O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Desarquivando o Brasil CLXXXI: Eny Moreira, direito, ditadura e política

Morreu Eny Moreira em 4 de janeiro de 2022, com 74 anos. Dilma Rousseff lembrou do papel da advogada na articulação do Brasil: Nunca Mais. Lula homenageou-a mencionando também a fundação e presidência do Comitê Brasileiro pela Anistia em 1978, bem como sua participação na Comissão da Verdade do Rio, que apresentou um relatório final em 2015. Outra advogada de presos políticos, que havia sido membro da Comissão Nacional da Verdade, foi sua colega nessa comissão estadual: Rosa Cardoso.

Bernardo Mello Franco, em O Globo, destacou a coincidência de ela ter morrido dias depois de um nome da ditadura militar, general Nilton Cerqueira (um dos arrolados pela Comissão Nacional da Verdade entre os 377 autores de graves violações de direitos humanos).

Que o caso do Riocentro (onde se planejava um massacre por bombas cuja autoria seria atribuída a um grupo extinto da esquerda armada, o que poderia levar ao fim a abertura política) tenha sido trancado sem que Cerqueira, entre outros militares, tenha sido processado, é uma das vergonhas históricas de um país sem justiça de transição.

Escrevo, porém, esta pequena nota para lembrar de outra questão. Deve-se lembrar que ela fazia parte de um reduzido grupo. O relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" contém um capítulo sobre a atuação dos advogados de presos políticos, que eram poucos. Eny Moreira, que trabalhou no escritório de Sobral Pinto na época da ditadura, é citada justamente a respeito da concepção do Brasil: Nunca Mais, que reuniu e analisou processos de presos políticos na Justiça Militar. Sobre o tema, pode-se assistir ao depoimento concedido ao portal Armazém Memória

O depoimento revela o papel da articulação internacional para a realização do Brasil: Nunca Mais, bem como para a assistência aos exilados e banidos brasileiros no exterior. Nesta ficha do DEOPS/SP, é justamente a preocupação com o retorno dos exilados que é destacada:


A ficha está no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Eny Moreira viajou por onze países para tratar da questão dos exilados brasileiros. Esta Informação da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça, de agosto de 1978, trata de entrevista que ela deu a uma rádio sueca:


O documento, assim, como seguinte, está no Arquivo Nacional. A análise oficial era típica da época: "os contatos mantidos pela dra. ENY MOREIRA no exterior com entidades e pessoas engajadas em movimentos de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, repercutirão negativamente, mostrando um quadro distorcido da realidade brasileira, proporcionando, em consequência, um clima de hostilidade ao regime de governo vigente no BRASIL.". 

Ademias, previa-se que viriam milhares de pessoas; este é trecho de informação do Ministério da Justiça, do mesmo mês:


A preocupação da ditadura com a imagem internacional revela-se nesse documento, bem como em diversos outros: a tentativa de impor uma imagem internacional democrática, ao mesmo tempo em que evitava os instrumentos do direito internacional dos direitos humanos. Analisando esse material, chamei essa estratégia de isolacionismo deceptivo. A articulação com organizações estrangeiras era, portanto, uma saída importante para os advogados de presos políticos para denunciar o governo.

O que nos leva a outro ponto: não só os opositores eram tratados como inimigos do Estado, mas também seus advogados. Paula Spieler e Rafael Mafei organizaram um livro que contém depoimentos de advogados de presos políticos, Advocacia em tempos difíceis: Ditadura militar 1964-1985, publicado em 2013, que pode ser baixado nesta ligação. Ela diz: "O que eu posso te dizer, sem receio de errar, é que raríssimos foram os advogados que não foram presos. Eu fui presa duas vezes. Sobral Pinto foi sequestrado. Heleno Fragoso, Sussekind Morais Rego, George Tavares foram sequestrados. Evaristo de Morais foi preso."

Afinal, era uma ditadura. A luta pelo exercício das prerrogativas profissionais, nesse contexto, integrava o contexto maior da luta pela democracia. Eny Moreira viu bem esse quadro e nele se inseriu com uma atuação importantíssima no cruzamento entre direito e política.

Em 2020, Liora Israël publicou À la gauche du droit: Mobilisations politiques du droit et de la justice en France (1968-1981) (Paris: Éditions EHESS). O notável livro trata das relações entre direito e política na França no período mencionado, incluindo as articulações dos juristas identificados com a esquerda com movimentos sociais e outros juristas.

Uma das questões colocadas em xeque nessa época foram as prerrogativas profissionais dos advogados e o direito de defesa. Um dos casos analisados é o de Klaus Croissant, advogado de extremistas de esquerda, que fugiu da Alemanha Ocidental em 1977 e requereu asilo político ao governo francês; a França, no entanto, extraditou-o para essa Alemanha.

O caso de Croissant é bem diferente dos advogados de presos políticos no Brasil. Dito isso, é importante pensar como o anticomunismo nas democracias burguesas, nessa época de Guerra Fria, levou a alguns problemas jurídicos parecidos com o que gerava o anticomunismo de uma ditadura na América Latina. Posso destacar, entre vários outros, este trecho do livro de Israël, em tradução minha:


Questões aparentemente abstratas ou internas da profissão, como a deontologia jurídica, a relação entre o cliente e o sigilo profissional, adquiriram uma dimensão simultaneamente dramática, política, concreta e eminentemente sensível. As múltiplas facetas da atividade de advogado e a polissemia por demais negligenciada do termo "defesa" foram então reveladas e colocadas no cerne do debate público e político, ultrapassando o caso particular do advogado do inimigo público número um de um país vizinho.


Até que ponto as democracias ocidentais estavam a ponto de levar a sério o seu próprio Direito? Ou, o que é também interessante, até que ponto as mobilizações do direito pela esquerda não significavam levar a sério o Direito, e que ele não pode ser confundido com a ordem no campo dos direitos humanos (sobre isso, Liora Israël resgata Foucault)?

Pensar nessas questões e no exemplo e no legado de Eny Moreira é uma das tarefas teóricas e políticas de hoje. Não à toa, a extrema-direita no poder no Brasil ataca não só defensores de direitos humanos (categoria muito maior do que a dos bacharéis em Direito aprovados no exame da Ordem dos Advogados), bem como a própria OAB.


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