O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Desarquivando o Brasil CLVII: O filme Bacurau e a memória como arma

Vi no primeiro de setembro o filme Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que recebeu o Prêmio do Júri em Cannes. Eu e boa parte do público no Cine Sesc, na cidade de São Paulo, aplaudimos a obra no final, o que não é comum no cinema. Tal como O som ao redor e Aquarius, outros longa-metragens de Mendonça Filho, há nele um apelo à luta social que é consistente e engajador. De forma alguma pode-se acusar o cineasta de estar sempre filmando a mesma obra, os três filmes, notáveis aliás, são bem diferentes entre si. Bacurau, no entanto, fez-me notar um traço comum entre eles, que é o da força da memória como fundamento da luta ou da resistência.
Há diversas questões no filme, como sua nordestinidade (como uma brasilidade mais forte e original), as questões de gênero (o papel estratégico da casa de prostituição; a sexualidade de Lunga, em interpretação memorável de Silvero Pereira; o papel das mulheres na luta, o que inclui a médica Domingas, numa encarnação antológica de Sônia Braga), a  relação com o Estado e o sistema político, a crítica à ideologia armamentista, no filme associada aos EUA, e que gera um nada inverossímil turismo gamer do massacre; ao colonialismo e à necropolítica (uma das músicas originais do filme, escritas por Mateus Alves e Tomaz Alves Souza, chama-se "Body Count Claim", é preciso ver o filme para entender por quê). Mais modestamente, em minha ignorância do cinema, escrevo esta pequena nota apenas para referir à questão da memória.
Procurei ler um pouco sobre a recepção de Bacurau; vi que Sihan Felix ("Bacurau: a história cobra") e Isabel Wittmann ("Bacurau") destacaram, com justiça, a questão. Escreve Felix que "Seja pelo grau de respeito que os mais velhos possuem, seja por sutilmente repetir planos do pequeno museu do povoado, há uma reverência quase que religiosa a tudo o que é ligado a tempos idos.".
De fato, o filme começa com o enterro da matriarca Carmelita, significativamente interpretada por Lia de Itamaracá, que já havia trabalhado com Mendonça Filho e representa, ela mesma, uma parte importante da memória musical do Brasil. A cerimônia fúnebre é um momento de união do povoado imaginário, que precisará dela e de sua memória para reagir aos invasores. A personagem da enfermeira Teresa, interpretada por Barbara Colen, que tinha voltado ao povoado para o enterro da avó, decide ficar no local. O caminhão que traz Teresa, em perturbadora imagem, esbarra em caixões no caminho. Na estrada não asfaltada, houve um acidente com vítima. Os túmulos voltam no fim do filme, é necessário defender a memória dos mortos.
Sobre a gente de Bacurau, Wittmann destaca que "Orgulhosamente perguntam a cada pessoa que entra se ela visitou o Museu da Cidade, sempre recebendo respostas repletas de descaso e desdém. Não por um acaso, o Museu e a Escola passam a ser os espaços da resistência local: o primeiro como o lugar próprio da memória; a segunda protegendo as crianças que a herdarão."
Trata-se aí do caráter êmico da memória, tal como ela se conservava no museu histórico. Em imagem poderosa, os moradores tomam as armas nele expostas para defender-se dos assassinos estrangeiros: a memória torna-se literalmente arma, contrastando frontalmente com as armas "vintage" dos assassinos, como dizem no filme os ianques. O que para estes é um game, objeto de mercado, para a gente de Bacurau é a própria identidade e sua sobrevivência.
Poucas vezes no cinema brasileiro deve ter ficado tão óbvia a relação necessária entre os direitos culturais e os direitos civis (os créditos do filme ainda que defendem o cinema brasileiro, alvo de seguidos ataques do governo deste país, como força cultural e geradora de empregos). Nesse sentido, é interessante que a tentativa de massacre da cidade passe, primeiro, pelo seu extermínio virtual: ela desaparece do mapa na internet. Em passagem brilhante, o professor Plínio (interpretado por Wilson Rabelo) tenta com as crianças, suas alunas, verificar no tablet, em aula ao ar livre, a distância entre Bacurau e São Paulo; não conseguindo fazê-lo também no computador na sala de aula. Um dos alunos pergunta se é necessário pagar para entrar no mapa... O professor recorre ao velho mapa em papel. Nessa memória concreta, a cidade permanece, e dessa concretude se faz a resistência aos invasores.
Essa concretude é a do lugar, permitida pela memória. O filme possui toda a consciência do espaço (como nos outros longas de Kléber Mendonça Filho), e não é casual que ele comece no espaço sideral para chegar, tanto em imagem quanto na voz de Gal Costa (em sua primeira interpretação de "Não interpretado" de Caetano Veloso; ela retomou a canção recentemente) ao "objeto não identificado" de Bacurau, em contraste com as imagens do drone dos estrangeiros.
Mencionei dois músicos baianos com que o filme se abre. A herança cultural do Nordeste do Brasil, por meio da memória, é exaltada neste filme, em contraste com as referências irônicas ao Sudeste. Cito apenas duas: quando um dos assassinos estadunidenses invade uma casa, a tevê, ainda ligada, passa uma notícia sobre "execuções públicas" no Vale do Anhangabaú... Os assassinos brasileiros vêm do Rio de Janeiro e, numa cena divertida, os racistas tupiniquins descobrem que não são considerados brancos pelos seus contratantes estrangeiros...
Os "prestadores de serviço locais" (parece que o extermínio é uma das consequências possíveis da privatização...) e o sistema político abandonam os moradores. Essa questão e a forma de resistência, com pessoas que estão sendo procuradas por crimes (que não ficam muito claros; é evidente, porém, a lealdade recíproca entre o bando e a comunidade), e com práticas que remetem ao cangaço, representam outro aspecto da dimensão da memória como arma.
Essa dimensão aparece na história do país. A Guerrilha de Catolé do Rocha foi mais uma das guerrilhas que não chegaram a acontecer, pois o governo federal descobriu as intenções de criar um grupo armado e prendeu seus poucos integrantes (dezenove) em 1969. No relatório da Comissão da Verdade da Paraíba, a seção sobre o tema traz este depoimento interessante:


O depoimento do delegado não é o de maior interesse: dizeres subversivos, de fato, chamavam a atenção das autoridades. Ubiratan Cortez Costa, ao explicar que, além de os estudantes se espelharem na Revolução Cubana, em Che Guevara e na campanha contra a guerra do Vietnam, fontes de rebeldia comuns a jovens estrangeiros, comenta que falou "também sobre a nossa história de resistência que deveria ser mais baseada assim na era dos, na luta dos cangaceiros e (inaudível) ...".
Nem estrangeiros nem jovens do sul do Brasil pensariam nessa luta, em princípio. Alguns poderiam talvez fazer objeções a essa possibilidade, com certo fundamento na história. No relatório da Comissão da Verdade do Estado da Bahia, por exemplo, pode-se ler depoimento de acusações de aliança de cangaceiros com a polícia para a remoção forçada e ilegal de posseiros, numa aliança dos governos federal e estadual com empresários.
No entanto, a memória dessa luta, ao menos de parte dela, podia ser convocada em ações de resistência contra o governo e o latifúndio. Já isso ocorria nos anos 1950. Cito o relatório da Comissão da Verdade Camponesa:


A autora citada no trecho é Maria Eliza Linhares Borges. Neste caso, trata-se não do Nordeste, mas de região próxima, o leste de Minas Gerais. A seção aborda a "Formação de milícias contra a Reforma Agrária com apoio de coronel da PM em Governador Valadares" e a resistência dos camponeses. A violência das autoridades e a perda de confiança no Judiciário (confiança que não resiste aos padrões mínimos de bom senso, tampouco da memória coletiva) reforçam os símbolos do messianismo e do cangaço.
Essa violência não passou. Um dos assassinos cariocas contratados pelos estrangeiros era assessor de desembargador federal... A resistência dos naturais de Bacurau corresponde a uma memória em ação diante de um presente paralisado na persistência daqueles modelos políticos antipopulares e do colonialismo. Ela faz com que o personagem de Acácio (interpretado por Thomas Aquino, em outra das grandes encarnações do filme) tenha que voltar a ser o "Pacote", seu codinome de criminoso, na defesa da comunidade. No museu histórico de Bacurau, expõem-se fotos e reportagens sobre o cangaço. Um dos assassinos estadunidenses invade-o e sorri com desprezo para aquelas imagens e indicações das armas antigas, retiradas da exposição; comunica, porém, aos outros: "The locals might be armed". Será uma das últimas coisas que fará...
Nesse sentido, é bem falacioso pretender que são iguais a violência mercantilizada dos estrangeiros, no game turístico do extermínio, e a defesa dos moradores, que inclui a decapitação dos assassinos e a expulsão do prefeito cúmplice só de cueca, sentado em um animal e com uma máscara (desmoralizado, mas intacto).
O prefeito, por sinal, havia, na sua primeira aparição, pedido votos trazendo comida e remédios fora do prazo de validade, bem como livros velhos, que são despejados de um caminhão de lixo... Vejam como o poder político trata a memória e a cultura! Um dos remédios que ele trouxe, o "Brasol", um psicotrópico, explica Domingas, deixa a pessoa "lesa" e é um supositório... Por alguma razão, muito consumido no Brasil!! Evidentemente, um país viciado nessa medicação não pode contar com a arma da memória... Os habitantes de Bacurau consomem outra substância, não identificada, que os deixa prontos para a luta.
Para igualar neste filme os estrangeiros e os moradores, em estranha encarnação da teoria dos dois demônios, além de miopia estética e política seria necessária uma certa surdez, pois se ouve duas vezes em Bacurau a canção "Réquiem para Matraga" na voz de seu compositor, Geraldo Vandré. Ela foi escrita para o filme de Roberto Santos A Hora e a Vez de Augusto Matraga. Como o outro, ele foi realizado depois de um golpe:

Vim aqui só pra dizer
Ninguém há de me calar
Se alguém tem que morrer
Que seja pra melhorar

Ela fecha os dois filmes. Quem não entendeu, "não perde por esperar". Equívoco semelhante, em termos estéticos e políticos, seria supor que o filme propugna a tese de uma suposta essencialidade da violência do Brasil na ação dos moradores de Bacurau. Este erro significa não só igualar a violência dos opressores e a dos oprimidos, mas também equiparar a opressão do mercado e as ações de resistência. O filme é sutil demais para cometer essa falsa simetria.
No final, os moradores tiram fotos das cabeças cortadas. Acácio, incomodado, pergunta a Teresa se ela não achava que se tinha exagerado; ironicamente, ela, a enfermeira, responde ao assassino profissional que... "não". Quando Bacurau (e o Brasil, quem sabe) livrar-se do sistema que o oprime, as armas poderão voltar a serem simplesmente expostas, pelo menos até a próxima necessidade. No exato momento, a opressão ainda não é um assunto de museu, disso não devemos esquecer.

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