O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Contra o fascismo, as poéticas da memória: a Ilhíada, de Alberto Pimenta


 

Após os oitenta anos, Alberto Pimenta continua a se reinventar a cada livro novo. Ilhíada (Lisboa: Edições do Saguão, 2021) difere de todos as outras obras de Pimenta pela estrutura e pela forma como cruza memória e política.
Estive no Porto apenas em 2007. Conheci, naquela ocasião, o grande Manuel António Pina. Não soube, porém, da existência das ilhas, que me foram apresentadas agora por Alberto Pimenta, a tripla distância: a do Oceano, pois estou no Brasil; do passado (o livro traz memórias de infância e de juventude do autor) e a do texto.
O texto, distância efetiva, consiste também na única proximidade possível. Ele cria novas vizinhanças. Pimenta cria a inesperada e bem sucedida vizinhança das ilhas do Porto com Tróia. O trocadilho do título é mais do que divertido, ele estabelece o sentido do poema, desde sua estrutura. Hugo Pinto Santos, para O Público, e Teresa Carvalho, em o Jornal i, destacaram que o livro se divide em 24 unidades, o mesmo número de livros de A Ilíada, esclarecendo, claro, que não se trata de emular Homero. Pimenta há décadas refere-se à literatura clássica, seja como poeta, seja como ensaísta.
Há alguns pontos de contato: Teresa Carvalho escreve que o personagem de Rodrigo, que foge da polícia e recebe um tiro no tornozelo, não deixa de lembrar, em registro bem diferente, o destino de Aquiles. Para mim, no entanto, o principal paralelo é o de que estas ilhas também estavam sitiadas, e este poema longo de Pimenta (o livro tem 184 páginas) corresponde à memória desse sítio, desta singular forma de guerra, que é a do fascismo contra sua própria população, com alusões à Segunda Guerra Mundial. Aqui, até mesmo o câncer ("cancro") é descrito em linguagem de guerra (na seção com o mesmo número do Arcano da Morte do Tarô, o décimo terceiro).
Por sinal, na discussão que abre o livro ("Átrio"), o autor esclarece o seu lado: "as ilhas em que se habita, como são as da cidade do Porto, não são um tema bizarro, senhor Professor; são como os honestos troianos, acossados por hordas de pretensiosos gregos". Talvez a forma do diálogo já sirva para lembrar a literatura clássica, com uma ironia que é toda de Pimenta, bem como as alusões que se seguem. A primeira seção da "Ilhíada: versão integral" (subtítulo que vem do autor da Obra quase incompleta), intitula-se "musa, dá-me só uma"; a última trata da "Ilha da Travessa das Musas"; no final, ela é posta a descansar.
No poema, em vez de heróis, temos, em um registro antimonumentalizante, pessoas comuns: pescadores, prostitutas, vendedores, padeiros, pequenos golpistas, formando um panorama social cuja riqueza é sugerida pela variedade impressionante dos registros da poética de Pimenta. Destaco a felicidade das transições entre as passagens prosaicas e as líricas; todas elas cabem muito bem na variedade do verso deste autor.
Trata-se, como dizia, da memória de uma "guerra" do Estado fascista contra a população local, com episódios de remoções forçadas, torturas, execuções (extra)judiciais. No Fascismo, polícia e justiça confundem-se. A Pide lá está ("não é pide, mas pode", escreve na décima primeira seção), a censura também ("já lhe passaram pelas mãos imensas/ edições clandestinas", na vigésima parte), e o povo daquelas ilhas é tratado como inimigo interno (faço uma nota: no Brasil, o paralelo atual seria a polícia militar, que também trata a população, especialmente a periférica, dessa forma), o que diz respeito ao momento da Guerra Fria em que se passam as histórias do poema.
Já na primeira seção, um Cipriano, que gostava de falar com as crianças, é subitamente preso pela "polícia de defesa", que o acusa de "sedução de menores", e não retorna jamais.

[...] e todos foram a repetir: – quando 
alguém vai preso, quando é que sai? o Tiago perguntou 
ao pai: – por que é que queres saber isso? perguntou por 
sua vez o pai. –  levaram alguém preso agora ali em baixo! 
– sei lá.... e que é que te importa? vai mais é jogar tu e o 
com a tua pistola d'água, vai! [...]

Os adultos preferem não tratar do assunto. Depois vemos uma florista presa e as especulações no primeiro AD L....:

seria por estar a
incomodar
ou
por vender
sem licença,
ou
por ser comunista,
hipótese apurada
pelos mestres das devassas...
ou por tudo isso?
era sabido que
da cela de castigo
mal se saía,
ou saía-se mal.

Um exemplo de sair-se mal, da seção da ilha "que havia nos Lóios":

o Beto perguntou ao pai se sabia que ele,
o Feliciano, tinha um olho de vidro; o pai
ficou calado. e o Beto contou como pôde o que
ele tinha dito: – foi há muitos anos, foi num
interrogatório da polícia, o nome então era pide
;
o Beto não sabia o que era, e o Feliciano explicou
que era uma polícia à paisana, apanhava melhor
quem não estava a dizer o que devia; [...]
Os mais velhos, de novo, preferem não falar do assunto. A sombra da censura é longa.
A respeito das licenças, a décima seção, sobre a ilha do Pé Descalço, contém uma das histórias mais terríveis: o engraxador Eliseu tem seus instrumentos de trabalho confiscados por um policial, por falta de autorização (segundo as categorias de O discurso sobre o filho-da-puta, trata-se de um exemplo daquele especializado em não deixar fazer). Eliseu, para pagar a multa, precisou vender os próprios sapatos e ficou descalço: a caixa confiscada, porém, nunca aparecia no posto. Fica doente, pois descalço; no hospital, deixam-no cair; é transferido e perdido na burocracia do sistema de saúde; enfim conseguem achar a certidão de óbito.
O caráter arbitrário das prisões, na verdade sequestros em que está presente a possibilidade do desaparecimento forçado, corresponde, no plano do indivíduo, às remoções forçadas que as coletividades dessas ilhas sofrem. Na nona seção: "desmantelada a ilha, aí estava o lugar/ que há muito tempo era ambicionado:/ o espaço ideal para os carros oficiais." O estigma que lhes é lançado serve a justificar tais operações: "e pense como quiser que falo da cidade/ ou só das ilhas, todos julgam que isto/ são antros à beira da miséria, doença,/ e crime, e não é bem assim", lemos na vigésima parte. Ou, na vigésima terceira, "há buracos escavados na/ rocha, é muitas vezes o refúgio dos que/ não têm casa, ou a humedecida palha de/ estábulos sem gado, sem falar de sótãos,/ e caves abaixo do nível do chão". Tais são as condições do desabrigo, que não deve ser divulgado, sob pena de prisão:
às vezes a mãe decidia aliviar, 
dizia: – olha que algemado 
não tem nada que ver com gema, 
de que tu tanto gostas 
nas conchinhas que a madrinha traz!
Nesse contexto, a tevê é chamada de "Tudo Vê" e integra o sistema com sua função de impor as versões da polícia. Esta ocorre na décima nona seção do poema:
[...] à frente, lá ia a Renata, e
empunhava como A Liberdade condutora do
Povo
na pintura de Delacroix, a bandeira;
mas não foi ela que empurrou o polícia com
o pau da bandeira, como alegou a Tudo Vê,
cumprindo o dever: não viu, viu o que devia;
pois foi o polícia que viu-a tropeçar, e ir só
com a mão livre ao chão, ergueu a biqueira
da bota e deu-lhe com ela na barriga [...]

A repressão à manifestação, a recusa ao atendimento médico e a morte causada pelo Estado fascista em sua dupla face do poder policial e do poder médico são coroadas pela requisição das joias da defunta. 
Hugo Pinto Santos e Teresa Carvalho destacam os interlúdios entre as seções, intitulados inicialmente AD LITTERAM e AD LIBITUM, e depois apenas AD L.......... (creio que os dois sentidos estão presentes). Todas essas partes intermediárias, menos a última, terminam com a palavra "fim" (neste, a palavra vem separada, mas Ilhíada ainda oferece um "quolibet" para repouso da musa).
Trata-se de um poema longo. A divisão em histórias, confere, no entanto, certa autonomia às partes. Na vigésima seção, que já citei, temos os "vinte anos começados" do eu lírico e uma história impressionante pela maneira como Pimenta combina amor, miséria, referências da arte ocidental (Bocage, Leonardo da Vinci, Petrarca, A Dama das Camélias...), doença e morte. Não sei se é o ponto mais alto do livro que, de qualquer forma, sustenta-se em seu conjunto. A vigésima segunda distingue-se das outras por ser mais leve e engraçada: na ilha de Cedofeita, o menino Tiago quer saber do que é feito o nevoeiro: pai, mãe e professora ignoram-no, mas o padre não tem dúvidas de que Deus fez todas as coisas! O menino conjectura se não poderia ser "obra do mal"... No fim, Tiago está na posição divina de descansar e ver "que era bom".
O nevoeiro pode ser na Ilíada uma imagem da morte, ou até um recurso dos deuses para intervir disfarçados (Apolo disfarça-se assim). Podemos pensar nele como uma imagem que indica como as pessoas não estão a ver bem (o que é o caso de todos aqueles personagens menos do menino, que percebe a ambiguidade do fenômeno). No entanto, como se trata de um poeta português, lembramos antes do "Nevoeiro" de Fernando Pessoa, um poema da crise do país ("Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro...") e a contribuição do cristianismo para o enevoado obscurantismo satirizado no poema de Pimenta.
É claro que Ilhíada nada tem de sebastianismo místico, ao contrário de Mensagem. No entanto, talvez não seja abusivo lembrar que "Nevoeiro" relaciona-se com a decepção de Pessoa em relação à situação política de Portugal, recém-desabado no fascismo de Salazar. Para Pimenta, décadas depois, o regime é principalmente matéria da memória; para o outro poeta, na primeira metade da década de 1930, trata-se da atualidade que inspira o desencanto do livro e do país.
Muito haveria a falar sobre este poema, porém não me visitaram as Musas. Termino, pois, com este trecho da parte final desta obra que faz lembrar, a todo momento, que elas eram filhas da Mnemósine:

as musas não falam, como poderiam dar
o que dão em tantas e tão diversas línguas;
não falam, põem a falar, mas fogem à fala
que não foi obra delas; passar sim passam,
como eu comecei por sentir, mas só elas o
sabem fazer, pondo a falar quem as sentiu.

Sem a memória. não temos a poesia e a história (e nenhum outro dos domínios das Musas), como os gregos bem sabiam, mas tampouco uma política antifascista, que não pode ser feita com o esquecimento ou o apagamento dos crimes do passado. É disto que Pimenta nos recorda sempre, em lição sempre atual: os fascismos de hoje, no Brasil e alhures, necessitam da falsificação do passado para oprimir no presente.


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