O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

O (des)tombamento da Bela Vista e o condomínio Praça dos Franceses

 Um bairro sob ataque:


No início deste século, depois de intensa mobilização da sociedade civil, o bairro da Bela Vista foi tombado por meio da Resolução da Secretaria Municipal de Cultura SMC/CONPRESP nº 22 de 13 de dezembro de 2002. Foram estabelecidos três níveis diferentes de proteção para certos imóveis e as áreas envoltórias. 

Há alguns anos, porém, a especulação imobiliária, em geral fomentada pela expansão do metrô, tem colocado o bairro sob ataque, e a Prefeitura não tem cumprido seu dever de preservar o patrimônio histórico e cultural. 

O CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) não tem correspondido às demandas da sociedade pela preservação da memória da cidade. O Coletivo Salve Saracura, em razão de empreendimentos imobiliários liberados pelo Conselho na área do Grota do Bixiga em 2021, lançou a nota pública “O Bixiga sob ataque”, assinada por mais de cinquenta associações, instituições e grupos, como o Teatro Oficina, a Escola de Samba Vai-Vai e a Casa de Dona Yayá - Centro de Preservação Cultural da USP, repudiando essas decisões do CONPRESP.

Esses ataques à memória do bairro também põem em risco a vida dos moradores porque as características geológicas e hidrológicas da região poderão provocar desmoronamentos, se essas construções forem erguidas.

A judicialização desses empreendimentos tem sido o resultado dessa atuação da Prefeitura favorável à especulação imobiliária e contrária aos interesses da preservação da cultura e da memória urbanas, bem como da própria vida dos moradores.


O ataque chega ao condomínio Praça dos Franceses:


No ano seguinte, em 2022, a resolução de tombamento do bairro foi alterada por esse Conselho, com destaque justamente para a área que concerne ao Condomínio Praça dos Franceses:


Artigo 1° - AJUSTAR E DETALHAR a Resolução 22/Conpresp/2002, apenas no que concerne às diretrizes relativas aos muros e encostas protegidos na Rua Almirante Marques de Leão, no Setor 009, Quadra 019, pelo inciso IV do art. 1º da referida resolução, sendo que para tal, altera pontualmente a redação dos artigos 1º; 3º; 7º e 9º da Resolução 22/Conpresp/2002, de tombamento do bairro da Bela Vista.

Artigo 2° - O inciso IV do artigo 1º da Resolução 22/Conpresp/2002 passa a vigorar com as seguintes alterações:

IV. Encostas e Muros de Arrimo da rua Almirante Marques de Leão (Setor 09/Quadra 19) (NP1), que passam pelos lotes especificados em tabelas abaixo. [grifos nossos]


A parte que colocamos em negrito corresponde ao trecho que foi adicionado à Resolução de 2002. Essa “especificação” visa retirar a proteção do tombamento aos muros atrás do condomínio Praça dos Franceses. 

Outra alteração da Resolução pode abrir as portas para enfraquecer a proteção das encostas e muros de arrimo, ao permitir “intervenções pontuais”:


Artigo 5° - Ao artigo 9º da Resolução 22/2002 passa a vigorar com o seguinte acréscimo na redação, com o item que segue:


- No caso de encostas e muros de arrimo, visando sua conservação e manutenção, intervenções pontuais, quando justificadas, poderão ser realizadas, desde que não impliquem em sua descaraterização. [grifos nossos]


Essa previsão, em princípio, é redundante, pois o dever de manter os bens tombados decorre diretamente da legislação federal de loteamento, o Decreto-Lei n. 25 de 1937. No entanto, ela pode ensejar sua má aplicação: pode acontecer que mudanças sejam aprovadas pelo CONPRESP, embora efetivamente descaracterizem o bairro, se os conselheiros entenderem que são “pontuais” e justificáveis.


Uma Resolução com endereço determinado:


Pode parecer estranho que o CONPRESP tenha se dado ao trabalho de criar uma Resolução para descaracterizar como bens tombados as encostas e muros de arrimo da Almirante Marques de Leão. A 755ª reunião ordinária do Conselho, que discutiu as mudanças, no entanto, deixou clara a razão.

Na ata da reunião, lê-se que a mudança está sendo feita por causa da pressão do Ministério Público em relação ao terreno atrás do Praça dos Franceses: “O Dr. Fábio Dutra pede a palavra e esclarece que o Conselho está atendendo, inclusive, a uma demanda do Ministério Público em relação ao terreno que fica abaixo do empreendimento Praça dos Franceses, construído antes do tombamento da Bela Vista, e consta na resolução como área de encosta e, no entanto, isso nunca foi verdade.”

A ata inclui também a opinião do vice-presidente do CONPRESP: “O conselheiro Orlando esclarece que as alterações sugeridas não se tratam de modificação da incidência que já está imposta na resolução, mas de um detalhamento do texto da resolução”.

No vídeo da reunião, pode-se ver que a Resolução nova foi feita tendo em vista justamente a obra que a Canopus deseja realizar no terreno atrás do Praça dos Franceses. O vice-presidente do CONPRESP foi bem explícito:


[...] porque ali, essencialmente na Almirante Marques Leão, nós tivemos uma confusão inclusive com uma incorporadora que acho que já tem desde 2018 uma autorização, Conselheiro Rubens, para fazer uma construção ali e justamente ela foi impedida de continuar porque a gente não tinha esse detalhamento das encostas e dos muros e a parte da encosta dela, que é onde ela vai fazer essa edificação, atrás daquele condomínio dos Franceses, na rua dos Franceses, ela ficou então impedida por causa da carência desse individualização que foi feita agora em apartado [...]


Uma resolução com endereço determinado, portanto, movida pela tentativa de viabilizar a obra de uma construtora determinada (Paixão, em visão do futuro, diz que ela “vai fazer” a obra, como se o CONPRESP fosse o órgão decisivo para o licenciamento do empreendimento em questão), e não exatamente pela necessidade de preservação do bairro. A estranheza da declaração é sublinhada pelo fato de o terreno em questão apresentar, como outras regiões do bairro, condições geológicas que podem ensejar desmoronamento e ameaçar a vida dos moradores.


Um “destombamento” inconstitucional:


Também no vídeo da reunião, pode-se ver que Orlando Corrêa da Paixão insistiu mais de uma vez que a Resolução de 2022 não seria uma alteração da original de 2002, e sim mero “detalhamento”, embora isso seja falso: a alteração ocorreu, com o destombamento daqueles muros da Almirante Marques de Leão. Se fosse de fato uma simples pormenorização, a Resolução nova seria válida. Como não é o caso, ela é nula.

Por se tratar de destombamento, a resolução do CONPRESP feriu as diretrizes constitucionais da preservação do patrimônio: o parágrafo primeiro do artigo 216 da Constituição da República exige a “colaboração da comunidade" para promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro. O próprio Estatuto da Cidade coloca o tombamento sob o princípio da “gestão democrática das cidades”.

O fim do tombamento só poderia ter sido aprovado depois de audiência com a comunidade interessada. Porém, a discussão pública, exigência legal e democrática, foi impedida pela Prefeitura pelo fato de o destombamento não ter ocorrido às claras, mas sob a forma juridicamente irregular de “detalhamento” de resolução antiga.

O “destombamento” é raro no Direito brasileiro. É possível encontrá-lo na jurisprudência como razão de crime de improbidade do chefe do Executivo, como o Prefeito, se ele extinguir o tombamento ilegalmente. No entanto, se o Prefeito tem o respaldo do órgão técnico da Prefeitura, mesmo que o parecer técnico não seja correto, ele não responde por crime de responsabilidade. O CONPRESP concedeu, neste caso, esse respaldo.


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