O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCII: A Vala de Perus e os cemitérios sepultando a memória política

No dia 4 de setembro de 2024, ocorreu o aniversário de trinta e quatro anos da abertura da Vala de Perus. A descoberta dessa vala clandestina foi uma das confirmações do que os familiares de mortos e presos políticos afirmavam há anos: a ditadura militar matava e escondia os corpos. O Município de São Paulo participava dessa operação de crimes de lesa-humanidade por meio de seu sistema funerário, onde os restos mortais eram ocultados.

A Vala foi descoberta graças a Antônio Pires Eustáquio, funcionário que desconfiou das inumações sem registro de sacos de corpos no local. Por essa razão, ele foi homenageado em 2023 pela Câmara Municipal de São Paulo. 

A abertura da Vala aconteceu em 1990, na prefeitura de Luiza Erundina. Antes dessa primeira mulher prefeita da cidade, não havia condições políticas para isso. Deve-se lembrar que seu antecessor foi Jânio Quadros, cuja gestão autoritária levou a uma prorrogação da ditadura militar no Município de São Paulo, segundo a Comissão da Verdade da Prefeitura. 

Criméia de Almeida e Antônio Pires Eustáquio

Lá não havia 1049 corpos; esse era o número de sacos, e em alguns deles há mais de um indivíduo. E eles não eram todos opositores políticos, que são a minoria neste universo que inclui indigentes, mortos pela epidemia de meningite, assassinados pelo esquadrão da morte, ou seja, os indesejados da ditadura. 

O descaso com que esses remanescentes ósseos foram tratados no Unicamp (a primeira instituição que tentou identificá-los), no tempo em que ficaram lá, levou a mais misturas. Cito a respeito um capítulo do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva", "A Formação do Grupo de Antropologia Forense para Identificação das Ossadas da Vala de Perus", escrito pela primeira equipe do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense da Universidade Federal de São Paulo que trabalhou com eles:

Em 2013, a Associação Brasileira de Anistiados Políticos (ABAP), a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, o Ministério Público Federal, com a participação da Polícia Federal, solicita à Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) um diagnóstico, a partir de 21 caixas com suspeitas de ser um desaparecido político, com base em amostra selecionada na etapa da Unicamp e refinada pela USP. Além disso foi feita uma avaliação das fichas de análise originais produzidas pela Unicamp. O resultado fora alarmante: muitos dos ossos nunca haviam sido limpos, estavam mofados e com fungos, as caixas molhadas, a umidade gerada por inúmeros plásticos grossos que envolviam os conjuntos ósseos também causou diversos danos, assim como sacos de tecidos que os envolviam acabaram por aderir aos fragmentos de ossos afetando a integridade dos mesmos; nas 21 caixas havia uma mistura de ossos, representando, portanto, 22 indivíduos; do conjunto, onde estaria suspeito de ser um desaparecido do sexo masculino, havia quatro mulheres e, na classificação etária havia pessoa com mais de 55 anos e um subadulto menor de 20 anos (EAAF, 20135). Ainda em 2013, um dia depois de um ato inter-religioso em homenagem às vítimas da ditadura, o columbário do Araçá fora invadido por pessoas até hoje não identificadas, o que evidenciou a vulnerabilidade em que se encontravam os remanescentes ósseos.

Essa primeira equipe, formada em 2014, era formada por Rafael Abreu Souza, Márcia Lika Hattori, Ana Paula Moreli Tauhyl, Luana Antoneto Alberto, Marina Di Giusto, Marina Gratão, Aline Feitoza Oliveira, Felipe Quadrado, Patrícia Fischer, Mariana Inglez e André Strauss.

O trabalho de identificação dos remanescentes, que é um dever oriundo do direito à memória à memória e à verdade, sofreu percalços também depois de 2014; na volta dos militares ao poder, com a tomada de poder por Bolsonaro, ele ficou praticamente paralisado. Agora retornou. 

O ato de 4 de setembro de 2024 foi organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, a Comunidade Cultural Quilombaque e o Projeto de Identificação de Remanescentes Ósseos do CAAF-Unifesp. 

Eu estava lá. A administração do cemitério Dom Bosco tentou IMPEDIR o registro do ato, que ocorreu no singelo memorial, um muro com uma inscrição no local onde era a vala, longe da área de velório. Amelinha Teles, da Comissão de Familiares, telefonou para o secretário municipal de direitos humanos e conseguiu a liberação.

A tentativa de censura é uma consequência da privatização do serviço funerário municipal, que não teve como consequência apenas o aumento do custo e a perda de qualidade no atendimento à população, mas também essas restrições de caráter político, embora o monumento, ele mesmo, não tenha sido privatizado.

Amelinha Teles, Adriano Diogo, Tereza Lajolo falaram da história da Vala. Lajolo foi a relatora da histórica CPI da Vala de Perus, criada em 1990 na Câmara dos Vereadores para investigar esse crime da ditadura; meu telefone tinha pouca memória, por isso não consegui gravar nada de sua fala, que foi a mais didática em explicar as descobertas da CPI. 

Tereza Lajolo e Aline Feitoza Oliveira

Laura Petit falou dos desaparecidos do Araguaia (entre eles, seus três irmãos; apenas Maria Lúcia Petit foi encontrada); Criméia Alice Schmidt de Almeida, ela mesma ex-guerrilheira do Araguaia, também. Vivian Mendes falou do aniversário de morte de Manoel Lisboa e Emmanuel Bezerra, dirigentes do Partido Comunista Revolucionário; ele seria rememorado no mesmo dia, às 15 horas, no cemitério Campo Grande, também em São Paulo.

Vivian denunciou que a administração do cemitério Campo Grande não sabia do memorial para os mortos da ditadura que lá existe e que, evidentemente, está em mau estado de conservação. Ocorre o mesmo com a memória política da ditadura, que os monumentos para os mortos e desaparecidos materializam e os remanescentes ósseos encarnam.

Cleiton Fofão falou do trabalho cultural que faz na Quilombaque com a memória dos Queixadas e da Vala de Perus, e da importância de Antônio Pires Eustáquio, e denunciou o apagamento do memorial de grafite (que será refeito) pela administração atual do Dom Bosco.

A imprensa não estava lá em Perus. Ela participa do esquecimento desta memória política da luta contra a ditadura. Estes singelos vídeos talvez sirvam de lembrança.









segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCI: Um livro premiado e um relatório desaparecido: a tese de Mônica Tenaglia e o relatório da Comissão da Verdade "Rubens Paiva"

O livro As comissões da verdade e os arquivos da ditadura militar brasileira, de Mônica Tenaglia, que a UnB publicou em 2024, ganhou menção honrosa no prêmio Capes de teses em 2020 na área de Ciências Sociais Aplicadas I e venceu o primeiro Jabuti Acadêmico, em agosto de 2024, na categoria de História e Arqueologia.

O tema é importantíssimo: os arquivos e as comissões da verdade brasileiras. As comissões, a partir do trabalho de décadas dos familiares de mortos e desaparecidos políticos (coligido no Dossiê Ditadura), pesquisaram e produziram uma documentação sobre graves violações de direitos humanos que serviu de fundamento para as movimentações no incipiente campo de justiça de transição no país. Por se relacionarem com o direito à memória e à verdade, o acesso e a disponibilização dos acervos das comissões correspondem a uma necessidade da democracia. 

A Revista do Arquivo [do Estado de São Paulo] publicou em 2016 volume sobre o assunto, do qual um artigo aparece entre as fontes da tese, mas não o texto que prefigura a problemática da autora: "A ditadura revisitada" já analisa se as comissões trataram dos arquivos em suas recomendações e como ocorreu o acesso à documentação na pesquisa.

Tenaglia trabalhou com relatórios de nada menos do que vinte comissões da verdade. Escrevo esta breve nota porque me surpreendeu que as informações sobre uma das comissões da verdade para que trabalhei, a do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", estivessem em geral equivocadas.

Aparentemente, ela não encontrou o relatório inteiro da Comissão: a autora diz que ele tem 1912 páginas (p. 147 do livro físico; p. 122, da tese na biblioteca virtual da UnB), mas esse número corresponde a apenas o primeiro tomo (o terceiro, com as transcrições das audiências, é muito mais longo, e o quarto não é nada curto) e sem a introdução, como se pode ver no texto disponível portal Memórias Reveladas, que não possui o relatório completo da Comissão "Rubens Paiva": https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/estaduais/comissao-rubens-paiva-tomo_i_completo.pdf

Na ficha sobre a Comissão, Tenaglia afirma que não encontrou a nota metodológica (p. 146; p. 122, da tese na biblioteca virtual da UnB), que, de fato, não aparece em uma seção separada, mas existe e está na introdução do relatório, que aparentemente não foi encontrada - e nem poderia ter sido, se a pesquisadora só leu o texto de 1912 páginas, que contém os capítulos temáticos, mas é estranhamente desprovido dessa seção.

Tenaglia afirma que a Comissão não apresentou recomendações aos arquivos (p. 252 no livro físico; na tese disponível na biblioteca virtual, p. 211); no entanto, o que ela identifica e lista como "recomendações das comissões da verdade aos arquivos" podem ser encontradas em versões análogas no relatório da Comissão "Rubens Paiva"; listo-as:


Introdução:

- Imediata abertura de todos os arquivos da ditadura, em especial da polícia técnico-científica do Estado de São Paulo.

Capítulo O financiamento da repressão

6. Que sejam abertos todos os arquivos que existirem sobre a formação da Operação Bandeirante (Oban), sendo nomeados os seus financiadores.

Capítulo Métodos e técnicas de ocultação de corpos na cidade de São Paulo

3. Criar políticas públicas que auxiliem em formas de organização e documentação dos cemitérios públicos (mapas/plantas dos cemitérios, livros de registros dos sepultamentos e demais documentação);

Capítulo A formação do grupo de antropologia forense para a identificação das ossadas da Vala de Perus

13. Fomentar políticas públicas que auxiliem em formas de organização e documentação dos cemitérios públicos (mapas dos cemitérios, salvaguarda da documentação como os livros de registro de entrada);

Capítulo A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil

4. Abertura dos documentos sobre a Guerrilha do Araguaia;

5. Investigação e responsabilização pela queima de arquivos relativos à Guerrilha do Araguaia;

Capítulo As violações de direitos dos povos indígenas

9. Destinação de fundos para fomento à pesquisa e difusão sobre as graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, incluindo pesquisas acadêmicas, obras de caráter cultural e a reunião de documentação pertinente;

Capítulo A atuação dos advogados na defesa dos presos políticos

4. Abrir e investigar os arquivos militares e os arquivos vinculados à Operação Condor para apurar os crimes de estado que se deram fora do aparato do judiciário;


Essas recomendações temáticas aparecem duas vezes no relatório: no final dos respectivos capítulos e, para que pudessem ser lidas todas em conjunto, no final da introdução. Lembro que na enquete que fiz em 2018 com pesquisadores de treze comissões da verdade para a InSURgência, revista do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), Maria Amélia de Almeida Teles (a Amelinha) reiterou que as recomendações sobre documentação não estão sendo cumpridas - assim como as outras.

Tenaglia afirma que "não foi possível localizar os acervos documentais de outras comissões da verdade locais no portal [Memórias Reveladas]" (p. 283 do livro físico; p. 208 da tese na biblioteca virtual da UnB), e que só o relatório da Comissão Nacional estaria lá. Trata-se de um equívoco. O portal, de fato, não tem todas, mas algumas estão lá, inclusive aquelas 1912 páginas da Comissão "Rubens Paiva":

Comissões estaduais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/estaduais/

Comissões municipais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/municipais

Comissões regionais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/regionais

A tese foi defendida em 2019; não lembro se naquele momento a informação não estava disponível; uma vez que o texto não foi realmente atualizado para a publicação do livro de 2024 (a ficha de meu exemplar físico indica esse ano; mas a versão digital é anterior, de 2023), talvez uma interrupção da disponibilidade explique esse erro.

Mais adiante, vemos que a autora pediu ao Poder Executivo informação sobre o acervo da Comissão "Rubens Paiva" e recebeu a resposta de que "não havia responsabilidade do estado pela informação solicitada" (p. 284; página 208 da tese na biblioteca virtual), o que era correto, pois se tratava de uma comissão do Poder Legislativo e o princípio da separação dos poderes aplica-se à questão. Provavelmente ela deixou de fazer o pedido de informação à Alesp, o que teria evitado outro problema: a localização do acervo físico da Comissão.

Tenaglia tentou entrar em contato pela internet com os "ex-integrantes" da Comissão (p. 289); na prática, contudo, ela só teve um membro atuante: Adriano Diogo. Os outros deputados estaduais listados não participaram das atividades. Não sei de quem a autora recebeu a resposta de que "apesar de o acervo estar disponível na página virtual da Comissão da Verdade, o acervo físico não foi constituído" (p. 289; na tese disponível na biblioteca virtual, na página 211), no entanto, ele não só foi constituído como ajudei a encaixotá-lo. O setor de documentação da Alesp recebeu-o. Encontrei um dos responsáveis pelo setor na semana passada e ele me assegurou de que o acervo continua lá.

O que foi interrompido foi o acesso on-line ao relatório e aos milhares de documentos nele referidos. O servidor da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo volta a responder-me, no momento em que escrevo, que "O servico [sic] requisitado esta [sic] temporariamente indisponivel [sic] devido a sobrecarga ou manutencao [sic]. Por favor tente novamente mais tarde."


A Comissão encerrou seus trabalhos no final da legislatura, em março de 2015. Esse também foi o final do último mandato de Adriano Diogo, e a nova legislatura não se interessou nem mesmo em publicar no Diário Oficial o relatório. Na presidência da Alesp pelo deputado Fernando Capez (2015-2019), houve uma movimentação, iniciada por Diogo, para que houvesse uma publicação em livro, porém Capez a barrou afirmando que não havia dinheiro para isso.
Nessa época, porém, os links funcionavam na maior parte. Na transição do portal Verdade Aberta, o primeiro que abrigou o relatório, para o da Alesp, já houve uma perda: links quebrados de documentação dos mortos e desaparecidos políticos e capítulos faltando do livro Infância roubada, sobre as crianças que foram atingidas pela ditadura (está disponível, porém, em outra parte do portal da Alesp: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20800_arquivo.pdf).
A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" foi a primeira no país (ela antecedeu a Comissão Nacional) e sua criação inspirou a multiplicação de órgãos congêneres no Brasil, o que foi uma marca deste país: em outros, como na Argentina, África do Sul, Chile, Equador não houve mais de uma comissão da verdade funcionando simultaneamente. 
A Comissão "Rubens Paiva" introduziu temas como gênero e homossexualidades no debate das comissões. Um tema como a perseguição à população e aos movimentos negros, por exemplo, foi abordado por esta Comissão, e não pela Nacional.
Era importante que este trabalho de milhares de páginas voltasse a ficar disponível para que as iniciativas de memória, verdade e justiça partissem deste patamar de informação e de documentação, e não tenham que refazer (com o risco de lacunas e equívocos) o que já foi pesquisado.
O esquecimento institucional faz tabula rasa das pesquisas já consolidadas. A Alesp deveria resolver esse problema, que diz respeito à história do povo brasileiro e de sua própria história, eis que a "Rubens Paiva" foi uma das comissões mais importantes do Poder Legislativo de São Paulo.