O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 4 de maio de 2025

Inanição, mudez e o inarticulado: Escrevo seu nome no arroz, de Caetano Romão

Nós que lemos Um nome inteiro disposto à montaria (7 Letras, 2021), poemas que formam uma história de amor entre dois homens, imaginávamos que Caetano Romão poderia escrever um romance. Quem ler Escrevo seu nome no arroz (Fósforo, 2025) logo perceberá que é obra de um poeta, pelo que faz com o estilo ("Meu coração está com dor de garganta", por exemplo). Por sinal, um dos poucos momentos não verossímeis do livro ocorre quando o narrador/protagonista diz que "Só temos palavras cruzadas em casa", e não livros.


O autor no lançamento na Livraria Simples, em São Paulo. 

Mencionamos o gênero do primeiro livro não para insinuar que o autor entrou como um peixe fora d'água no campo da prosa de ficção, mas para afirmar que ele é uma das comprovações do que Fernando Pessoa dizia: é preciso ser poeta para escrever bem. 

Os fatos da história são simples: dois irmãos enterram a mãe no quintal da casa logo no início do livro. Depois disso, vão degringolando mentalmente, especialmente o mais velho, que deixa de falar. A terra murmura, coisas mudam de lugar, eles ainda ouvem a mãe. O mais jovem ainda é capaz de sair da casa, falar com estranhos com quem tem encontros fugazes (um especialista em lepidópteros, uma artista em fase de autorretratos). Nenhum encontro amoroso acontece. O mais velho surta mais seriamente e não recebe ajuda, o que precipita o final.

Há outras questões no livro. Ele é quase um romance de tese sobre a voz: os dois jovens ouvem vozes além do murmúrio da terra. O protagonista, que é gago, reclama que a dentadura da mãe já não diz nada. Porém diversas coisas se manifestam em linguagens não articuladas, que são apreciadas porque "um alfabeto é rasgo que jamais cicatriza". Quando finalmente surge um assobio, ele comenta: "Tenho escutado murmúrio, sussurro, gemido. Agora, assobio, nunca. Pelo jeito, a terra anda mais cheia de fôlego.". O irmão quer saber o que as vozes falam; o protagonista responde: "Dizer não necessariamente é dizer alguma coisa.". Há uma busca interessante pelo inarticulado nesta obra.

Parece-me que hoje há mais casos na literatura brasileira de tentar dar a voz aos seres não humanos, inclusive a elementos geológicos, como é o caso de Krakatoa de Veronica Stigger. Na primeira parte desse último livro, a voz de vulcões, do carvão, da água, do gelo, do fogo e outras ressoam depois do fim do mundo. Na obra de Stigger, a questão do Antropoceno é central: o quanto a crise trazida pelos humanos reverte em catástrofe para eles (nós) mesmos.

A proliferação de vozes no livro de Caetano Romão, embora seu cenário seja o meio rural, não se origina disso nem mesmo da devastação produzida pelo latifúndio (hoje chamado de "agronegócio"). Há uma crise do humano aqui, no entanto ela ocorre em escala individual, doméstica. Quando o irmão deixa de falar, o protagonista se pergunta se "por acaso cresceu grama sobre o seu vocabulário". 

Doméstica, talvez uterina. A crise é desencadeada pela morte da mãe, que é enterrada onde moram. De veze em quando, eles vão ao "buraco de mamãe" para varrer as folhas. O quarto dela fica intocado: o jovem gato, trazido pelo irmão mais velho, pega a dentadura da falecida e gera um pequeno incidente (curiosamente, é ele quem ganha a capa do livro). Em princípio, é a morta, e não o gato quem faz imperar a desordem:


Mamãe está tão real que até faz tremer os copos sobre a mesa. Tento fazer alguma piada para desviar a atenção, mas não dá muito certo. Simão rosna para mim e dá uma mordida no seu pão com cebola, depois de encharcar ele na canja.

Hoje ela está impossível: a louça inteira se sacode fazendo pirraça, como se houvesse um terremoto debaixo da terra.


A casa acaba se tornando um grande útero da mãe morta onde os irmãos vão regredindo, um mais seriamente do que o outro. Além disso, o irmão mais jovem deixa transparecer uma atração homoafetiva pelo mais velho (Simão), que deixa de falar e de comer. Procurando-o, depois que foge de casa, ele vai encontrando as roupas jogadas no caminho e faz este comentário: "A cueca, amassada rente à cerca, sorriu para mim fazendo promessas". O que é feito com o grão de arroz onde foi escrito o nome do protagonista (o título do livro, note-se) confirma o erotismo subjacente.

Este é um romance do incesto, mais sutil na abordagem no tema do que Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, por apostar no inarticulado para revelá-lo. Tema tabu, os textos da orelha e da quarta capa sequer o mencionam.

No útero, os dois irmãos disputam pela mãe. Quando o mais velho adoece, o protagonista, embora saiba que "só um doutor para vasculhar Simão e dizer se ele tem voz alojada no fígado", não chama ninguém e assume os cuidados paliativos.

Em certo momento, ele diz que traria, entre outras coisas improváveis, inseticidas, ratoeiras, pastas de naftalina para o irmão, doente, já "inerte no sofá", sentir-se "próspero". É evidente que ele deseja destruí-lo. A curiosa escolha do adjetivo é bastante reveladora: como se sabe, o personagem homônimo de Shakespeare em A tempestade foi destronado e exilado pelo irmão.

Um dos dados mais interessantes do romance é que essas ações monstruosas contrastam com a permanente delicadeza da linguagem do protagonista. Ele se apresenta como um jovem frágil e conta de uma festa em que sofreu deboche e foi o irmão que teve de apanhar de vários para defendê-lo. 

Um monstro sutil. No final, o delicado é que obtém a vitória de ficar sozinho na casa/útero, o que se reflete na voz: o mais difícil trava-língua é enfim dito sem gagueira nenhuma. Como este romance.


domingo, 27 de abril de 2025

Desarquivando o Brasil CCXII: Caderno de ossos, de Julia Codo e a Vala de Perus

O romance Caderno de ossos (Companhia das Letras, 2025), de Julia Codo, trata da Vala de Perus. Curiosamente, as três últimas notas que escrevi neste blogue abordam acontecimentos recentes ligados a essa vala clandestina no cemitério Dom Bosco, em São Paulo, onde a ditadura militar ocultou mais de mil corpos, alguns deles de militantes políticos.

Em 21 de março, publiquei sobre o pedido de desculpas que a União Federal faria no dia 24 subsequente; em 29, decidi escrever sobre como ele ocorreu, em razão da deficiente cobertura da imprensa; finalmente, depois de os trabalhos do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF-Unifesp) terem levado à identificação de Denis Casemiro e Grenaldo de Jesus Silva, expliquei algo, em razão das falhas do jornalismo, sobre como ela aconteceu

Opera Mundi, que entrevistou Edson Teles, da coordenação do CAAF, e Sumaúma, com Eliane Brum revisitando o caso de Grenaldo, que ela ajudou a desvendar em 2003, foram muito melhores na abordagem. Também o foi este livro de Julia Codo que, impresso em março de 2025, não abordou esses acontecimentos recentes, mas explicou bastante do processo de identificação dos remanescentes ósseos da Vala de Perus até o governo de J. Bolsonaro, que o sabotou.

Codo resolve adotar um tom didático para explicar a história da Vala, a abertura dela no governo de Luiza Erundina, a negligência da Unicamp, a criação do CAAF, as ações do presidente Bolsonaro e da ministra Damares contra a identificação dos desaparecidos. Cito esta passagem sobre as audiências de conciliação na Justiça Federal, da época em que a União tentou tirar os remanescentes ósseos da guarda do CAAF, que havia realizado identificações em 2018:


O governo federal argumentou que a manutenção do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense e o envio das amostras para Haia geravam muitos gastos e que a migração das ossadas para a Polícia Civil de Brasília traria uma grande economia. Os representantes da Comissão dos Familiares disseram que aquilo era inaceitável, que a transferência provocaria perda de tempo e novos atrasos na identificação dos restos mortais e que a troca na equipe, treinamento de pessoal, remoção e transporte adequado do material também gerariam gastos aos cofres públicos.  


O que poderia ser um defeito, o didatismo, acaba se revelando a força do livro, que não se justifica de outra forma. O romance, narrado em primeira pessoa, alterna as passagens da protagonista contando o que está vivendo com retrospectivas de sua infância e juventude, bem como relances da história de sua tia Eva, a desaparecida que talvez esteja entre os remanescentes ósseos da Vala. Não há contraste, porém: é tudo muito parecido e pouco interessante: é bastante evidente que o casamento dela não vai durar, tampouco o avô conseguirá viver muito mais tempo. Sabemos todos que empreiteiras participavam ou se aproveitavam da repressão: não há revelação alguma quando a antiga militante, Celeste, conta para a sobrinha de Eva o que todo muito sabia. 

Essa escrita centrada no eu acaba por se revelar burguesa demais para o tema. Quando a protagonista vai para a Marcha do Silêncio em 2019 em São Paulo (o evento aparece sem o nome), ela percebe sua própria "falsa empatia" e seu "engajamento episódico". Infelizmente, o romance mimetiza a personagem, em vez de trazer um olhar crítico.

Como a protagonista não é extremamente sagaz, pululam passagens sem sutileza ou profundidade: é um exemplo a explicação sobre as pesquisas ante mortem e post mortem que é logo seguida de uma analogia simplória no campo amoroso. Vejam esta passagem do amor post mortem: "Quando a ruptura é abrupta: síndrome do coração partido, também chamada cardiomiopatia do estresse. Quando a ruptura é lenta: negação, insônia, gastrite.".

As reflexões da protagonista assemelham-se às frases que revisa para seu trabalho on-line de citações motivacionais para um aplicativo, bem como às interpretações de sonhos que ela consulta em um portal da internet. O estilo alheio também pode ser a pessoa. 

A tentativa de introduzir a personagem de uma vidente perto do final não chega a mudar o panorama; Clarice Lispector em A hora da estrela criou uma personagem análoga para precipitar aquele desfecho completamente genial em que se entrelaçaram as dimensões sociais e individuais daquela história. Neste livro de Julia Codo, temos apenas uma tentativa de adiar o final com mais um episódio; o fim do romance, porém, já ocorreu páginas antes de ele terminar.

Principalmente, nada ficamos a saber sobre Eva, a desaparecida. O romance não chega a constituir o que ela fazia em termos políticos, tampouco quem ela era. Essa lacuna poderia ter sido explorada de forma interessante, mas acaba se tornando um simples vazio, e não um buraco negro a gerar outros universos. A propósito, a autora também incluiu passagens didáticas sobre Astronomia, como a singela comparação da passagem dos dias durante a pandemia com os efeitos da atração gravitacional de um buraco negro.

Nesse sentido, o olho de resina da desaparecida, que a protagonista descobre e passa a levar consigo, é o próprio romance: ele também não consegue dar a ver. Infelizmente, esse isomorfismo tampouco é explorado pela autora.

Boa parte da história se passa em 2019: chega 2020 e a pandemia, que é reduzida, neste livro, a um pretexto para oficializar o fim do casamento e confirmar o isolamento social da protagonista. Dito isso, os efeitos sobre o trabalho do CAAF são descritos. O antropólogo forense com quem ela teve um namorico explica:


Estamos fazendo o trabalho remoto que dá para fazer: manter o contato com os familiares, fazer textos e vídeos informativos. E acompanhar as audiências online do gabinete do juiz.

[...]

Para quem não quer que o processo ande, a pandemia é uma ótima justificativa: não tem condição sanitária, e pronto. Mesmo sendo um laboratório de cem metros para dois profissionais. Daria perfeitamente para trabalhar.


O didatismo pelo menos dá algum valor de documento ao romance e o relaciona ao direito à memória e à verdade, pois foi exatamente isso o que ocorreu com aquele Centro da Unifesp.

Em pelo menos dois momentos em que o livro se aproxima de algo mais sério, ele recorre a frases nominais. Isso é interessante: a Vala de Perus irrompe e a escrita se transforma: "Uma vala com a largura de uma retroescavadeira. Trinta e dois metros de comprimento, quase três de fundura. Um dia de 1976. Uma exumação em massa numa noite muito fria ou muito quente. [...]". 

Não dura muito. Poderia ter sido uma poética para o desconhecido. Da forma como ficou, temos apenas a sintaxe de um caderno de notas, e não de ossos.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Desarquivando o Brasil CCXI: Duas novas identificações de desaparecidos políticos e a desinformação da imprensa

Dia 15 de abril de 2025, à noite, foi liberada pelo Comitê Científico do Projeto Perus a informação de que foram identificados os remanescentes ósseos de dois desaparecidos políticos: DENIS CASEMIRO e GRENALDO DE JESUS SILVA (e não "da Silva"), assassinados pela ditadura militar em 1971 e 1972, respectivamente.
Seus corpos foram ocultados em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. A chamada "Vala de Perus" somente foi aberta em 1990, no governo da prefeitura Luiza Erundina e representou uma grande materialidade do caráter da ditadura militar, com os mais de mil corpos lá escondidos ilegalmente.
Logo teremos o aniversário de 35 anos da abertura da Vala, mas poucos desaparecidos foram identificados desde então. Agora, temos seis. No dia 16, fez-se o anúncio público das novas identificações na Reitoria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Recentemente escrevi sobre o recentíssimo, de 24 de março, pedido de desculpas da União pela negligência na identificação. Naquele momento, não gostei da cobertura da imprensa. Desta vez, acho que foi pior. Fica a impressão de que ela não tem acompanhado a questão e, por isso, não a compreende bem.
Foi interessante ver que profissionais da informação não sabiam ou não lembravam que teria havido uma identificação de Casemiro em 1991 pela Unicamp. Emocionante ver reportagem televisiva afirmando que ele foi identificado em 1991 e que agora o DNA foi confirmado. Comovente ler na imprensa que em 1991 não existiriam exames de DNA...
Escrevo esta pequena nota apenas a partir de informações que vieram à luz, de 1990 até 2025 pelos Familiares, pelas Comissões da Verdade, imprensa e universidades, sem entrar, claro, em informações confidenciais. 
A equipe da Unicamp chefiada por Badan Palhares falhou na errônea identificação de Denis Casemiro em 1991. Como foi explicado no ato do dia 16, o DNA dos remanescentes ósseos que foram enterrados em Votuporanga como se fossem de Denis Casemiro não corresponde ao da família Casemiro, tampouco ao de nenhuma das famílias de desaparecidos cujos dados até o momento constam dos bancos de dados genéticos. Uma vez que não foram colhidos os dados de todas, talvez eles sejam de outro desaparecido político.
Foram outros remanescentes que foram identificados agora como pertencentes a Denis Casemiro.
Em 1991, a Unicamp usou um método de sobreposição de imagens de fotos dos desaparecidos vivos com os crânios, bem como verificação da tipagem sanguínea. A Agência Pública explicou aqui: https://apublica.org/2025/04/vala-de-perus-exame-de-dna-corrige-identificacao-de-desaparecido-anunciada-em-1991/
Ao contrário do que diz a matéria, existiam exames de DNA em 1991, porém a Unicamp não os fazia, pois eram muito caros. Continuam sendo, por sinal: também por motivos econômicos, antes de enviar qualquer amostra para coleta, é necessário avaliá-la rigorosamente segundo critérios antropométricos, trabalho feito pela equipe de pesquisa post mortem do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF-Unifesp). A análise genética é feita no exterior, em um laboratório na Holanda, o ICMP (International Commission on Missing Persons).
Como foi largamente divulgado em 1991, a Unicamp achou seis pontos coincidentes entre a foto de Denis e o crânio e bastou-se. Também foi divulgado na imprensa da época que eram QUINZE os pontos principais que eles buscavam.
De qualquer forma, como se viu na cerimônia, não havia muita chance de a Unicamp conseguir identificar corretamente por meio desse método porque, conforme se viu tanto em 1991 quanto depois, inclusive na recente matéria da Agência Pública, a equipe usou uma foto antiga de Denis Casemiro, de 1962, tirada quando ele tinha apenas 18 anos.
É a foto que está publicada no Dossiê Ditadura, dos Familiares, na Comissão Nacional da Verdade e na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva":



Por algum motivo que me escapa, é a foto que boa parte da imprensa agora decidiu reproduzir. 
No entanto, quando foi assassinado pelo DEOPS-SP, ele não era mais assim. O CAAF-Unifesp divulgou a notícia com foto mais recente dele, obtida no fim do ano passado pela pesquisa ante mortem:


Ela está guardada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no Fundo do DEOPS-SP. Esta é a imagem que se encontra nos álbuns policiais (quem viu "Ainda estou aqui", o filme de Walter Salles, deve lembrar das cenas de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, folheando os álbuns de suspeitos - era exatamente assim que acontecia).
A foto não tem data, mas se pode imaginar que ela tenha sido tirada perto de seu assassinato, pois faz recordar de seu semblante quando morto (quem tiver estômago, pode ver essas fotos do laudo necrológico na ligação para a Comissão "Rubens Paiva" que deixei acima). Nos dois álbuns onde ela pode ser vista, há muitas fotos tiradas depois do sequestro pelas forças da repressão.
Portanto, para Denis Casemiro, tivemos a restituição de seu corpo e de sua imagem, o que faz valer o direito à memória e à verdade, e caminhamos um pouco mais dentro do campo da justiça de transição.
Grenaldo de Jesus Silva era um caso que tinha muita probabilidade de ser encontrado em Perus, pois havia registro de ele ter sido enterrado no Cemitério Dom Bosco. Quando abriram clandestinamente a Vala, em 1976, seu corpo foi lá escondido. A ditadura fez espalhar uma versão oficial de que ele teria se suicidado depois de ter tentado sequestrar um avião e seria um criminoso. No entanto, ele foi um perseguido político, foi expulso da Marinha em 1964, tendo antes recebido a pena mais alta entre os membros do movimento dos marinheiros. 
Os militantes contra a ditadura não acreditaram no falso suicídio e, desde a campanha pela anistia, incluíram seu nome entre os mortos e desaparecidos da ditadura.


A foto pode ser vista no perfil elaborado pela Comissão "Rubens Paiva": https://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/grenaldo-de-jesus-da-silva. Nele, também pode ser ler a notável matéria de Eliane Brum que revelou a verdade sobre o assassinato de Grenaldo, bem como o fato de que ele tinha sido descoberto e estava sendo perseguido, por isso tentou fugir do país por via aérea.
Ele pôde ser encontrado porque, em setembro de 2024, uma nova equipe entrou no CAAF-Unifesp e o trabalho de identificação pôde ser retomado, mesmo com contratos com prazo determinado e posições precárias. Em 2018, a equipe antiga logrou fazer duas identificações; depois, contudo, chegou o governo do Inelegível e o trabalho ficou quase paralisado; ademais, como o professor Edson Teles, vice-coordenador do CAAF explicou no ato do dia 16 de abril, aquele governo federal tentou retirar os remanescentes ósseos da Unifesp, o que poderia gerar um novo desaparecimento, pois o trabalho anterior sobre eles se perderia.
O anúncio da histórica identificação de DENIS CASEMIRO e GRENALDO DE JESUS SILVA foi realizado na presença da Ministra de Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo. Na mesa, falaram Eugênia Gonzaga, presidenta da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, do governo federal; Samuel Ferreira, coordenador cientifico do trabalho de identificação e perito da Polícia Civil, Edson Teles, professor de Filosofia da Unifesp e um dos coordenadores do CAAF (com a historiadora Joana Barros); Amelinha Teles, pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos; a Reitora da Unifesp, Raiane Patrícia Severino Assumpção e, finalmente, a Ministra Macaé Evaristo, que prometeu ajudar financeiramente os trabalhos. Sua fala foi bem sintetizada na matéria do Ministério: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2025/abril/estado-brasileiro-identifica-novas-vitimas-da-ditadura-e-reforca-compromisso-com-justica-de-transicao
Para terminar esta nota, não tenho nada melhor do que sugerir escutar Amelinha Teles (consegui gravar o início de sua manifestação no ato), que presenciou esta história desde a abertura da Vala, em 1990, elogiou Eliane Brum (uma jornalista rara) por sua atuação no caso de Grenaldo e explicou de maneira bem clara: "a Unicamp nos traiu": 



sábado, 29 de março de 2025

Desarquivando o Brasil CCX: A União se desculpa pela Vala de Perus e a imprensa esquece dos movimentos sociais

Finalmente ocorreu o pedido de desculpas do Estado brasileiro "pela negligência na condução da identificação dos remanescentes ósseos da Vala de Perus", que foi acordado nas audiências de conciliação do processo judicial sobre esses trabalhos de identificação. Essa vala clandestina em São Paulo, no Cemitério Dom Bosco, foi usada pela ditadura militar para ocultar corpos de vítimas do Esquadrão da Morte, militantes políticos, mortos da epidemia censurada de meningite e indigentes. Ela foi descoberta em 1990, mas até agora, aparentemente, apenas cinco desaparecidos foram identificados.

Os remanescentes ósseos foram retirados em 1.049 sacos. Hoje o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp estima que eles compreendem 1062 casos, acondicionados em 1065 caixas.

Recordo, como escrevi antes, que o governo do Estado de São Paulo, que também foi negligente, recusou-se a fazer esse pedido, razão pela qual esse tema saiu da esfera conciliatória em relação a esse ente estatal. É bem possível que seja obrigado a fazê-lo por decisão judicial.

A cobertura da imprensa foi mais ou menos homogênea entre as notícias que consegui encontrar. A EBC parece ter dado o tom, com o foco na Ministra Macaé Evaristo. Não houve diferença significativa entre os veículos situados mais politicamente à direita (como o G1 e a Folha) ou à esquerda (como A Ponte e O Vermelho): todos ignoraram o fato de que a cerimonialista do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania aparentemente esqueceu que estava prevista a fala dos movimentos da comunidade de Perus e que Fofão, da Comunidade Cultural Quilombaque, teve que tomar o microfone para que a programação combinada na audiência na Justiça Federal fosse efetivamente seguida.




Foi ignorada também a carta de reivindicação da criação de um memorial, que ele entregou à Ministra.

Outro momento descartado pelos jornalistas foi a chegada de Antônio Pires Eustáquio, o funcionário do Serviço Funerário que revelou a localização da Vala em 1990. Tínhamos a informação de que ele não apareceria devido a problemas de locomoção (o local não é de fácil acesso). No entanto, ele conseguiu aparecer depois do pedido de desculpas da União e fez uma breve intervenção, que eu filmei:



É interessante vê-lo dizer que, a despeito das várias ameaças de morte que sofreu, conseguiu sobreviver "por causa da democracia". 

A imprensa em geral seguiu a orientação estadocêntrica do próprio evento. Embora o Ministério tivesse o nome dos familiares presentes e dos desaparecidos correspondentes, eles não foram anunciados, embora a cada pausa fosse trombeteada a presença de, por exemplo, alguma chefe de gabinete de vereadora que tivesse acabado de chegar ao evento. E eram vários: de André e Maurício Grabois, de Gilberto Olímpio Maria, Hiram de Lima Pereira, Jaime e Lúcio Petit da Silva, João Maria Ximenes de Andrade, entre outros que não vi e já me desculpo por não citar. Os movimentos sociais de cultura e os de memória, verdade e justiça tampouco receberam o destaque merecido.

O público era grande e muita gente ficou em pé: a estrutura montada pelo Ministério para o evento foi subdimensionada. Entre os presentes no público do evento, estavam Ricardo Ohtake, o artista do monumento da Vala; Teresa Lajolo, a relatora da CPI de Perus em 1991; Adriano Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", na qual foi realizada a audiência de criação do órgão que faz a identificação dos remanescentes ósseos (depois dos anos de negligência da Unicamp, da USP e da UFMG): o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo. Eles não discursaram nem tiveram assento à mesa.

A fala de Gilberto Molina, representando os familiares, foi um ponto alto da cerimônia: ele tratou do "velório de quarenta anos" por que a família passou até a identificação de seu irmão, Flávio Molina. Ressaltou que outras famílias seguem esperando os resultados há meio século.

Ele recebeu esta placa da Ministra e a concedeu para a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, movimento da sociedade civil que também lá estava assistindo ao evento. Agradeço a Criméia Almeida ter-me permitido tirar esta foto.



Comprei, no dia seguinte, dois tabloides, O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo, bem como o jornal O Globo. Todos falaram do 24 de Março na Argentina, com ênfase nas medidas anunciadas por Milei, que está tentando tornar a teoria dos dois demônios uma doutrina oficial. 

Nenhum desses três veículos de imprensa mencionou os eventos análogos no Brasil, nem mesmo o pedido de desculpas. De fato, sem essa imprensa não estaríamos tão atrasados em matéria de justiça de transição.

Abaixo, copio a carta entregue pela comunidade de Perus na cerimônia exigindo a construção de um memorial, outra medida essencial de justiça por seu caráter educativo em memória e direitos humanos. Faço notar que o IPDMS, exceção no campo da pesquisa jurídica no país, instituição acadêmica a que pertenço, assinou-a.




PELA CONSTRUÇÃO DE UM MEMORIAL DOS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS E DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS




A/C Excelentíssima Senhora Ministra dos Direitos Humanos




Nós, integrantes do Território do Interesse da Cultura e da Paisagem Jaraguá-Perus Anhanguera e coletividades signatárias, por meio desta, solicitamos, em caráter de urgência, a implementação de um Memorial para a Reparação Histórica, referente aos mortos e desaparecidos políticos pelo crime de Estado dos governos ditatoriais, que servirá também como um espaço de formação e defesa permanente dos Direitos Humanos, no Cemitério Municipal Dom Bosco, localizado na Estrada do Pinheirinho, 860, em Perus, São Paulo.

Em 04 de Setembro de 1990, foi realizada a abertura de uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, da qual foram retirados 1.049 sacos com ossos humanos vítimas do aparato repressivo do período da ditadura civil-militar no Brasil. O evento foi um marco na luta dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos na medida em que se deu início ao processo de reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, das inúmeras violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade que tinham a pretensão de serem ocultados pela ditadura.

A luta pelo direito à memória, entendido aqui como a preservação da história, da identidade e da verdade, garante que fatos históricos, especialmente aqueles relacionados a regimes autoritários e violações de direitos, não sejam esquecidos ou distorcidos. É uma luta pela promoção da justiça, reparação histórica e pela construção de uma sociedade mais democrática.

É de suma importância ressaltar que a construção de um Memorial para a Reparação Histórica referente aos mortos e desaparecidos políticos da Ditadura Civil-Militar desempenhará papel crucial na luta pelo direito à memória, não apenas no campo simbólico, mas também material. Isso porque, um espaço físico de memória transforma a história, a memória e o sofrimento causado pelo Estado, em algo tangível e acessível. A função não é apenas honrar o passado, mas também educar, inspirar e fortalecer a luta por justiça, verdade e democracia no presente e no futuro. Sem esses espaços efetivos, corre-se o risco de que as violações de direitos humanos ocorridas na ditadura caiam no esquecimento ou sejam interpretadas de forma conveniente, permitindo que ciclos de violência e opressão se repitam.

O processo de construção desse Memorial em Perus e de tantos outros que gostaríamos de ver edificados pelo país, devem seguir princípios basilares como transparência, estímulo à participação social e ampliação da discussão sobre direito à memória e aos direitos humanos. Deverá sobretudo ser realizada por meio de articulação interfederativa - aos entes responsáveis, e com constante comunicação com a sociedade civil em todas as fases do processo.

Dessa forma, passados 35 anos da abertura da vala de Perus, a construção de um espaço físico tem como objetivo a manutenção e defesa da memória, justiça e verdade da trajetória política brasileira. É um passo importante para reafirmar no presente e para as gerações futuras que “os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos”.


São grupos e coletividades signatárias desta carta:

Território do Interesse da Cultura e da Paisagem - Jaraguá-Perus Anhanguera - TICP-JPA
Agência Queixadas
Agrupamento Debate CUTista - SINPEEM Independente e de Luta
Associação dos Aposentados Perus
Associação dos Professores da PUC - APROPUC-SP
Bando Undirê
Bloco Carnavalesco "Os Zatt'revidos" de Pirituba
Bloco D. Yayá
Campanha Tolstói
Canal Fala Escola
Casa do Hip Hop Perus
CEB's São José
Centro de Memória Queixadas - Sebastião Silva de Souza
CEU EMEF Perus
CEU EMEI Jorge Amado
CIEJA PERUS I
Coletivo Anhanguera Luta & Resistência
Coletivo Brigada pela Vida
Coletivo Código da Arte
Coletivo Favelô
Coletivo Janela Aberta
Coletivo Literário Sarau Elo Da Corrente
Coletivo Mães do Morro
Coletivo Matriarcal PanAfricanista Yaa Asantewaa
Coletivo Paulo Freire Noroeste
Coletivo Paulo Freire São Paulo
Coletivo Periferia no Foco
Coletivo Perus tem Rock!
Coletivo Povo De Luta Perus/Anhanguera, Taipas, Jaraguá E Pirituba
Coletivo Revolução Materna
Coletivo Rock de Subúrbio
Coletivo Salve Kebrada
Coletivo Slam do Pico
Coletivo Vozes da Base
Comunidade Cultural Quilombaque
CPDOC Guaianás
DOC_ARTE: Práticas Documentais e Arte
EMEF Philó Gonçalves dos Santos - EcoParque Escola Philó
EMEF Prof. Remo Rinaldi Naddeo
Espaço Cultural Morro Doce
Fórum de Trabalho Social em Habitação de São Paulo
Frente Popular em Defesa da Escola Pública de SP
Grupo Capoeira Raiz Da Resistência Núcleo Zumba
Grupo de Estudos em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo - GEPSIPOLIM
Grupo de Estudos Sobre Conflitos Internacionais - GECI
Grupo de Pesquisa Imagens, Metrópolis e Culturas Juvenis
Grupo de Pesquisa Linguagem em Atividades no Contexto Escolar - GP LACE
Grupo de Teatro TONAEJA
Grupo Pandora de Teatro
Instituto Cultural Bola de Fogo
Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais - IPDMS
Instituto DIPI
Instituto Pólis
Instituto Reeducação Para Todos Os Povos/Guerreiros Da Vila Da Paz
Laboratório de Estudos de Saúde e Sexualidade - LESSEX
Morada Jaraguá Okênozune
Movimento Cultural das Periferias
Movimento Negro Unificado de São Paulo - MNU/SP
Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento
Movimento Renova Sinesp
Núcleo de Cultura e Pesquisas do Brincar
Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Atividade, Subjetividade - NUTAS
Núcleo de Estudos e Pesquisa Trabalho e Profissão - NETRAB
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Aprofundamento Marxista - NEAM
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes, Famílias e Sistema de Garantia de Direitos - NCAF
Núcleo de Estudos Psicossociais da Dialética Exclusão/Inclusão - NEXIN
Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade
Núcleo de Preservação da Memória Política - NÚCLEO MEMÓRIA
Núcleo do PSOL Perus
Observatório do Futuro - FAFICLA
Ocupa Ramp
Ocupação Artística Canhoba
Partido dos Trabalhadores - Diretório Regional Perus/Anhanguera
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sexta-feira, 21 de março de 2025

Desarquivando o Brasil CCIX: O pedido oficial de desculpas, 24 de março, pelos desaparecidos da Vala de Perus

Em 24 de março de 2025, Dia Internacional do Direito à Verdade, comemorado também no Brasil em razão da lei federal 13.605 de 2018, ocorrerá um evento histórico: o governo federal pedirá desculpas pelos desaparecimentos na Vala de Perus, uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, onde a ditadura militar ocultou mais de mil corpos.

A lei federal nasceu de um projeto da deputada federal Luíza Erundina. Quando ela foi prefeita, a Vala pôde ser aberta e o trabalho de identificação dos remanescentes ósseos pôde começar. Era 1990: abriu-se uma CPI na Câmara dos Vereadores que serviu de preâmbulo para as comissões da verdade dos anos 2010. Alguns agentes da repressão, como Carlos Alberto Brilhante Ustra, escaparam de depor. A denúncia do funcionário do Serviço Funerário Antônio Eustáquio foi fundamental para a localização da Vala.



Acima, vê-se Eustáquio em 4 de setembro de 2024, ao lado do Cemitério Dom Bosco, com Amelinha Teles e Criméia de Almeida, membros da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Os remanescentes foram enviados à Unicamp para serem identificados. Depois de algumas alegadas identificações, o trabalho parou e eles foram armazenados de forma calamitosa, o que levou a um processo judicial. O pedido de desculpas do dia 24 de março foi decidido nas audiências de conciliação.

Além disso, os familiares dos desaparecidos provocaram o governo federal, a partir de uma articulação feita na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (menciono Amelinha Teles e Adriano Diogo na Comissão) com a ministra das Mulheres Eleonora Menicucci e a presidenta Dilma Rousseff. Daí nasceu o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF-Unifesp), que, na época, tinha a sua primeira mulher reitora, Soraya Smaili. 

A história da criação da equipe de trabalho e do universo de identificação de desaparecidos dentro daquele caso pode ser lida no relatório da Comissão da Verdade "Rubens Paiva", no capítulo "A formação do grupo de antropologia forense para a identificação das ossadas da Vala de Perus".

O CAAF trabalhou nas duas últimas identificações tornadas públicas, as de Dimas Antônio Casemiro e de Aluísio Palhano em 2018, porém os militares voltaram ao poder em 2019, com J. Bolsonaro como seu representante, e as atividades ficaram praticamente paralisados, pois a União Federal descumpriu os acordos e deixou de enviar a sua contribuição financeira. Só em setembro de 2024 uma nova equipe voltou a trabalhar na identificação, em contratos temporários, a partir de um acordo com o PNUD.

O governo estadual também foi processado por causa dos remanescentes ósseos, eis que estava envolvido nos desaparecimentos por causa de suas polícias, evidentemente, e de duas universidades estaduais: a Unicamp, como escrevi, deixou os remanescentes ósseos em condições precárias, deteriorando-se. Os familiares descobriram a situação de paulatina destruição; em seguida, os remanescentes foram levados para a USP, e ela se manteve inerte: o trabalho de identificação foi interrompido. 

O governo estadual, porém, durante as audiências de conciliação, decidiu repentinamente no fim de 2024 que não faria publicamente o pedido de desculpas, ao contrário do federal. A Agência Pública contou corretamente essa história na matéria "Governo Tarcísio recusa evento de pedido de desculpa por vala clandestina", de 5 de dezembro.

É estranhíssimo achar que não se deve desculpar publicamente por crimes de lesa-humanidade; fica a parecer que há uma simpatia oficial por esses delitos, da mais alta reprovabilidade, por sinal. Por isso, não teremos as autoridades estaduais no 24 de março. É provável que o governador seja obrigado judicialmente a fazer um pedido de desculpas próprio mais tarde.

Um erro comum em relação à Vala de Perus é achar que todos os remanescentes ósseos são de militantes políticos: na verdade, eles incluem também outros alvos da ditadura: indigentes, vítimas do Esquadrão da Morte e da epidemia de meningite, que a ditadura determinou que não podia ser noticiada, o que aumentou sua letalidade.

Outro erro, muito comum na imprensa, que será reproduzido na nota de desculpas do governo federal, já publicada pela Agência Pública no ano passado e pela CNN, em 6 de março de 2025, é o número de casos. Antes, se falava de 1.049 ossadas. Atualmente, após as análises do universo dos remanescentes ósseos, o CAAF identifica 1.062 casos contidos em 1.065 caixas.

Anuncia-se que a Ministra Macaé Evaristo fará o pedido de desculpas no dia 24 de março às 14 horas. Na ocasião, serão ouvidos também a Comunidade Cultural Quilombaque, de Perus, e os familiares de desaparecidos. Resolvi escrever esta nota por causa do caráter histórico do evento e porque até o momento em que esta nota é escrita o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania não incluiu o evento entre as noticias no seu portal, tampouco no ex-Twitter, embora já tenha enviado o convite para as pessoas cadastradas.

Eu não o recebi, no entanto irei (e chamo todos os que puderem aparecer lá), e deixo aqui a lista dos vídeos que gravei em quatro de setembro de 2024, no ato dos 34 Anos da Abertura da Vala de Perus, que a imprensa não noticiou e a administração do cemitério, privatizada, tentou impedir, como contei na época.




sexta-feira, 14 de março de 2025

"Caem árvores,/ porém não/ o prefeito"


Caem árvores,
porém não
o prefeito;

assim crescem
os mil ramos
do deserto

e dão sombra
ao desastre
reeleito.

Mil enchentes,
mas a sede
do prefeito

quer sugar
maremotos
no deserto,

águas-vivas
calcinando o
próprio leito.

Rios queimam
na saliva
do prefeito

quando brinda
com as chuvas
ao deserto

que respinga
das mil taças
no seu peito.

Caem árvores,
mas nenhuma
no prefeito

que por onde
ele passa
é o deserto

ou a terra
prometida
aos insetos.

Na madeira
devastada
sopra o vento

que a carrega,
que empilha
os gravetos

numa ponte
para o nada.
O prefeito

a atravessa
e o pedágio
do trajeto

a cidade
paga-o em juros,
dividendos

ao mercado
nu com in-
vestimentos,

Crescerão
as sementes
se o dinheiro

vende enchentes
e especula
com os pleitos

nos gestores
do deserto?