Na peça Macbeth, Shakespeare realizou o cruzamento entre as ordens à primeira vista contraditórias do fantástico, com as bruxas e suas previsões, e a da realidade mais trivial (o caráter criminal do poder e suas consequências), bem como da representação (o cunho metalinguístico do teatro desse autor) e da experiência vivida, que culmina na fala de Macbeth de a vida ser um conto dito por um idiota, cheio de som e fúria, que nada significa.
Esses cruzamentos de opostos genialmente operam curtos-circuitos que se realizam na loucura e na morte da Lady e no aniquilamento de seu marido, precedido da tomada de consciência da falta de sentido da vida, cujo poder nasceu do cumprimento da mesma profecia que anunciava sua queda.
A ópera de Verdi, com libreto de Piave, respeita essas oposições e até as fortalece, creio, na decisão de cortar a personagem de Hécate, que embora sobrenatural, explicava as bruxas e suas previsões. A razão não deveria dar lições naquele momento. A multiplicação das bruxas (apenas três em Shakespeare) também me parece fortalecer o mistério: um grupo numeroso que surge e desaparece como se a terra pudesse ter bolhas da mesma forma que a água (imagem da peça, por sinal).
É fácil sucumbir diante do cruzamento de dois gênios, Verdi e Shakespeare. Elisa Ohtake, cujo trabalho eu não conhecia, esteve à altura da obra e fez algo mais interessante do que a última encenação vista no Theatro Municipal de São Paulo, a de Bob Wilson, que, embora bonita, apresentava evidentemente um estilo imposto de fora à obra. Elisa Ohtake, pelo contrário, fez algo bem colado à obra e encontrou brilhantes soluções que mostravam a atenção àqueles opostos, especialmente à dimensão metalingúistica.
Eu vi a produção, que se estendeu de 31 de outubro a 9 de novembro de 2025, com Olga Maslova, cuja portentosa voz era muito adequada ao papel da Lady; Craig Colclough como Macbeth; o ótimo Savio Sperandio interpretando Banquo (semanas depois, eu o veria em Wozzeck, de Alban Berg, em estilo totalmente diferente), Giovanni Tristacci no papel de Macduff e Mar Oliveira, que poderia também cantar Macduff, como Malcolm. O papel curto do Médico, que Sperandio cantou no inicio do século no mesmo teatro, foi interpretado por um baixo cuja voz promete encarnar Banquo no futuro: Rogério Nunes.
O cenário era sombrio; no fundo, sete círculos brancos concêntricos. A parte mais brilhante do figurino, pareceu-me, foram as roupas das bruxas: creio que eram todas diferentes entre si, no entanto, visivelmente formavam um time por causa da base escura e dos detalhes e adereços coloridos, diferentes mas sempre extravagantes. Elas deram de costas enquanto Macbeth e Banquo discutiam sobre as profecias, o que gerou outro efeito visual interessante.
Lady Macbeth leu num celular a mensagem de Macbeth. À direita do palco, um imenso paredão prateado que, durante a apresentação, assumiria várias posições e ângulos: foi o principal elemento cênico. À esquerda, um escorpião gigante.
Ela sentou numa cadeira inflável transparente para o recitativo. Ela cantou os dós agudos do recitativo (Verdi fazia dessas coisas com as cantoras) e da ária, motrando muito bom volume e uma bela voz de peito -- essa parte exige também da região grave. No final, ficou encostada no paredão.
A cabaletta, "Or tutti sorgete", embora regida em um tempo largo demais por Roberto Minczuk (sua regência tendia a circunspecção), confirmou a excelência da cantora. Ela cantou a repetição da caballetta, mas sem nova ornamentação.
Por sinal, um texto do programa informou que a coloratura na década de 1830 era exclusiva de vozes femininas. Errado: perguntem aos tenores que têm que cantar o Raul em Os Huguenotes, de Meyerbeer (1836), ou o Pollione em Norma, de Bellini (1831), os barítonos em Lucia di Lammermoor, de Donizetti (1835), ou os baixos que interpretam o rei em Anna Bolena, de Donizetti (1830).
Macbeth entrou por trás do paredão. Trouxeram mais um sofazinho transparente, o melhor trono que ele conseguiu. A chegada do rei Duncano ocorreu sem surpresa cênica, porém.
A cena do assassinato foi astutamente econômica: Macbeth, para cometer o crime, entrou por uma das portas que atravessava o paredão. A Lady, naturalmente, depois de entrar na cena do crime para incriminar os guardas, voltou com as mãos sujas de vermelho. Foi belo que a rainha e o rei tivessem espalmado suas mãos um contra o outro.
Fez-se uma pausa na música para que a Lady pichasse o paredão de vermelho, bem como os sofás. O final, o coro com solistas, foi bem tradicional na direção cênica. Acho que o público não estava ouvindo a harmonia e aplaudiu num momento curioso, depois de um forte, que não era uma resolução harmônica. O fenômeno se repetiu outras vezes e, se parecia revelar não só desconhecimento da obra como falta de ouvido da plateia, pelo menos ressaltou o entusiasmo com a música e sua execução.
Durante a troca de cenário, uma projeção: viu-se a cantora seguir para o camarim, onde estava com uma garrafa de catuaba selvagem. A falta de autenticidade do reinado de Macbeth era, assim, não só sublinhada, como objeto de pilhéria. Ela passou a ler frases da tragédia do Shakespeare que não estão presentes na ópera em uma edição de bolso da peça...
Era MUITO divertido - e alargava, paradoxalmente (pois o fazia no intervalo e num momento de quebra da representação), o espaço da apresentação e até do texto encenado, com espaço em princípio alheio a ela.
Pessoas menos afins ao teatro ou às linguagens artísticas em geral parecem ter vaiado esse procedimento na estreia (eu não estava lá, vi depois), e houve um protesto durante esse momento no dia em que fui, sete de novembro, mas foi coisa de pouca monta e logo interrompida pelo público, que não era imbecil.
Depois da decisão de assassinar Banquo e seu filho, a soprano foi novamente notável na interpretação de "La luce langue'; ela fez um crescendo em "l'eternitá", numa região grave, o que eu nunca tinha visto ninguém fazer antes. E o si agudo soou bem em forma na conclusão: a descida ao grave não ofuscou as notas altas.
O coro dos assassinos foi cenicamente tradicional. Savio Sperandio impressionou pela firmeza de seu agudo em "Come dal ciel precipita"; soprano e baixo foram os destaques vocais da noite.
Depois disso, a cena do banquete. Porém, antes, outra pausa técnica para troca de cenário com projeção. Nela, o barítono, vestido como o rei, comprava pipoca doce em frente ao Theatro. Ele entrou e passou a comer sentado na escada, até que pareceu ver algo terrível (na cena seguinte, seria o fantasma de Banquo) e deixou cair a pipoca vermelha (paulistas comem pipoca adoçada com uma imitação de groselha), o que podia sugerir o sangue, tantas vezes mencionado na obra, às vezes como aparição. De novo, a falta de autenticidade do reino encontrava uma tradução visual zombeteira e bem lograda.
O vídeo mostrou em seguida Lady chegando, ele se recompondo e ambos seguindo para a entrada da plateia. De fato, os cantores em carne e osso entraram por lá, o que reforçou o efeito do vídeo. No palco, a presença da longa mesa no fundo, com cadeiras onde os integrantes do coro se instalam, alterou sensivelmente o cenário: estávamos quase numa pintura do século XVI.
A soprano cantou em pé, à frente, o Brinde (ela omitu os trinados: foi o desafio técnico da partitura que ela não conseguiu superar). Um vídeo na parte central do fundo do palco cumpriu o papel da aparição do fantasma de Banquo. Foi interessante que Macbeth não olhasse para o vídeo (Banquo encara o público). Ele apavorou-se olhando para o outro extremo da mesa e arremessou a comida naquela direção.
Foi o momento mais forte da atuação do barítono. Em alguns momentos, ele menos cantou do que gemeu; como Verdi, nessa ópera, fugiu a certos critérios do bel canto (cita-se muito que ele queria que a Lady Macbeth cantasse com uma voz áspera), a convicção do artista justificou o momento. Foi lindo como cantou "La vita riprendo".
O plano suspenso foi caindo lentamente sobre os artistas durante o coro final.
Na cena seguinte, as bruxas carregaram acima de suas cabeças uma serpente gigante. Durante as profecias, ela foi içada. Por sinal, mais uma vez o Municipal de São Paulo microfonou uma criança (um dos espíritos) que não cantava bem.
Os espíritos atravessaram o fundo do palco, recortado num efeito de círculo branco. A aparição da linhagem de reis se deu como sombra atrás do fundo branco. Banquo, enfim, apareceu no meio da plateia com o espelho na mão e riu do terror de Macbeth. Sperandio interpretou muiito bem, sem nota alguma para cantar nessa parte.
Com o desfalecimento do rei, as bruxas saíram; entraram os contrarregras com o escorpião, que ficou de lado, derrubado: Macbeth já vacilava. No dueto com Lady, impressionou-me como a cantora usou a voz de peito em "coraggio antico".
A cena do coro foi bonita de ver, embora bem tradicional: pessoas de pé atrás, sentadas à frente. "Patria oppressa" foi muito bem executado (destaco a linha dos baixos, que estava bem nítida), talvez tenha sido musicalmente o melhor momento da noite, e a orquestra teve seu melhor momento na introdução dessa cena. Tristacci foi bem mais efetivo na ária do tenor do que o cantor estrangeiro que veio na produção de Bob Wilson anos atrás.
Na cena de sonambulismo, o palco parecia imenso para os três personagens, o que traduzia muito bem a solidão da rainha nesse ponto. Lady Macbeth entrou com produtos de limpeza: como se sabe, ela tenta tirar a mancha de sangue das mãos. A rainha, no seu delírio, passou a fazer faxina... Era, ao mesmo tempo, sarcástico e triste.
A soprano a cena de sonambulismo cantou com uma voz mais leve e clara (sugeria assim o colapso da personagem), salvo para os momentos de dinâmica forte, como "Banquo è spento". Com isso, ouvimos bem a fratura do espírito da rainha. A cantora só teve problema com o final, com a linha que culmina com o ré bemol sobreagudo; para atingi-lo, quebrou a frase com uma respiração logo antes da nota.
A ária do barítono revelou limites do agudo do cantor, especialmente na cadência. A encenação no final, apesar do efeito do conjunto cantando a derrota do tirano e a libertação da pátria, manteve a opção pela escuritdão: entre ela e o poder, claro, não há oposição, e parece que foi isto que Elisa Ohtake quis dizer com esta montagem decididamente inssurecta.
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