O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Desarquivando o Brasil CCXIV: Tenório Jr., cujo corpo ainda foi não encontrado e o relatório de Bernard Duhaime sobre o Brasil

Ditaduras não fazem apenas militantes políticos como vítimas. Em princípio, qualquer um pode sucumbir num quadro de ataque sistemático à população civil e, portanto, de impunidade garantida dos agentes da repressão. O grande músico Tenório Júnior foi um exemplo disso: desapareceu em 18 de março de 1976, quando estava em tunê com Vinicius de Moraes na Argentina. Ele não tinha atuação política alguma, nem no Brasil nem na Argentina.

Depois de torturas, ele foi executado extrajudicialmente e sofreu desaparecimento forçado. Seu caso foi analisado no Dossiê Ditadura da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, foi reconhecido pela Lei dos Desaparecidos (Lei federal n. 9140 de 1995) e foi incluído no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, referenciado como um exemplo de vítima da cooperação entre as ditaduras do continente, a chamada Operação Condor:



O Equipo Argentino de Antropología Forense (EAAF), cruzando dados de corpos que foram encontrados na rua e enterrados como desconhecidos (NN), descobriu que um deles era o do músico brasileiro, por causa das digitais. O anúncio ocorreu em 13 de setembro de 2025. A análise papislocópica é um método primário de identificação, pois as digitais são únicas: com elas, não é necessário aplicar outro método de identificação. 

No entanto, com isso, descobriu-se apenas para qual cemitério seu corpo foi levado, o de Benavídez. Onde precisamente o corpo foi sepultado, não se sabe. O EAAF explicou: "Si bien su cuerpo no fue recuperado". O Ministério das Relações Exteriores brasileiro foi mais claro a respeito do que boa parte da imprensa, explicando que foram identificadas "as digitais" do músico: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/identificacao-de-tenorio-junior

Escrevo esta nota no mês seguinte porque vi que um importante músico brasileiro entendeu que os ossos foram encontrados. Infelizmente, não: só foi descoberto em qual cemitério o corpo de Tenório Jr. foi escondido. A depender de como estão os documentos do cemitério, das obras que nele foram realizadas, e das reinumações, é possível que nunca sejam identificados seus remanescentes ósseos.

Em 15 de abril de 2025, o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Pulo (CAAF-Unfesp) anunciou a identificação de dois desaparecidos: Denis Casemiro e Grenaldo de Jesus Silva. Eu trabalhava lá nessa feliz ocasião. Nesses dois casos, a situação era muito diferente: o CAAF tinha os remanecentes ósseos, que vieram da Vala de Perus (a vala clandestina onde a ditadura militar escondeu mais de mil corpos no Cemitério Dom Bosco em São Paulo).

Isso me leva à outra questão: o relatório sobre a visita ao Brasil de 30 de março a 7 abril de 2025 feita por Bernard Duhaime, o jurista internacionalista canadense que está no cargo de Relator Especial da ONU para Promoção de Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição.

Não achei que a divulgação do relatório em 10 de setembro de 2025 tenha recebido a devida cobertura jornalística; a melhor matéria que vi foi a do Cimi, que corretamente destacou a crítica do Relator a lei inconstitucional e pró-genocído do marco temporal: https://cimi.org.br/2025/09/impunidade-a-crimes-da-ditadura-pavimentou-lei-do-marco-temporal-aponta-relator-da-onu/ 

Através desta ligação, poder-se-ia, teoricamente, ler o relatório em um dos idiomas oficiais da ONU: https://docs.un.org/A/HRC/60/32/Add.1. No entanto, só o resumo foi traduzido: o texto principal, no momento em que escrevo esta nota, está em inglês "em todos os idiomas", digamos.

Quero destacar estes dois parágrafos, que tratam do processo de busca dos desaparecidos e da Vala de Perus:


19. Other entities involved in the search for victims of the regime are the Centre of Anthropology and Forensic Archaeology and the Perus Working Group. Following the discovery in 1990 of a dictatorship-era clandestine mass grave containing 1,049 sets of bones at the Dom Bosco Cemetery in Perus, the exhumed remains were stored sequentially in the State University of Campinas, the Federal University of Minas Gerais and the Legal Medical Institute of the State of São Paulo. Demands from families of victims and a public civic action filed by the Federal Public Prosecutor’s Office in 2009 in response to reports about poor storage conditions and delays in the identification work led to the transfer of responsibilities to the newly created Perus Working Group and the Centre of Anthropology and Forensic Archaeology of the Federal University of São Paulo in 2014. The forensic work is carried out by the Centre and led by the Working Group, with the support of the Special Commission on Political Deaths and Disappearances. The Working Group developed protocols and methodologies that combine DNA tests, biological anthropology and archaeology to identify remains. Since 2017, the International Commission on Missing Persons has assisted the Working Group with the identification process. Three victims of the regime were identified in 1991, 1992 and 2005, and two more in 2018. One week after the end of the country visit, the Perus Working Group confirmed the identification of two more victims.

20. The Special Rapporteur was impressed by the competence and commitment of the multidisciplinary expert team during his visit to the Centre of Anthropology and Forensic Archaeology, noting, however, that the scarce availability of financial resources, infrastructure, specialized equipment and blood samples from relatives of victims (owing to insufficient collection campaigns) affected its daily work, and therefore requires urgent government support. The Special Rapporteur was informed that the Perus Working Group was dissolved in 2019, but subsequently reestablished under the current administration, and that the Centre suffered setbacks during the same period.


A descrição está correta, e o Relator ainda fez notar que os remanescentes ósseos de mais dois desaparecidos foram identificados na semana seguinte à visita internacional. Vejam também que ele ficou "impressionado pela competência e compromisso da equipe multidisciplinar de especialistas" do CAAF-Unifesp, notando, porém a "disponibilidade escassa de recursos financeiros" e a necessidade "urgente de apoio do governo". Ele também relatou as dificuldades que o trabalho de identificação dos mortos e desaparecidos sofreu durante o governo de Bolsonaro. De fato, o CAAF ficou quase paralisado.

Esse trabalho já é tecnicamente difícil; politicamente, até tratar dele não é fácil, o que inclui os... relatores especiais da ONU: ainda em abril, Duhaime divulgou observações preliminares sobre a visita, em que lamentou que o Alto Comando das Forças Armadas e o Ministério da Defesa não tivessem se encontrado com ele. 

No relatório, informou que foi proibido de visitar o prédio do antigo DOI-Codi de São Paulo, reiterando que ele deve se tornar um lugar de memória (parágrafo 54), e também não pôde entrar nas instalações do ex-DOPS do Rio de Janeiro (parágrafo 2 - o Brasil violou os termos de referência para a visita do Relator). Juliana Dal Piva tinha noticiado no ICL o vergonhoso comportamento das autoridades brasileiras no Rio.

No parágrafo 21, Duhaime registrou que remanescentes ósseos que podem ser de guerrilheiros do Araguaia estão parados há mais de dez anos na Universidade de Brasília sem que o trabalho de identificação seja feito. 

Ainda há muito para fazer, portanto, em matéria da busca e da identificação dos desaparecidos, e persiste, mesmo após o fim da ditadura, do governo de Bolsonaro, da condenação criminal de Bolsonaro e de militares aliados, muita resistência contra essa medida funamental de memória, verdade e justiça (fundamentos da justiça de transição).

Ela é importante para as familias diretamente envolvidas, mas também para toda a socidade, pois se trata da dimensão coletiva do direito à memória e à verdade. Um povo tem o direito de saber sua própria história, e ela pode ser lida nesses ossos - basta identificá-los. 


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