O livro As comissões da verdade e os arquivos da ditadura militar brasileira, de Mônica Tenaglia, que a UnB publicou em 2024, ganhou menção honrosa no prêmio Capes de teses em 2020 na área de Ciências Sociais Aplicadas I e venceu o primeiro Jabuti Acadêmico, em agosto de 2024, na categoria de História e Arqueologia.
O tema é importantíssimo: os arquivos e as comissões da verdade brasileiras. As comissões, a partir do trabalho de décadas dos familiares de mortos e desaparecidos políticos (coligido no Dossiê Ditadura), pesquisaram e produziram uma documentação sobre graves violações de direitos humanos que serviu de fundamento para as movimentações no incipiente campo de justiça de transição no país. Por se relacionarem com o direito à memória e à verdade, o acesso e a disponibilização dos acervos das comissões correspondem a uma necessidade da democracia.
A Revista do Arquivo [do Estado de São Paulo] publicou em 2016 volume sobre o assunto, do qual um artigo aparece entre as fontes da tese, mas não o texto que prefigura a problemática da autora: "A ditadura revisitada" já analisa se as comissões trataram dos arquivos em suas recomendações e como ocorreu o acesso à documentação na pesquisa.
Tenaglia trabalhou com relatórios de nada menos do que vinte comissões da verdade. Escrevo esta breve nota porque me surpreendeu que as informações sobre uma das comissões da verdade para que trabalhei, a do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", estivessem em geral equivocadas.
Aparentemente, ela não encontrou o relatório inteiro da Comissão: a autora diz que ele tem 1912 páginas (p. 147 do livro físico; p. 122, da tese na biblioteca virtual da UnB), mas esse número corresponde a apenas o primeiro tomo (o terceiro, com as transcrições das audiências, é muito mais longo, e o quarto não é nada curto) e sem a introdução, como se pode ver no texto disponível portal Memórias Reveladas, que não possui o relatório completo da Comissão "Rubens Paiva": https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/estaduais/comissao-rubens-paiva-tomo_i_completo.pdf
Na ficha sobre a Comissão, Tenaglia afirma que não encontrou a nota metodológica (p. 146; p. 122, da tese na biblioteca virtual da UnB), que, de fato, não aparece em uma seção separada, mas existe e está na introdução do relatório, que aparentemente não foi encontrada - e nem poderia ter sido, se a pesquisadora só leu o texto de 1912 páginas, que contém os capítulos temáticos, mas é estranhamente desprovido dessa seção.
Tenaglia afirma que a Comissão não apresentou recomendações aos arquivos (p. 252 no livro físico; na tese disponível na biblioteca virtual, p. 211); no entanto, o que ela identifica e lista como "recomendações das comissões da verdade aos arquivos" podem ser encontradas em versões análogas no relatório da Comissão "Rubens Paiva"; listo-as:
Introdução:
- Imediata abertura de todos os arquivos da ditadura, em especial da polícia técnico-científica do Estado de São Paulo.
Capítulo O financiamento da repressão
6. Que sejam abertos todos os arquivos que existirem sobre a formação da Operação Bandeirante (Oban), sendo nomeados os seus financiadores.
Capítulo Métodos e técnicas de ocultação de corpos na cidade de São Paulo
3. Criar políticas públicas que auxiliem em formas de organização e documentação dos cemitérios públicos (mapas/plantas dos cemitérios, livros de registros dos sepultamentos e demais documentação);
Capítulo A formação do grupo de antropologia forense para a identificação das ossadas da Vala de Perus
13. Fomentar políticas públicas que auxiliem em formas de organização e documentação dos cemitérios públicos (mapas dos cemitérios, salvaguarda da documentação como os livros de registro de entrada);
Capítulo A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil
4. Abertura dos documentos sobre a Guerrilha do Araguaia;
5. Investigação e responsabilização pela queima de arquivos relativos à Guerrilha do Araguaia;
Capítulo As violações de direitos dos povos indígenas
9. Destinação de fundos para fomento à pesquisa e difusão sobre as graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, incluindo pesquisas acadêmicas, obras de caráter cultural e a reunião de documentação pertinente;
Capítulo A atuação dos advogados na defesa dos presos políticos
4. Abrir e investigar os arquivos militares e os arquivos vinculados à Operação Condor para apurar os crimes de estado que se deram fora do aparato do judiciário;
Essas recomendações temáticas aparecem duas vezes no relatório: no final dos respectivos capítulos e, para que pudessem ser lidas todas em conjunto, no final da introdução. Lembro que na enquete que fiz em 2018 com pesquisadores de treze comissões da verdade para a InSURgência, revista do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), Maria Amélia de Almeida Teles (a Amelinha) reiterou que as recomendações sobre documentação não estão sendo cumpridas - assim como as outras.
Tenaglia afirma que "não foi possível localizar os acervos documentais de outras comissões da verdade locais no portal [Memórias Reveladas]" (p. 283 do livro físico; p. 208 da tese na biblioteca virtual da UnB), e que só o relatório da Comissão Nacional estaria lá. Trata-se de um equívoco. O portal, de fato, não tem todas, mas algumas estão lá, inclusive aquelas 1912 páginas da Comissão "Rubens Paiva":
Comissões estaduais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/estaduais/
Comissões municipais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/municipais
Comissões regionais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/regionais
A tese foi defendida em 2019; não lembro se naquele momento a informação não estava disponível; uma vez que o texto não foi realmente atualizado para a publicação do livro de 2024 (a ficha de meu exemplar físico indica esse ano; mas a versão digital é anterior, de 2023), talvez uma interrupção da disponibilidade explique esse erro.
Mais adiante, vemos que a autora pediu ao Poder Executivo informação sobre o acervo da Comissão "Rubens Paiva" e recebeu a resposta de que "não havia responsabilidade do estado pela informação solicitada" (p. 284; página 208 da tese na biblioteca virtual), o que era correto, pois se tratava de uma comissão do Poder Legislativo e o princípio da separação dos poderes aplica-se à questão. Provavelmente ela deixou de fazer o pedido de informação à Alesp, o que teria evitado outro problema: a localização do acervo físico da Comissão.
Tenaglia tentou entrar em contato pela internet com os "ex-integrantes" da Comissão (p. 289); na prática, contudo, ela só teve um membro atuante: Adriano Diogo. Os outros deputados estaduais listados não participaram das atividades. Não sei de quem a autora recebeu a resposta de que "apesar de o acervo estar disponível na página virtual da Comissão da Verdade, o acervo físico não foi constituído" (p. 289; na tese disponível na biblioteca virtual, na página 211), no entanto, ele não só foi constituído como ajudei a encaixotá-lo. O setor de documentação da Alesp recebeu-o. Encontrei um dos responsáveis pelo setor na semana passada e ele me assegurou de que o acervo continua lá.
O que foi interrompido foi o acesso on-line ao relatório e aos milhares de documentos nele referidos. O servidor da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo volta a responder-me, no momento em que escrevo, que "O servico [sic] requisitado esta [sic] temporariamente indisponivel [sic] devido a sobrecarga ou manutencao [sic]. Por favor tente novamente mais tarde."
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