as hierarquias estabelecidas pelo Ocidente.
Esta é a "jardinagem" da poeta: a subversão do espaço doméstico, antes o único espaço do mundo realmente permitido para o gênero feminino:
Quem coloca girassóis na jarra
toca fogo no próprio apartamento
Como pode querer passar o dia
sem alarme
após incendiar a casa por dentro?
Instalam pequenas feras
na sala de estar
Este trecho vem de "Um jardim para Sylvia", em mais uma prova de que a autora quer dinamitar a moral e os bons costumes da família brasileira, escolhendo Sylvia Plath para homenagem...
A junção explosiva de ecologia e feminismo configura um instrumento de luta. No poema para Ingeborg Bachmann ("Um jardim para Ingeborg"), Ana Martins Marques finalmente assume que está em guerrilha e se declara culpada e reincidente na subversão:
Também nós
nos reerguemos
sobre as cinzas e as bombas e os cadáveres.
Nenhum jardim
é inocente.
Cidadãos de bem! Preservem sua inocência e não leiam esta autora. Apenas subversivos o fariam para regar suas convicções e bradar com a autora: "brilham as sementes/ arquivos do sol" ("Um jardim para Orides").

P.S.: Somos argutos. Percebemos que muitas das flores mencionadas no livro são vermelhas.
P.S. a sério: A literatura não deve pedir licença para existir.


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