Ao Moacyr
O sangue doado a ti,
interrompido.
O sangue deixou
de correr, porém
a doação segue.
O sangue doado a ti
perdido e reencontrado
como tu mesmo
circulas agora
nas veias do mundo.
Doa-se o sangue
O sangue circula
no coração dos ares:
Ao Moacyr
Art. 2º Para fins do disposto no art. 80 da Lei nº 6.015/1973, as lavraturas e retificações dos assentos de óbitos de que trata o art. 1º serão baseadas nas informações constantes do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, sistematizadas na declaração da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).
§ 1º Em atendimento ao disposto no item 8º, do art. 80 da Lei nº 6.015/1973, deverá constar como atestante a CEMDP e, como causa da morte, o seguinte: “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964.”
Eu me lembro que eu fui, numa dessas minhas tarefas na vida, eu fui fazer a exumação e o traslado dos restos mortais do Carlos Nicolau Danielli que era um dirigente do Partido Comunista do Brasil. E eu fui ali no cartório do Jardim América buscar o atestado de óbito porque, para fazer o traslado eu tinha que ter o atestado de óbito.
Quando eu peguei o atestado de óbito estava escrito assim, profissão, “dois pontos terrorista". Aí eu falei com o moço do cartório, eu falei assim, não! Isso aí não dá para eu levar, profissão terrorista. O senhor já viu ter carteira de trabalho assinado profissão terrorista? Ele olhou para mim e falou assim, “é, nunca vi, não”. Eu falei, então tira isso aí! Ele falou, “mas o que eu ponho?” Eu falei você põe o que você quiser, mas não dá para por isso aí.
Você sabe que na hora o funcionário, não foi nem, o funcionário falou “eu vou corrigir isso aqui”. Pegou, pôs um monte de “x” assim, pode olhar, o atestado de óbito tem profissão “xxxx”. Ele falou, “vou tirar mesmo”.
Quer dizer, é tão simples agora colocar, até deixa lá "anemia aguda". O Carlos Danielli ele, como ele foi assassinado sob torturas e teve hemorragia interna, então lógico que deu anemia aguda, não é? Ele perdeu todo o sangue, não é? E aí, então, põe "anemia aguda" por causa da tortura no DOI-CODI senão, quer dizer, só completar, ele pode ter tido sim anemia aguda.
Art. 4º Nos casos de óbitos que não constem do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, poderão os familiares das vítimas, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos ou o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania requerer a lavratura ou a retificação dos assentos de óbitos aos cartórios competentes, cabendo recurso administrativo da decisão perante as Corregedorias locais, sem prejuízo de eventual revisão do Conselho Nacional de Justiça.
Sempre faço uma retrospectiva anual neste blogue: o exercício de memória do passado recente permite compreender melhor o presente. De alguns tempos para cá, sempre espero que os doze meses terminem, que é o que faz sentido, ao contrário do que estipula a temporalidade jornalística. Imaginem que no jornalismo cultural há até veículos que pedem que se escolha em outubro as melhores produções do ano!
Ademais, em certo sentido, nunca sabemos quando um ano realmente termina. Alguns ferem a cronologia e demoram mais para terminar, o que deve ser a razão pela qual o governo Lula não mencionou no primeiro de abril passado os sessenta anos do golpe de 1964.
Sempre mudo o critério da retrospectiva. Em 2017, quando ainda fazia essas coisas no último dia do ano, resolvi escolher textos interessantes dos blogues que seguia. Entre eles, dois caíram.
Os blogues perderam audiência para as redes de fotos e as de vídeos que duram alguns segundos. No entanto, de 2023 para cá, vejo pessoas que afirmam desejar ler textos na internet, e não ver esses flashes que não convidam exatamente à reflexão. Notei também que blogues novos foram criados, o que é um movimento interessante.
Eu mantive este porque ele serve como um grande rascunhão de textos. Resolvi, então adotar o procedimento que muitos seguem: simplesmente listar as doze entradas mais lidas no blogue durante 2024, a começar da que teve mais visualizações. Eu não tinha a ideia de quais eram, surpreendi-me porque algumas são antigas, chegando a 2010. Imagino, portanto, que o interessante desta lista seja indicar temas que alguns leitores em português na internet acharam sensíveis.
Não que O palco e o mundo tenha sido muito lido: ele teve 45 mil e oitocentas visualizações no ano, o que não é muito para um blogue; ademais, pelo menos metade desse público deve ter chegado aqui por acaso e não por causa dos textos. No entanto, mesmo reduzindo a, talvez, dez por cento das visualizações, trata-se certamente de mais gente do que leu meus livros no mesmo período.
Curiosamente, os dois primeiros textos têm relação com música. Sou tenor e canto na Associação Coral de São Paulo, porém não tenho formação alguma nessa área, em que sou apenas um amador anônimo, apesar de participar de produções profissionais. Imagino que o assunto dos textos tenha sido o que chamou a atenção das pessoas ao ponto de lerem até mesmo algo que escrevi.
Dmitri Hvorostovsky (1962-2017), o cantor do mundo, a voz da Rússia e da Itália (22 de novembro de 2017). O texto conta minha experiência, apesar de limitada, com o célebre cantor russo, que morreu depois de uma batalha contra o câncer quando ainda estava senhor de sua voz e a carreira continuava a se desenvolver nos grandes palcos do mundo.
Tive a sorte de vê-lo duas vezes. Reproduzi no texto o programa de seu concerto no Rio de Janeiro (vazio de público, para a vergonha dos cariocas), falei de algumas gravações e lembrei da última vez que o vi, no ano em que descobriu a doença.
Escrevi um texto bem simples; o fato de ele ser lido mostra como Hvorostovsky continua a ser ouvido e amado graças às gravações e à memória que deixou no público. Imagino que continue criando memórias, pois leio nos comentários sobre as pessoas que o descobriram depois que morreu. De certa forma, um grande artista não morre.
30 dias de canções: O céu, o mar, a umbanda (31 de janeiro de 2017). Ousei, no início de 2017, produzir trechos para essa série, que outros blogues adotaram. Modifiquei algumas entradas, que não faziam sentido para mim, porém mantive a estrutura dos trinta dias. Comecei dia 28 de janeiro e só consegui encerrá-la no 25 de março, pois não consegui (nem imaginei que o faria) escrever um texto por dia. Em 2024, no entanto, publiquei aqui menos de trinta textos em um ano!
Na série, escolhi música de Guiraut de Borneilh a Tiganá Santana, passando por Beth Amin e Schumann. Também selecionei um ponto de Ogum que me foi ensinado por minha madrasta (por sinal, ela morreu há pouco mais de um mês; talvez tivesse gostado de saber disto).
"Se o céu é lindo" foi o tema do despretensioso texto que, sete anos depois, continua sendo lido, não sei por que razão. Talvez isso aconteça por causa da continuidade dos ataques racistas de terroristas cristãos às religiões afro-brasileiras, bem como dos chamados narcocrentes: lembro aqui do famigerado Complexo de Israel, no Rio de Janeiro, região em que os traficantes evangélicos expulsaram os terreiros, o que é outro dos crimes (além da venda de drogas) que são cometidos sistematicamente naquele Estado, tendo em vista a inoperância das forças de segurança e do Judiciário.
Desarquivando o Brasil CCVI: Jair Bolsonaro, Carlos Alberto Brilhante Ustra e outros militares (25 de novembro de 2024). Trata-se do mais lido entre os textos que escrevi neste ano, provavelmente por causa da urgência do tema: a descoberta do plano militar de assassinato de pelo menos Lula, Alckmin, Alexandre de Morais em 2022.
Nele, lembrei dos trechos de meu livro mais novo, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura, sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.
Quis contrastar o texto com a aparente leveza ou até leviandade de certos meios de comunicação no tratamento do assunto, que diz respeito diretamente à continuidade da democracia no Brasil. O mais curioso foi ver bolsonaristas reagindo assumindo tudo ou quase tudo do que foi investigado pela Polícia Federal e alegando, mesmo assim, perseguição política: a impunidade é seu lar e, por isso, estranham quando algo diferente ameaça surgir no horizonte.
Angélica Freitas e o tamanho da insurgência (10 de outubro de 2012). Aqui, além de reproduzir um texto que publiquei em 2007 sobre a estreia em livro da autor, Rilke Shake, em um extinto jornal impresso de crítica literária, o K., escrevi minhas impressões sobre Um útero é do tamanho de um punho, que comprei e li antes do lançamento em São Paulo.
Publiquei-o em 2012 justamente para fazer propaganda da poeta, que (devo dizer aqui, por causa da maledicência desse meio) não é minha amiga pessoal. Simplesmente entendi que o livro era importante. Destaquei nele o caráter de contestação à ordem patriarcal, bem como a insurgência do feminino. Cheguei na época a discutir com uma professora de literatura que afirmou que ele não era poético porque "um útero é realmente do tamanho de um punho". Ai.
Creio que ainda é a melhor obra de Angélica Freitas. Poucos anos depois, vi uma jovem com veleidades críticas escrever que nunca viu os homens destacaram essas mesmas qualidades desse livro. É triste que os jovens tantas vezes usem na internet sua própria ignorância (nunca viram nem leram nem ouviram...) como argumento de autoridade. A poeta é muito maior do que isso.
Desarquivando o Brasil CXCVII: "O intento golpista e, portanto, criminoso": minutas de golpes e atos institucionais (21 de fevereiro de 2024). Escrevi este sobre as minutas de golpe encontradas pela Polícia Federal com Anderson Torres. Resolvi elaborar um paralelo, do tipo que costumo fazer neste blogue na série Desarquivando o Brasil, com os antigos atos institucionais da ditadura militar.
O golpe, felizmente mal sucedido, era retrô também nesse aspecto. Ademais, sua base teórica era péssima (foi um caso de inteligência militar como deux mots qui hurlent de se trouver ensemble), precário até mesmo para os juristas que o inspiraram, conforme destaquei.
Desarquivando o Brasil CCIII: Onde está o relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (16 de setembro de 2024). Eu estava há muito tempo para escrever esse texto. O que finalmente me moveu foi ter lido um livro cheio de equívocos que venceu a primeira edição do Jabuti Acadêmico; entre os erros, estavam afirmações sobre o relatório mencionado.
A Comissão "Rubens Paiva", criada pelo Legislativo estadual por iniciativa de Adriano Diogo, foi interessante já pelo fato de ela ter surgido antes da Nacional e, com isso, ter despertado a fundação das outras: estaduais, municipais, sindicais, universitárias, a Camponesa etc.
Era uma pena que a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo não estivesse tratando bem do relatório, que jamais foi impresso e só existe on-line. Não sei se o meu texto teve alguma influência nisto, mas algumas semanas depois, não tive mais problema para acessá-lo.
Alberto Pimenta e o Discurso sobre o filho-da-puta de volta, em tempos muito apropriados, ao Brasil (16 de dezembro de 2020). O maior poeta vivo da língua portuguesa, Alberto Pimenta, é uma das principais razões por que as pessoas vêm parar neste blogue. Quatro anos depois, o texto de 2020 sobre a publicação na Serrote do célebre Discurso, que é seu livro mais traduzido, foi o mais lido dos vários que já escrevi sobre ele.
Evidentemente, além da genialidade de Pimenta, o assunto de que ele trata é sempre atual, o que deve ter chamado a atenção de quem leu o meu texto.
Subterrâneo do anjo e aniversário do Walter Benjamin (15 de julho de 2024). Este foi uma surpresa porque é um poema meu, ainda não recolhido em livro, publicado em um periódico de poesia, Ouriço, que o pediu. Eu o li com Fabio Weintraub no lançamento paulista da revista. Achei que a reação foi meio gélida, com exceção de Matheus Guménin, que foi a pessoa que estava lá e disse que gostou do poema. Acho que o problema foi tê-lo escrito com um tema (poesia e história), que foi alterado depois, o que me deixou meio fora do lugar naquele contexto. No blogue, porém, algumas pessoas talvez o tenham lido porque nele viro Walter Benjamin de pernas para o ar, o que não é tão comum.
Desarquivando o Brasil LXVII: Polícia e direito de manifestação (23 de agosto de 2013). Aqui tratei de alguma falas minhas no ano difícil de 2013, com destaque para a que fiz em uma iniciativa de esquerda de que morreu logo depois. Luka França também lá estava para tratar do caso Carandiru.
O vídeo caiu, mas os textos que apontei estão aqui: https://web.archive.org/web/20130811025608/http://vandaleando.laboratorio.us/. Como sempre, fiz o exercício de comparar o presente e o passado, dessa vez desde os anos 1950.
Por que esse texto continua a ser lido, mais do que outros bem mais recentes? Imagino que a persistência do problema, com os casos diários de arbitrariedade policial, seja a razão.
Impressões europeias: a sombra do continente (21 de setembro de 2010). Trata-se de 355 caracteres (com espaços) e uma foto, que eu tirei, de xenofobia e racismo no Aeroporto de Madri. Zapatero e Sarkozy ainda estavam no poder.
Ele cala: a poesia de Nuno Ramos (20 de setembro de 2010). É o mais antigo dos textos, publicado na véspera do anterior. Trata-se de um dos artigos que escrevi sobre a obra literária de Nuno Ramos; este saiu na extinta revista Rodapé, que não foi publicada na internet.
Desarquivando o Brasil CCIV: Ciclo no SESC-SP de pesquisas acadêmicas e jornalísticas sobre a ditadura (16 de setembro de 2024). Eu não iria ficar, como o governo federal (já que habito em São Paulo, digo o mesmo do estadual e do municipal), calado sobre os sessenta anos do golpe de 1964. Uma das ocasiões em que falei em público sobre a triste efeméride foi nesse ciclo do Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP, para o qual fui chamado em razão de meu livro de 2023, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura.
Também no livro não me calei sobre a problemática da ditadura, por sinal. Para quem ainda não o leu, aqui está a introdução: https://www.editorapatua.com.br/ilicito-absoluto-a-familia-almeida-teles-o-coronel-c-a-brilhante-ustra-e-a-tortura-ensaios-de-padua-fernandes/p
O Ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, propôs em 15 de dezembro último dar repercussão geral a um caso dos crimes de lesa-humanidade da ditadura militar, que chegou ao STF por meio do recurso do Ministério Público Federal em processo que considerou anistiado o tenente-coronel Licio Maciel. Esse militar é um dos listados pela Comissão Nacional da Verdade entre os 377 agentes de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar.
O portal do Supremo Tribunal Federal está desatualizado no momento em que escrevo, porém o Migalhas publicou a importante decisão.
O Ministro cita as Convenções da ONU e da OEA sobre desaparecimento forçado, bem como a 1a. Convenção de Genebra e considera que o crime em questão é permanente e não foi atingido pela Lei de Anistia (mesmo se considerarmos que ela se presta a perdoar crimes de lesa-humanidade), pois o crime de ocultação de cadáver continua a ser praticado enquanto persiste o desaparecimento; transcrevo este trecho:
[...] existe o crime enquanto não cessar a permanência, o que reforça a certeza de que a Lei da Anistia não atingiu, nem poderia atingir, os fatos posteriores à sua vigência.
A Lei da Anistia é válida para os fatos pretéritos, entretanto não alcança aqueles crimes em execução depois da sua aplicação. Não há ultratividade para a Lei da Anistia, pois isso constituiria uma espécie de “abolitio criminis” prospectiva, inexistente no Direito pátrio.
A decisão, que expressamente ocorre em obediência às normas de justiça de transição, recebeu destaque em boa parte da imprensa, com razão, tendo em vista o atraso do STF, de quase uma década e meia, em julgar os recursos interpostos contra a lamentável decisão na ADPF 153, que o Conselho Federal da OAB propôs a respeito da Lei de Anistia de 1979, bem como a nova ADPF que o Psol propôs contra aquela lei. A decisão infausta ocorreu em abril de 2010, quando o STF considerou, contra o texto expresso da norma, contra a Constituição de 1988 (que prevê a anistia só para as vítimas dos atos de exceção) e o Direito Internacional aplicável que os crimes de lesa-humanidade da ditadura teriam sido anistiados.
Mais tarde, no mesmo ano de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em denúncia feita pela Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (uma organização da sociedade civil), determinou que aquela lei era inaplicável para esses crimes.
Dos debates e movimentações políticas gerados por essa decisão internacional, vieram as leis de criação da Comissão Nacional da Verdade e de Acesso à Informação em 2011.
Enquanto o STF não julga em definitivo a ADPF 153, o restante do Judiciário, em regra, vem indeferindo as denúncias criminais do Ministério Público Federal que têm aqueles crimes como objeto. Neste caso, um dos réus, o tenente-coronel Sebastião Curió, também listado pela CNV como responsável por desaparecimentos na Guerrilha do Araguaia, não pode mais ser condenado porque faleceu (não sem antes ser recebido e homenageado pelo militar que ocupou a presidência da república antes de Lula e hoje é investigado por golpe de Estado).
A notável lentidão do STF anda de mãos dadas com o ciclo da vida e da morte, tendo em vista que o falecimento dos réus, nestes casos de crimes cometidos há décadas, também livra-os da responsabilidade penal.
Escrevo esta nota porque li algumas notícias que deixaram de lado que Dino está aplicando a jurisprudência da própria Suprema Corte, em posição comum com o Ministério Público Federal. Até encontrei comentários de que o Ministro estaria inovando no tribunal com entendimentos esdrúxulos. No entanto, incorrem em erro esses que pensam assim.
Para esclarecer, cito meu livro mais recente, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura, escrito em 2023, antes da decisão mencionada de Flávio Dino. O livro trata, entre outros assuntos, do imbróglio do (não) julgamento da Lei de Anistia, inclusive dos
[...] casos de crime permanente de sequestro durante a ditadura militar, em casos em que a Lei de Anistia não era aplicável. Nesse crime, o equivalente no Brasil ao desaparecimento forçado, a vítima desaparece e não é encontrada, o que impede o início da contagem da prescrição criminal, segundo decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal na extradição pedida pela Argentina do tenente-coronel uruguaio Manuel Juan Cordero Piacentini, em razão de desaparecimentos forçados no âmbito da operação Condor.
Nessa extradição, o próprio procurador-geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, considerou, em fevereiro de 2008, que o crime permanente de sequestro não estava prescrito: [...]
Dino não está rasgando, pois, a jurisprudência do STF. Apesar disso, alguns querem desqualificá-lo por causa de seu passado. Sabe-se que ele deixou a magistratura, na qual ingressou por concurso público, para entrar no sistema político, o que fez também com sucesso: venceu eleições para deputado federal, governador de Estado e para Senador e foi Ministro do terceiro governo de Lula; na maior parte desse tempo ele pertenceu ao PCdoB, depois migrou para o PSB.
Flávio Dino atuou politicamente no campo da esquerda, porém não sujou a toga, quando foi juiz de carreira, para trocar decisões judiciais por cargos políticos. De volta à magistratura, e agora no tribunal mais alto do país, Flávio Dino neste caso está apenas a aplicar o Direito de forma tecnicamente correta.
Dito isso, é verdade que, em geral, é a esquerda que, no Brasil, deseja cumprir o Direito aplicável aos crimes de lesa-humanidade e reconhecê-los como insuscetíveis de anistia.
No entanto, o que deveria ser objeto de dúvida e constrangimento não é essa postura da esquerda, mas o fato de boa parte da direita (inclusive seus porta-vozes na imprensa) não se conformar com a eficácia das normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, preferindo a elas o louvor aos crimes de lesa-humanidade, incompatível com a democracia.
Esboço esta nota por causa da trama recentemente descoberta de militares que conspiraram em 2022 para matar Lula e Alckmin, depois de eleitos em 2022, e o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre Moraes.
Quando resolvi escrever um livro sobre o processo em que a família Almeida Teles conseguiu o reconhecimento judicial, o Ilícito absoluto, não imaginava o quanto teria mencionar Jair Bolsonaro. São mais de noventa menções no texto. É claro que eu sabia que citaria o voto que ele proferiu em 2016, humilhando o país diante do mundo por homenagear um torturador no parlamento contra a presidenta eleita, Dilma Rousseff.
Esse voto ignominioso, lido no plenário sem que nenhum deputado lembrasse que Carlos Alberto Brilhante Ustra já tinha sido declarado torturador pelo Judiciário brasileiro, aparece na introdução do livro; chamei-o de "elogio fúnebre" que "veio atrasado", pois o outro militar havia sido enterrado meses antes após uma longa doença (não, ele não foi assassinado).
Ele apareceu em parte por causa de Olavo de Carvalho, admirado tanto por Brilhante Ustra quanto por Bolsonaro; ele representou uma conexão entre ambos no soi-disant pensamento da extrema-direita brasileira, embora aquele ideólogo concedesse que a família Almeida Teles poderia ter razão no processo contra o coronel reformado.
Bolsonaro, quando subiu à presidência da república, chamou o falecido militar de herói nacional e convidou a viúva, Joseíta Brilhante Ustra, para trabalhar em sua equipe; ela recusou, mas ele a recebeu no Planalto algumas vezes.
Bolsonaro cortejou a extrema-direita militar e louvou os crimes de lesa-humanidade da ditadura mais de uma vez durante sua carreira política. Depois de Brilhante Ustra ter sido citado judicialmente pela família Almeida Teles, aconteceu um tumulto nos meios militares, que chegou ao governo federal e, em 2007, o Clube Militar no Rio de Janeiro fez um evento em defesa da extensão dos efeitos da Lei de Anistia aos agentes da repressão.
Militantes contra a violência do Estado e por memória, verdade e justiça protestaram; Brilhante Ustra saiu pela porta dos fundos e Bolsonaro soltou uma de suas frases emblemática: o "erro foi torturar e não matar", como se a ditadura não tivesse também matado. É um dos eventos em que os dois se cruzaram e que menciono no Ilícito absoluto:
Os dois se cruzaram no âmbito da extrema-direita militar e sua indisposição com o regime democrático. Não à toa, Bolsonaro passou a citar como seu livro de cabeceira A verdade sufocada, o compêndio de inverdades históricas de defesa da ditadura e ataque à esquerda e à democracia (nele, Vladimir Herzog é considerado suicida) que Brilhante Ustra publicou na época da propositura da ação pela família Almeida Teles.
Citei no livro trabalhos de Piero Leirner e de Marcelo Pimentel sobre como Bolsonaro foi escolhido informalmente como o candidato das Forças Armadas depois da reeleição de Dilma Rousseff em 2014. Na minha pesquisa, achei mais uma coisa: o apoio de Brilhante Ustra desde 2005 (uma carta aberta de Joseíta) a Bolsonaro como único representante das Forças Armadas no Congresso Nacional:
[...] o engavetamento das recomendações da CNV, o golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018 parecem indicar algo além disso: a batalha continua, e as Forças Armadas mantêm seu ativismo pelo negacionismo histórico, isto é, pela negação dos crimes de lesa-humanidade da ditadura que comandaram.