O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 27 de dezembro de 2025

O silêncio dos poetas e a voz de Alberto Pimenta

Alberto Pimenta lançou O silêncio dos poetas primeiramente na Itália, em 1978 como Il silenzio dei poeti, pela Feltrinelli. Logo depois, foi publicado em Portugal por A Regra do Jogo e teve uma boa recepção.

No entanto, o sucesso incomodou o autor: por que este livro era bem considerado pela academia, e não os outros que escreveu? Ele teria incorrido nesta obra em uma concessão aos arrazoados universitários? Incomodado, ele não autorizou nova edição até 2003. Naquele ano, a Cotovia  publicou uma edição acrescida de dois ensaios: "Reflexões sobre a função da arte literária", de 1975, e "A dimensão poética das línguas", de 2001. 

A Cotovia infelizmente acabou. Coube às Edições do Saguão trazer o livro de volta, não apenas mantendo os acréscimos de 2003 como incluindo o ensaio "Liberdade e aceitabilidade da obra de arte literária", publicado pela primeira vez na Colóquio Letras em 1976. A revisão do volume foi feita por Rui Miguel Ribeiro (responsável também pelo design da capa e pela revisão gráfica) e Mariana Pinto Santos.

A Obra quase incompleta, reunião da poesia de Pimenta, hoje incompletíssima (esgotada há muitos anos, por sinal), publicou o ensaio novamente, mas com cortes. Certa vez, perguntei para o autor por que  "Liberdade e aceitabilidade da obra de arte literária" havia sido reduzido, pois eu preferia a versão original. Ele respondeu que o editor queria ganhar espaço e o livro já estava grande!

Esse problema não se repetiu agora: as Edições do Saguão reproduziram o ensaio integralmente. Trata-se, pois, da mais completa edição de O silêncio dos poetas feita até hoje, livro essencial para quem lê e escreve poesia hoje, para quem a lerá e escreverá amanhã.

O breve prólogo que Pimenta preparou para a edição da Cotovia foi reproduzido e indica o pressuposto dos estudos: o emprego de "arte literária" em vez de apenas "literatura", para ressaltar que a afinidade de um "texto literário" a "uma peça musical ou a uma escultura" é "mais essencial" do que a um "texto pragmático".

Sua "ideia central [...] é a de que a a expressão estética exige uma apreensão estética". Nada menos óbvio do que isso, tendo em vista a dicotomia entre poética e estética, um dos motores principais de reflexão neste livro, bem como, se pensarmos em questões de hoje, as instrumentalizações essencializantes que capturam ou querem capturar o texto literário, em geral por interesses do mercado que embolsam demandas por emancipação.

A dicotomia entre poética e estética é explicada e revista na contraposição entre Aristóteles e Adorno, que são os autores mais citados no livro. De um lado, a poética, com seus "hábitos expressivos ancorados na tradição", em uma divisão de gêneros que se relaciona com a própria estratificação social; de outro, uma produção que surge a partir do século XVIII, relacionada às revoluções burguesas, de intenção estética, com a "manifestação da consciência subjectiva contra a objectificação imperante da totalidade". São dois polos, como se vê em "Reflexões sobre a função da arte literária". 

A obra de arte literária de forte intenção estética pode entrar, evidentemente, em conflito com as expectativas do público e/ou do poder instituído: trata-se da tensão entre liberdade e aceitabilidade, tema do ensaio resgatado nesta edição.

Em "A dimensão poética das línguas" , Pimenta analisa poesia em francês (Rimbaud e Prévert), alemão (Jürgen Beckelmann), inglês (Emmett Williams) e português (Fernando Pessoa e ele mesmo), além de um poema visual de Brossa, que retorna em "O silêncio dos poetas". É fascinante entender como a língua determina o jogo de sonoridades, as escolhas lexicais e sintáticas. Para ressaltar as diferenças, creio, Pimenta escolhe poemas com semelhança temática: soldados mortos. 

O poema visual de Emmett Williams destaca a palavra "die" dentro de "soldier", o que só é possível em inglês. Pimenta conclui que "A língua trazia já isso em si, o poeta revelou-o, ultrapassando assim a dimensão da enunciação trivial."

A propósito, o quanto do que é publicado hoje como poesia permanece atrelado ao nível da "enunciação trivial", jamais chegando à despragmatização da linguagem, questão premente de "O silêncio dos poetas", isto é, do longo ensaio com esse título. Cito:



O silêncio na poesia moderna, explica Pimenta, relaciona-se com a "recusa ao compromisso com os símbolos totalitários". Este é um dos pressupostos das análises que passa a fazer de poesia de Brossa, Ana Hatherly, António Aragão, António Barros, Augusto de Campos, Daniil Kharms, Dieter Roth, Edgard Braga, Fernando Pessoa, Gappmayr, García Lorca, Haroldo de Campos, Heissenblüttel, Herburger, Jochen Gerz, K. P. Dencker, Ludwig Harig, entre outros.

Este ensaio, que se concentra na poesia concreta e visual, termina, de forma nada ortodoxa (trata-se de Alberto Pimenta, claro, e não Adorno) com poemas dele mesmo, que não representam uma simples ilustração do que foi teorizado, mas um prolongamento da reflexão: o estatuto da obra de arte literária como uma forma de conhecimento é nesse livro não só teorizado, mas também  realizado.

É claro que está pequena nota não pretende resumir este livro, uma das obras essenciais sobre poesia, mas apenas chamar atenção para a publicação e o seu caráter de credo artístico: há uma concordância entre o que Alberto Pimenta defende como ensaísta e o que faz como escritor e performer. Ele enfrentou a inaceitabilidade de sua própria arte literária e o fez por meio da estratégia da inexistência - o que chamei de inexistência de Alberto Pimenta -  afim ao silêncio, que não é uma forma de calar-se, mas de ainda continuar a dizer, inclusive o que não é aceitável ser dito. 

Esta é a voz de Pimenta, que ressoa mesmo quando ele, calado, contempla, de dentro de uma jaula (refiro-me à performance Homo sapiens), aqueles que se julgam livres. 


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