O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 28 de novembro de 2020

Os movimentos de moradia e o voto em Boulos e Erundina

Vi recentemente o jornalista Raphael Prado relembrar um vídeo, de que ele escreveu o roteiro para o Uol,  com o perfil de Ivanete, do Movimento Sem-Teto do Centro: https://twitter.com/rapha_prado/status/1329045147603132418

Ele rememorou o perfil por causa de comentário do governador do Estado de São Paulo contra os movimentos dos sem-teto, em observação aparentemente eleitoreira, em razão da candidatura de Guilherme Boulos, que concorre à prefeitura de São Paulo contra o antigo vice de Doria (ele abandonou o Executivo municipal para assumir o governo do Estado), Bruno Covas.
A observação era ainda mais absurda porque Doria invadiu terra pública em Campos do Jordão e foi condenado por isso em 2016.
O vídeo, embora esclarecedor, por ser breve não aborda certas questões que emergiram de forma distorcida (foram muitas) na campanha eleitoral para a prefeitura de São Paulo. Esta campanha opôs um partido historicamente hostil à população em situação de rua, aos trabalhadores ambulantes, aos catadores de papel, e descumpridor das normas de direito urbano, a um líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Trata-se de duas concepções tão antagônicas de cidade, de um lado a excludente e elitista, do urbanismo de e para o capital, e de uma visão do que se chama de justiça social, a partir das classes populares, que a discussão política foi polarizada entre os dois candidatos que chegaram ao segundo turno, entre aqueles que preferem que São Paulo permaneça como está (uma opção pela insustentabilidade e pela miséria vigiada) e os que apostam que ela pode se democratizar.
Claro que a candidatura de Boulos é a que detém o horizonte da utopia, enquanto a outra é a do "não foi bom, eu sei, mas vou insistir". Percalços relativos ao tamanho do partido, Psol, à continuidade política e institucional do outro partido no Estado de São Paulo, e até mesmo de saúde pública (Boulos contraiu coronavírus no fim da campanha), e a conjuntura política ainda favorável aos novos fascismos são alguns dos fatores que fizeram deste nome do MTST uma surpresa em 2020.
Quando vim morar em São Paulo, uma das primeiras coisas que fiz foi tentar ajudar na rede de apoio à Ocupação Prestes Maia, em sua primeira versão, já com Ivanete. Eu cheguei em 2005. O Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC, que não está mais lá, e sim outro movimento, o Movimento por Moradia na Luta por Justiça - MMLJ, de que essa militante participa agora) teve que enfrentar José Serra e, depois que ele largou a prefeitura para assumir o governo do Estado (na tradição tucana de abandonar a chefia do executivo municipal, visto como trampolim para outros cargos, ou simples objeto de negociação política), Gilberto Kassab (que, ironicamente, acabaria nomeado ministro das cidades por Dilma Rousseff).
O primeiro dado que tem sido distorcido nos debates suscitados pela campanha é que não existe um só movimento de luta por moradia. Só em São Paulo, tendo em vista a dimensão da cidade e o notável défice habitacional, há vários. No Prestes Maia, que ficou conhecido no início do século como a maior ocupação da América Latina, nunca esteve o MTST, que é ligado a Boulos. Algumas pessoas, seja por má-fé, seja por loucura ou até mesmo ignorância referem-se aos sem-teto como se fossem uma coisa só, um só movimento, e essa absurdo às vezes ganha proporções nacionais.
Outra distorção é afirmar que o "movimento dos sem-teto", que não é um só, é na verdade o Movimento dos Sem Terra (MST), de camponeses, fazendo uma identificação rasteira, ignorando os atores sociais em jogo, mas também as diferenças grandes entre as moradias urbanas e as rurais, bem como as diferentes formas de produção econômica em espaços tão diversos. Trata-se de outro movimento e não, o Boulos não o lidera.
Esse tipo de confusão, embora flagrantemente absurdo, não deriva de uma suposta atroz estupidez coletiva: ele é produzido socialmente por preconceitos classistas e pelos financiadores dos meios de comunicação, que são em regra veículos de desinformação e incitadores de criminalização dos movimentos sociais.
No entanto, há algo em comum entre esses movimentos: eles, ao contrário dos empresários invasores de terras públicas (alguns deles até se lançam com sucesso na política), reivindicam o cumprimento da Constituição da República, em especial no tocante ao princípio da função social da propriedade e ao direito à moradia. No caso dos movimentos por moradia urbana, destacam-se os artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, a lei federal que os regulamentou, o Estatuto da Cidade (lei 10257/2001) e esta lei municipal, o Plano Diretor.
Essas normas jurídicas estão entre as mais violadas pelos poderes públicos (Judiciário, Executivo e Legislativo, cada um tem seu papel distinto em negar efetividade ao direito brasileiro nas previsões relativas à justiça social) e pelas grandes empresas. Os diversos vídeos que a campanha do Boulos produziu são realmente instrutivos: o MTST ocupa imóveis vazios, com dívidas, que descumprem as exigências constitucionais e legais, para que as instituições ou os regularizem para habitação social ou atenda a população em situação de rua de outra maneira.
Esses movimentos de moradia urbana, portanto, produzem cidade em espaços que, muitas vezes, estavam abandonados. Aqui temos um paradoxo: diante da falta de cumprimento do Direito pelos órgãos públicos, as ações de ocupação pelos movimentos sociais possuem um sentido legalista. Como vi os integrantes do MSTC afirmando, eles saem da lei para fazer cumprir a lei. Isso somente se faz necessário porque as instituições, na prática, violam o estado de direito, o que é o caso do Brasil.
Em 2008, publiquei um artigo que apresentei em um grande evento, a Jornada em Defesa da Moradia Digna, "O pluralismo paradoxal e os movimentos sociais: democracia participativa e o Estatuto da Cidade", em que tentei analisar o problema. Não gosto do início do texto, apressado demais para as questões de ordem sociológica envolvidas. Creio que ele serve, porém, em relação ao que digo sobre o Estatuto da Cidade e na resistência do Estado em fazer cumprir sua própria lei, na medida em que ela serviria para beneficiar os mais pobres, e na necessidade dos movimentos sociais usarem a retórica jurídica e as previsões legais contra o próprio Estado.
Viu-se, nesta época de campanha, agentes de desinformação pública publicando coisas como "veja, este Boulos é um terrorista, quer parcelamento e edificação compulsórios, desapropriação de imóveis"! De fato, essas previsões estão no plano de governo de Boulos e Erundina. Porém, muito longe de configurarem instrumentos de terror, elas estão na Constituição da República (artigo 182) e no Estatuto da Cidade... A desapropriação, por sinal, foi criada na história do direito para garantia do direito à propriedade privada: antes dela, o que os poderes públicos faziam era o confisco. Quando Erundina foi prefeita, o Estatuto da Cidade ainda não existia, o que fez, por exemplo, sua tentativa de instituir o IPTU progressivo malograr. Agora, esses instrumentos podem ser usados pelo Executivo municipal, e a próxima administração virá no momento de rever o Plano Diretor.
A pandemia, creio, reforçou a percepção da importância dessas questões urbanísticas, como o próprio Boulos declarou em entrevista dada a Henrique Frota, João Bazolli, André Arruda em época em que ele ainda não tinha sido escolhido candidato à prefeitura, publicada neste ano pela revista InSURgência, do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais:

Essas eleições  municipais  vão ser muito nacionalizadas, polarizadas com bolsonarismo e antibolsonarismo. É inevitável. Agora eu acho que justamente pela pandemia, o tema da moradia, e o tema do direito à cidade estarão no centro da agenda nacional. Vou te dizer por que: porque nunca o tema sobre condições de moradia para o povo esteve tão em voga quanto num período em que o mundo todo diz: “fique em casa”. Essa foi a palavra de ordem dos últimos três meses no mundo, quatro meses no mundo. Aí vem a segunda questão: “que casa?”. Como que você vai dizer “fique em casa” para alguém em situação de rua? Como é que você vai dizer “fique em casa” para o cara que mora num barraco de 3x4 com outras 4 pessoas? Como é que se vai dizer para ele se isolar nestas circunstâncias? “Lave a mão toda hora!” Como é que se vai dizer pra lavar a mão em um bairro que não chega água, e onde o saneamento básico é precário?

A dignidade de ter um teto é um valor constitucional. Entende-se que, neste período de crise, ela ocupe um papel central na discussão política, e é típico de um país tão desigual que sua importância seja negada pelos poderosos. Os conservadores desceram ao nível lamentável de ter que enlamear a Constituição cidadã de seu próprio país para poderem fazer campanha política... E desinformar o público.
Nesse ponto e em outros, vê-se que esses conservadores são contrários à cidadania, ao contrário da chapa de Guilherme Boulos e Luiza Erundina, e essa é uma das razões por que votarei nela. 

Anos depois, tentei prosseguir naquela reflexão de que 

Os movimentos não reivindicam uma outra ordem jurídica, e sim a efetividade da ordem oficial, enquanto as autoridades públicas, no Judiciário  e  no  Executivo  decidem  e  agem  de  forma  a  violar  o  direito estatal. De baixo para cima, é preciso violar o Direito para tentar que ele  seja  cumprido –as  ocupações  (e  isso  as  distinguiria,  segundo  os movimentos sociais, de simples invasões) seriam o instrumento, embora formalmente ilícito, de dar efetividade ao Direito: a própria legalidade precisa ser construída de forma ilegal. De cima para baixo, temos, ao contrário, a recusa à efetividade do direito constitucional, bem como a violação pura e simples da legislação infraconstitucional e  de  tratados  internacionais  sobre  direitos  sociais  pelas  autoridades públicas –a  produção  legal  da  ilegalidade [...]

Foi uma conferência transformada (reduzida, na verdade) em artigo, "Lugares do direito à cidade e a Filosofia do Direito", em que tentei enfrentar o problema no âmbito desta noção importante do direito à cidade, campo em que as fronteiras do legal e do ilegal são mais claramente cinzentas, ao ponto de os poderes públicos lançarem mão do que chamei de "produção legal da ilegalidade" para negar efetividade ao direito à moradia e à função social da propriedade. Nesse ponto, vê-se o protagonismo dos movimentos sociais na criação do direito, que é uma atividade essencialmente política.
Na época da primeira Ocupação Prestes Maia, eu elaborei para o movimento uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ela acabou não sendo necessária, pois o MSTC chegou a um acordo, com ajuda do governo federal, para que os moradores fossem atendidos. Como a fundamentação jurídica que usei (creio que forma nova) poderia ser invocada em casos semelhantes, quis dar-lhe a forma de artigo, "Ocupações urbanas e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos: o caso Prestes Maia no Brasil", que consegui publicar em uma revista importante, a mais antiga na área de teoria do direito na América Latina, na... Colômbia. Nele, busquei mostrar como o direito à moradia também encontra fundamento no Direito Internacional, e mostrar o desprezo à cidadania que era ostentado pelas autoridades da época, entre eles o secretário municipal de habitação, que disse não ligar para os sem-teto, pois "Tem um monte de sem, eu por exemplo, estou sem carro, que roubaram o meu, estou sem relógio rolex que eu não posso comprar".

É horar de fazer com que os políticos desse tipo fiquem sem mandato. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Morte, banimento e sorriso da grande cantora

I


morreu a grande cantora
seu maior momento
eu o vi
na boate BaiserGlitter
uma jovem travesti
às sete da manhã
invadiu o palco
já estava sendo varrido
invadiu-o para dublar a canção
imitava a tintura da grande cantora
copiava os cílios da grande cantora
era a própria grande cantora no gesto com o polegar
virado para o céu
dizendo talvez
sim

não sei se a jovem travesti
estava a ensaiar
ou se ela já tinha desistido
da noite da performance da boate ou
da grande cantora
lembro que comecei a chorar alto
pois a canção jamais foi ouvida
na voz da grande cantora
mas na de outra

a travesti se enganava com o repertório
ou julgava que tudo que o seu corpo encarnasse
poderia ser entregue em sacrifício
à grande cantora


II

pegava as notas por baixo
a tonalidade nem sempre estável
o nariz a principal caixa de ressonância
a troca do legato pela simples fala
o gosto duvidoso em tudo salvo no cabelo
não era realmente grande
a grande cantora

mas exatamente por isso
o público podia guardá-la no bolso
e quando nele enfiava as mãos
elas saíam quentes


III

rasteiro e limitado
o repertório da grande cantora
só canções de amor
como pretender
que no país de genocidas racistas
misóginos homofóbicos transfóbicos
com militares e banqueiros trocando afagos
enquanto leiloam a terra sob bênções pastorais
como pretender
que neste centro de torturas promovido a Estado
só se cantem canções de amor?

ou talvez por isto ela fosse amada
ter oferecido ao Estado
a trilha sonora mais adequada à devastação


IV

a algumas polegadas da realidade
a grande cantora
na assembleia oficial
entra para cantar
o hino nacional

estivera alguns metros
acima da realidade
todos notariam o desarranjo
perceberiam a loucura
de chamar esta terra de país
e de ela ter um hino
embora cale a voz de quase todos

estivera a grande cantora
metros abaixo da realidade
seguiria a partitura estritamente
e o exílio da imaginação
reiteraria o país

a grande cantora
estava porém apenas algumas polegadas
acima da realidade
a subversão ocorreria milímetro a milímetro
até a derrocada dos palácios

a apresentação começa
a grande cantora
oferece a própria cabeça
em vez do hino


V

a grande cantora tivera prosseguido
se as luzes não fossem apagadas
se o microfone não cortado
e a memória não fosse uma terra de exílio

se o hino não tivesse ficado suspenso
na irresolução tonal
no ritornello aleatório
na letra soluçada pela amnésia

a grande cantora teria chegado ao final
e mostrado ao país
já todo à imagem do hino estropiado
como sair da crise

mas ninguém aceitou
a cabeça da grande cantora
ofertada no sorriso da bandeja


VI

ainda não lemos o testamento
da grande cantora
já roubado das gavetas por palhaços e borboletas

investigação criminal
para descobrir o testamento da grande cantora
nos circos foram revistadas
as cáries dos leões
a maquiagem das bilheteiras
a queda dos acrobatas

rumores de que no testamento da grande cantora
estão os mapas originais da terra
as provas do roubo originário
que chamamos de país

caso de segurança nacional
o testamento da grande cantora
família e Estado procuram-no
para queimá-lo


VII

meus pais tiveram um elepê
da grande cantora
em plena ditadura

ela sobreviveu aos discos
morreu na era das listas de reprodução automática

imbecis ouvem listas
para tratar a música
como ruído de fundo

o fundo das listas
ou os ruídos do mercado
nas jaulas da moda

a grande cantora
nasceu na época do elepê
a censura necessitava
de órgãos do Estado

(o disco de meus pais
nunca o tive
debandado
toca em algum lugar minha ausência)

a grande cantora morreu
quando as listas do capital
tornaram a censura
na própria escuta

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Poesia e memória: A combustão de Clarice Lispector e as folhas reencontradas de Leonardo Gandolfi

Todo ano é de Clarice Lispector, mas 2020 é o centenário de nascimento da escritora. Com os percalços e desafios mundiais deste ano atípico, talvez alguns eventos da comemoração tenham sido adiados ou prejudicados. Mais importantes que os eventos, no entanto, são os textos que nascem em diálogo com a escritora. Entre eles, o que achei de mais impressionante foi um poema, "Robinson Crusoé e seus amigos", de Leonardo Gandolfi, publicado em março de 2020 pela revista Piauí
A poética é bem típica do autor. Com versos livres e brancos, em geral curtos, o tom é de rememoração em voz baixa, com o universo das relações privadas em foco. A ausência de pontuação e a falta de indicação explícita das vozes reforçam esse efeito de que algo forte vem mansamente à tona da recordação. Há duas vozes que falam no poema: a do eu lírico e a de Clarice Lispector.
A primeira parte do poema narra como a mãe vai trabalhar com Clarice Lispector; ouvimos apenas a voz da escritora, mas não a da mãe. Na segunda parte, conta-se a doença da mãe, "o aneurisma/ que a tiraria de cena" e a deixou em coma. Na terceira, fala-se da coleção de folhas secas que a mãe criou. Na quarta, temos Robinson Crusoé e seus pertences. Na quinta, a ação de ninar da filha ajuda a conceber este poema. Na sexta, volta-se ao passado: a mãe arruma os livros de Clarice Lispector, ambas são fumantes e a escritora fala sobre fumar e dormir. Como se sabe, por conta desse hábito, ela sofreria um acidente grave; sobreviveria, mas com boa parte do corpo queimado.
A divisão parece desconcertante, mas o encadeamento é muito bem achado. Alberto Pucheu destacou a "estranheza do vínculo de muitos títulos com seus respectivos poemas" na obra deste poeta (em Do tempo de Drummond ao (nosso) de Leonardo Gandolfi, livro de Pucheu publicado pela Azougue em 2014). Com efeito, o título deste poema também surpreende; mas Robinson Crusoé, embora não tenha sido, evidentemente, criado por Lispector, está completamente no seu lugar: ele também sofreu um grave acidente. Quais são os seus "amigos" aqui? Para a mãe do narrador, Rita, o naufrágio foi o aneurisma e o coma. Para Lispector, o incêndio que sofreu, e a que o poema alude na última estrofe:

não é fumar enquanto se espera 
o sono chegar 
mas sim fumar e dormir 
de uma só vez 
nem que para isso 
eu entre em combustão

Este fim do poema, além da ressonância biográfica, explicita uma poética e um método de criação: ouvir simultaneamente o inconsciente e o fogo, até, no limite, queimar-se. Alguns criadores são desta categoria, a dos que se imolam a criar.
O eu lírico, que desastre terá sofrido? Certamente o da mãe. Ele diz que lia livros para ela em coma: "Prestes a perdê-la/ usei o carimbo/ para colocar seu nome/ na folha de rosto/ dos livros que lia para ela/ durante o coma". Perdidos já o carimbo e esses livros, restou o exemplar de Robinson Crusoé, que se tornou o título e, digamos, a vida exemplar para as que aqui comparecem.
Se esses livros quase todos se perderam, restou parcialmente uma coleção deixada pela mãe:

Entre as coisas
que minha mãe deixou
está uma série de folhas secas
que ela recolhia
de jardins e parques
quando viajava

Em cada uma das folhas
estão anotados
com tinta azul de caneta
lugar e dia
em que foram recolhidas

Sem saber o que fazer, ele guardou as poucas remanescentes entre livros. Como não se recorda de onde estão exatamente, "às vezes/ sou pego de surpresa/ quando ao abrir um livro/ encontro folhas secas/ com a letra dela". Estas folhas escritas encontradas ao acaso no meio de livros, também não representam a literatura, ou ao menos a iluminação que ela pode intermitentemente oferecer? Na seção seguinte, lemos que

Não lembro quem
mas alguém disse
que à noite
todos os poemas são cinza

Se a literatura é o que restou da combustão, a resposta deve ser positiva, com a ressalva de que quem escreveu estes versos da mãe foi o filho. E o filho apenas percebeu como criar este poema enquanto ninava a neta, isto é, a filha dele, que tem o nome lispectoriano de Rosa (lembro especialmente do genial "A imitação da Rosa", apesar do autor de Sagarana):

Se estou aqui
é só para esperar
a próxima vez
em que você vai chorar
a próxima vez
em que você vai sorrir

Enquanto nem uma coisa
nem outra acontece
presto atenção
nos menores detalhes
a minha mão
junto da sua

Aqui, o próprio pai encarrega-se dos cuidados com a filha. Neste ponto, devemos relembrar os versos iniciais do poema: a oportunidade da mãe de trabalhar com Clarice Lispector aparece porque "Minha avó/ trabalha na casa de uma das irmãs/ de Clarice Lispector". Desde o começo, temos a memória familiar posta diante de nós. Mas também a questão do trabalho: avó e mãe realizam trabalhos no espaço doméstico para outras mulheres, e a patroa Lispector com talvez alguma condescendência diz: "Clarice entrega a ela/ com o punho cerrado/ algumas notas e diz// isto aqui Rita/ é para os seus supérfluos".
Esta última palavra volta na quarta parte, sobre Crusoé. O eu lírico, em paralelo à "coleção/ de itens indispensáveis" do náufrago, afirma que irá:

anotar todas as vezes
em que a palavra
supérfluo
aparece nos livros 
de Clarice
e fazer um inventário

O supérfluo análogo ao indispensável para a sobrevivência de Crusoé na ilha. Certamente trata-se da literatura, que se está a fazer aqui, depois de Clarice Lispector. No entanto, há mais: Robinson Crusoé espera "seu fiel escudeiro/ Sexta-Feira"; aqui também tivemos uma relação em que Sexta-Feira, o servidor de outra raça e cristianizado, trabalhava para Crusoé, numa relação desigual, mas de outra natureza, num microcosmo colonialista. Sobre a questão étnica, o poema não vai além disso, embora se possa lembrar que era comum que as mulheres negras, no Brasil, tivessem como uma das poucas opções profissionais que lhe eram abertas o trabalho doméstico. Afinal, a época a que se refere ao poema parece ser a anterior ao incêndio na casa da escritora branca, que ocorreu em 14 de setembro de 1966, e posterior à sua volta ao Brasil depois da separação do marido.
O incêndio faz lembrar de outro ponto comum: trata-se de personagens que tiveram a vida determinada pelo naufrágio, pelo acidente, por uma desventura súbita. Como escrevi, isto aproxima o personagem de Daniel Dafoe, a escritora, a mãe e o narrador deste poema. Ademais, todos eles deixaram folhas que sobreviveram ao naufrágio. Creio que a artista Giorgia Massetani acertou profundamente ao escolher a imagem das folhas secas para acompanhar o poema. Elas encarnam o poema e encontram um equivalente, no conto que mencionei de Clarice Lispector, no buquê de rosas que Laura ofereceria para a amiga Carlota, entregues pela empregada Maria. Como se sabe, as rosas, que são relutantemente presenteadas, desencadeiam a transformação da protagonista: "com os lábios secos, procurou um instante imitar por dentro de si as rosas". O marido, ao chegar no fim da história, somente pôde constatar que sua esposa, embora lá, "já partira".
Neste poema, as folhas guardadas e subitamente reencontradas indicam o contrário, que algo se manteve, se conservou. No entanto, o que Rosa, a menina, está lá a fazer? As estrofes que citei do pai ao lado da filha podem parecer sentimentais no mau sentido. Contudo, elas se justificam: a filha parece muito pequena: como a sua avó após o aneurisma, mas por motivos completamente diferentes, ela não parece capaz de falar, e cabe ao narrador falar por e para ela. Essa necessidade de falar passa pela transmissão da memória que, neste caso, passe de uma mão para outra; como escreveu Carlos Drummond de Andrade, vemos aí "a estranha ideia de família/ viajando através da carne."
Trata-se, porém, apenas a família que assim viaja?  Talvez o punho de Lispector transmitisse mais do que aquelas notas a Rita, talvez os supérfluos adquiridos fossem aqueles livros que, mais tarde, o filho leria para a mãe em coma. Em relação a Rosa, o ninar já funciona como uma transmissão da palavra e, aqui, como criação de palavras novas, as deste poema.
No conto de Lispector, lemos que "Nunca se devia ficar com uma coisa bonita, assim como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração". Gandolfi não reteve para si as folhas, vivas novamente por serem ditas. "Robinson Crusoé e seus amigos" representa um exemplo notável em que a transmissão da memória familiar, em quatro gerações, cruza-se de forma complexa com a literatura e a história social brasileira.