O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 5 de outubro de 2025

Golpe da dosimetria, ou a dosimetria do golpe

Esta dosimetria que se planeja no Congresso Nacional para os criminosos que atentaram contra democracia brasileira significa uma continuação do golpe por via do Legislativo.

Por conta da tentativa de golpe de Estado por Jair Bolsonaro e seus aliados, tem-se lembrado bastante de momentos funestos de anistia na história brasileira, como a que Juscelino Kubitschek granjeou aos golpistas de seu tempo, retribuída, anos depois, com sua cassação e a provável execução extrajudicial durante a ditadura militar, que os pesquisadores do GT JK apuraram e a Comissão Nacional da Verdade não quis investigar.

Por essa razão, a anistia que se discute hoje, bem como o projeto casuísta de "dosimetria" (uma anistia em cápsulas), por vezes é comparada à lei de 1979. No entanto, esta foi algo bem diferente: afinal, não era destinada a golpistas, mas a quem se opôs a um governo de fato imposto por um golpe de Estado: trata-se, basicamente, da situação oposta.

O projeto de 1979 foi a resposta da ditadura ao movimento social que surgiu em 1975 a partir do Movimento Feminino pela Anistia. Foi algo bem casuístico, como explicou a historiadora Janaína Teles, e não o resultado de um acordo com a sociedade. A Lei 6.683/1979 libertou muitos dos oposicionistas que estavam na cadeia, mas não todos, e permitiu a volta de muitos que estavam no estrangeiro ao Brasil.

O Judiciário brasileiro estendeu, inconstitucionalmente, os efeitos dessa Lei de Anistia para os agentes da repressão. O julgamento em 2010 pelo STF da ação que o Conselho Federal da OAB propôs a respeito desse tema, a ADPF 156, foi favorável aos autores de crimes de lesa-humanidade, mas não deu a palavra final sobre o assunto.

Primeiro, porque a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso da Guerrilha do Araguaia (caso Gomes Lund e outros vs. Brasil), no fim de 2019, decidiu que a extensão dos efeitos da Lei de Anistia aos autores de graves violações de direitos humanos (uma autoanistia) não era válida diante do Direito Interamericano dos Direitos Humanos.

Segundo, porque o julgamento do STF não transitou em julgado: há mais de quinze anos o recurso contra a decisão dormita no tribunal, agora nas gavetas de Dias Toffoli, que havia atuado como Advogado-Geral da União quando a ação foi proposta, bem como a ADPF 320, que o Psol propôs também a respeito da Lei de Anistia, e foi apensada à 156.

A situação me faz lembrar do caso de Carlos Alberto Brilhante Ustra: o Judiciário brasileiro reconheceu que ele praticou tortura contra César Augusto Teles, Criméia Alice Schmidt de Almeida e Maria Amélia de Almeida Teles. Contei a história desse processo pioneiro em um livro, Ilícito absoluto

No entanto, tratou-se de uma ação cível meramente declaratória.  O militar morreu em 15 de outubro de 2015 sem ter sofrido nenhuma condenação criminal porque o Poder Judiciário brasileiro estendeu, repito, a anistia para os autores de crimes de lesa-humanidade 

Sem condenação criminal nenhuma, foi beneficiado pelo, digamos, negacionismo judicial que alimentou o negacionismo histórico: afinal, como não aconteceram investigações e punições, os autores viram-se respaldados para afirmarem que os crimes nunca existiram. A negação da justica reforça a negação da memória e da verdade.

Com esse respaldo, foram criadas redes da direita militar que contou com várias publicações e blogues. Carlos Alberto Brilhante Ustra alimentou e fomentou essas redes.

Esse trabalho de agitação e propaganda ajudou Jair Bolsonaro a ganhar prestígio nos meios militares. No Ilícito absoluto, mostrei que  o casal apoiava esse militar agora inelegível e condenado por golpe de Estado desde pelo menos a primeira década do século. Isto ocorreu pelo menos desde 2005:



Esse apoio foi fundamental e Jair Bolsonaro soube mostrar-se grato: a homenagem no nefasto voto pelo impeachment em 2016 foi uma das ocasiões. Diversas vezes ele, que jamais foi conhecido por ser um leitor, fez propaganda do segundo livro assinado por Brilhante Ustra. Além disso, convidou a viúva, com quem se encontrou algumas vezes, para participar de seu governo ( Fábio Victor, em Poder camuflado, tratou desse tema).

Não à toa, símbolos, nomes, rostos (entre eles, o de Brilhante Ustra, que foi convertido até em camiseta da extrema-direita) da ditadura militar foram resgatados e ressignificados pelo governo de Jair Bolsonaro, sempre se equilibrando na dissonância cognitiva de celebrar golpes e crimes, negando, porém, que eles tivessem essa natureza.

Carlos Alberto Brilhante Ustra pôde realizar  esse trabalho de agitação e propaganda que beneficiou Bolsonaro justamente porque ficou impune, apesar de o DOI-Codi de São Paulo, que ele chefiou, ter sido, nos dizeres da sentença de Gustavo Santini Teodoro no caso da família Almeida Teles, uma "casa de horrores" onde se cometiam "ilícitos absolutos".

Uma nova anistia hoje não geraria efeitos semelhantes? Não se revelaria um ovo de serpente, engendrando o nascimento de nova candidatura, mesmo que de um velho ou decrépito nome, da extrema-direita nacional? 

Ademais, apoiar a diminuição das penas dos crimes contra a democracia não seria o sinal explícito de um apreço diminuto ao regime democrático?