"Interpreta as lições dos poetas contemporâneos, Ungaretti, Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto; [...] Poder-se-ia discorrer longamente sobre Luciana; mas seria necessária a técnica de Shahrazàd.", escreveu Murilo Mendes sobre Luciana Stegagno Picchio em Retratos-Relâmpago.
A filóloga e crítica teve uma grande importância para a divulgação das literaturas brasileira e portuguesa na Itália. Alberto Pimenta dedicou a ela O silêncio dos poetas. Como faleceu em 2008, não pôde ver que a Companhia das Letras usou a técnica de Armando Falcão para não falar dela.
Murilo tinha organizado uma reunião de seus livros em 1959, embora parcial, pois ele decidira deixar de lado o divertido e bem modernista História do Brasil. Ele faleceu em 1975; dezenove anos depois, sua amiga Luciana Stegagno Picchio organizou para a Nova Aguilar uma edição da Poesia completa e prosa, com inéditos. Talvez alguns leitores atentos às novidades do mercado editorial duvidem que o livro exista; trago fotos:
As imagens não foram inventadas por meio de Inteligência Artificial.
O volume de quase 1790 páginas continha alguns erros. Neste século, a Cosac Naify estava reeditando a obra, livro por livro, com edições revistas. O dono da empresa resolveu "descontinuar" a editora (que retornou, felizmente, há pouco tempo), o que interrompeu esse importante projeto. Murilo Mendes, sabe-se, é genial e o público precisa ter seus livros disponíveis novamente. Os poetas continuam lendo sua obra, que continua a inaugurar o futuro. Faço lembrar, entre os contemporâneos, do ensaio de Ricardo Domeneck que o chama de "mestre supremo e indispensável".
Em 2025, contudo, veio a Companhia das Letras anunciar que estava publicando a primeira reunião da poesia completa de Murilo Mendes: https://web.archive.org/web/20251231160006/https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535934380/poesia-completa. Fez propaganda do livro com base nessa inverdade, obviamente negacionista em termos de história editorial: https://www.instagram.com/p/DMaFkfQyJaO/.
A informação falsa foi para a contracapa do livro. Os textos dos organizadores, porém, fazem referência à edição de 1994...
Esse desastre ético-editorial, que Murilo jamais teria aprovado, fez-me lembrar do malogro da tentativa de edição da poesia completa de Roberto Piva por essa mesma editora. Cito Fabio Weintraub sobre a dificuldade dessa empresa de citar o trabalho dos outros:
Os selecionadores não esclarecem qual a fonte de que se serviram para escolher e ordenar os poemas póstumos, sendo todos eles retirados do livro Antropofagias e outros escritos, organizado e publicado por Gabriel Kolyniak, poeta, amigo do Piva e um dos responsáveis pelo projeto de catalogação e conservação de seu acervo, que se encontra em processo de transferência para o Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio (CEDAE), da Unicamp. A sequência dos poemas também é a mesma adotada na antologia-fonte.
Pécora expõe sua dúvida quanto ao fato de se Piva daria esses poemas como finalizados, o que parece justo. Mas, ao mesmo tempo, não menciona nem inclui na reunião livros organizados por Piva e ainda inéditos, como Corações de hot dog e Outdoors, donde a impressão, para voltar ao início deste texto, de que a organização levou pouco em conta a pesquisa sobre a obra do autor realizada na última década e meia.
Uma edição completa que deixa de lado livros organizados pelo autor: critérios editoriais realmente originais da Companhia das Letras, que outras editoras não adotariam. No caso de Murilo, fez-se algo diferente: foram retirados do livro Papiers textos que aos organizadores pareceram poemas: escolheram pelo autor, portanto.
O critério é questionável pelo desmembramento do livro e pelo caráter poético da prosa de Murilo; como ele mesmo escreveu em Poliedro, "A prosa provém da digestão de Orfeu.". Mais valia publicá-los separadamente os livros (como essa editora parece estar a fazer com a obra em prosa), como a Cosac estava a fazer, já que o gênero não consegue capturar parte desta obra.
"Orfeu Orftu Orfele/ Orfnós Orfvós Orfeles", claro, mas não esta editora, que escolheu a laceração do poeta.


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