O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 25 de outubro de 2025

Adrenalina e o coração com fios de Filipa Leal

Li Adrenalina (Assírio & Alvim, 2024), de Filipa Leal e, apesar de reconhecer o humor das obras anteriores ("Quando cheguei ao carro, estava multada.", p. 69), e as mesmas características do verso, percebi diferenças deste novo desde a estrutura. Ele não tem o tipo de unidade de Fósforos e metal sobre imitação de ser humano, de 2019, produto de uma concepção muito interessante de livro, que incorporava a própria crítica a seu texto. 



Adrenalina realiza outra configuração de livro: boa parte de sua unidade vem do trabalho com imagens recorrentes, como o unicórnio que ela encontra em um guardanapo ("Meu guardanapo de papel") e na canção de Silvio Rodríguez ("Biblioteca Gabriel García Márquez"), em que ele é azul, a mesma cor do guardanapo; a própria poeta é pintada de azul por Isabel Lhano ("Amigos coloridos"), que é a cor da guitarra que origina miticamente a música ("A mulher da guitarra azul"). 

A trama de imagens tem várias recorrências, que estabelecem ligações inesperadas: a casa é do amor ("O amor é uma casa interrompida", mas também "uma casa cheia/ de janelas sobrepostas"), é da Rosa (que "fica lá dentro, a espiar sua própria casa") e há outras casas, que pertencem às avós - e ao menos na de Avó Dores treina-se para se acostumar à morte, que, parece, tanbém constitui a casa aberta pela porta em que "Georgia O'Keeffe entrou e não saiu." ("A porta de Georgia O'Keeffe").

Ressalto esse tema porque me parece estar no centro da obra, anunciado já no título, que somente compreendi no meio do livro, ao ler "Se calhar tenho café no coração". Esse poema conta uma experiência de quase morte depois de injeções de adrenalina:


Ligaram-no, eu vi, mas não chegou a ser preciso
usar o desfibrilhador para a reanimação
porque o meu coração sem fios
era, afinal, capaz de suportar um milhão de barris de café.

Esse tema ecoa em vários poemas, como, além dos que já mencionei, "Avó Isabel" e seu inquietante final: "E não era de polícias que eu tinha medo". 

Os poemas sobre pandemia buscam tratar da questão em sentido mais coletivo, o que é mais raro nesta poética. O melhor, parece-me, "Os mascarados anos 20", assim termina:


E acabámos, acabámos aos milhões.
 
Os que sobreviveram acabaram, foda-se,
a tomar sol em comprimidos.

Também neste livro de 2024 de Filipa Leal (Fósforo e metais, por exemplo, abria-se com uma epígrafe de Adélia Prado) aparecem referências ao Brasil: do rapaz anônimo que trabalha no mercado a Chico Buarque, Drummond, Leminski. No final de tudo, surge uma homenagem a Clarice Lispector com a repetição do procedimento de listar diversos títulos, que a escritora brasileira usou em A hora da estrela, o último livro que ela conseguiu lançar - e é marcado pela morte também nesse sentido biográfico.

Nesse procedimento, pois, também temos uma alusão à morte em Adrenalina? Em primeiro plano, ele faz diretamente alusão em Adrenalina à passagem do tempo. Por isso, quero citar um poema que parece ecoar Cecília Meireles. O célebre "Retrato", do livro Viagem, começa com "Eu não tinha este rosto de hoje" e conclui-se com este quarteto:


Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Em "Os espelhos", de Adrenalina, não sem humor, a perspectiva é invertida:



Quando, muito raramente, de xis em xis anos,
olho para um espelho, reparo que
os espelhos
são coisas que mudam muito com o tempo.


Destaco também o poema seguinte, "Os dias sem surpresa", que cita nominalmente Drummond, porém termina como Manuel Bandeira à espera da "indesejada das gentes":


Aos 40 anos, tudo que desejo sao estes dias
sem surpresa: chegar ao céu, sentar-me,
efectuar o pagamento no acto da entrega.

A autora entrega como último poema "Recado para Paulo Leminski", em que avisa, lamentando não poder ter-se dedicado totalmente à poesia, seu sonho de infância: "Crescer é ser interrompido." Curiosa forma de terminar um livro de poesia, lembrar do princípio da realidade!

A morte é uma interrupção e a poeta sutilmente não menciona esse substantivo aqui, tampouco no belo poema de nascimento "Quarto 332", muitas páginas antes. Embora o livro ainda tente prolongar-se na miríade de títulos no fim e, dessa forma, eles funcionem como lápides (ao contrário do que fez Clarice Lispector), pode-se indagar do que realmente foi terminado.

A trajetória de Leminski foi interrompida cedo (e outros de sua geração, Ana Cristina Cesar e Cacaso, viveram ainda menos do que ele). No entanto, postumamente, sua obra cresceu muito perante o público; ademais, chegou até a este livro do outro lado do Atlântico. 

Mandar um recado para o poeta morto atesta essa vida dos poemas, que é a de gerar novos discursos, novos desejos, fios entre autores (o médico no poema da adrenalina errou ao dizer que ela não os tinha no coração) e novos golpes na arte marcial (Leminski, o judoca) que é a poesia; eles exigem muito do coração e, evidentemente, da adrenalina.

No Brasil, infelizmente Filipa Leal ainda só tem publicado A cidade líquida, iniciativa da editora Moinhos em 2022. 

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