O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 19 de janeiro de 2025

Canto e êxodo

Ao Moacyr


I

O sangue doado a ti,
mas o teu coração
interrompido.
O sangue deixou
de correr, porém
a doação segue.

O sangue doado a ti 
derramou-se
perdido e reencontrado
como tu mesmo
circulas agora
nas veias do mundo.

Doa-se o sangue
da mesma forma
como se canta;
cantavas, isto é,
ofertavas-te inteiro 
às veias do silêncio.

O sangue circula
como o canto ressoa
no coração dos ares:
não se ouve mais,
porém segue, esperando
habitar a distância.


II

Na última mensagem
falaste de êxodo e sucesso
na passagem de ano.

Parecia engano, era uma promessa.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Desarquivando o Brasil CCVIII: Carlos Nicolau Danielli, os óbitos retificados e o desmonte de farsas da ditadura

O Jornal Nacional da Rede Globo divulgou reportagem em sete de janeiro de 2025 sobre a emissão de certidões de óbito retificadas para os mortos e desaparecidos políticos citados no relatório da Comissão Nacional da Verdade. As alterações substituem as versões falsas que a ditadura militar quis impingir para eximir-se da culpa dessas mortes.
O relatório, lembramos, foi entregue à presidenta Dilma Rousseff em dezembro de 2014. Dez anos após, em dezembro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça aprovou resolução, a partir da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (que é um órgão federal), ordenando aos cartórios alterarem as certidões para que nela constasse como causa mortis a ação violenta do regime ditatorial, em vez das versões anódinas e/ou erradas feitas na época da ditadura.

Art. 2º Para fins do disposto no art. 80 da Lei nº 6.015/1973, as lavraturas e retificações dos assentos de óbitos de que trata o art. 1º serão baseadas nas informações constantes do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, sistematizadas na declaração da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).
§ 1º Em atendimento ao disposto no item 8º, do art. 80 da Lei nº 6.015/1973, deverá constar como atestante a CEMDP e, como causa da morte, o seguinte: “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964.”
A primeira certidão entregue por causa dessa determinação do CNJ foi a de Carlos Nicolau Danielli, em sete de janeiro, em São Paulo. O cartório avisou Criméia Almeida, em nome da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (uma organização da sociedade civil), já que não tinha o contato com a família do morto. Ela e sua irmã, Amelinha Teles, falaram com a família, que mora no Estado do Rio de Janeiro, e foram receber em nome dos familiares a certidão.
Amelinha me avisou e fui para o cartório assim como Adriano Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", que tratou do caso de Danielli; vejam aqui a audiência pública de 2013: https://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/arquivos/videos/casos-carlos-nicolau-danielli-e-luiz-ghilardini-parte-1-25-de-abril-de-2013
Abaixo, foto minha de Amelinha (de preto) e Criméia (de azul), abraçadas, recebendo o documento.



Carlos Nicolau Danielli foi um dirigente do PCdoB torturado e assassinado no fim de 1972 pelo DOI-Codi de São Paulo, que era chefiado por Carlos Alberto Brilhante Brilhante Ustra. Amelinha, Criméia e César Augusto Teles (marido de Amelinha, já falecido) foram presos na mesma época e testemunharam o crime.
O laudo necroscópico havia sido assinado pelos médicos legistas Isaac Abramovitch e Paulo de Queiroz Rocha. Na certidão original, a causa mortis era "anemia aguda traumática", sem, evidentemente, menção alguma à origem violenta da morte, que agora está expressa. Essa alteração é uma demanda histórica dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, que desejam ver a verdade reconhecida oficialmente:




Trata-se, com efeito, de uma medida importante de direito à verdade no âmbito da justiça de transição, que é citada expressamente nos consideranda da resolução, que menciona a "Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o direito à verdade e à memória, especialmente em contextos de justiça de transição (e.g., caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala, sentença de 25.11.2000)". A menção ao Direito Internacional e à Corte da OEA aparece justamente no primeiro dos consideranda, o que também rompe com a tradição isolacionista da cultura jurídica brasileira em relação ao Direito Internacional dos Direitos Humanos.
O programa da Globo, que pode ser visto on-line, bem incluiu outros casos de mortos políticos, como Luiz Eduardo da Rocha Merlino e Vladimir Herzog, cujos familiares haviam conseguido a mesma retificação por meio de processo judicial. O recurso à via judicial não é mais necessário, o que facilita muito para os familiares.
Gostaria, nesta nota, de lembrar alguns aspectos da história que não estão na reportagem. No meu livro, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A, Brilhante Ustra e a tortura, conto a história um pouco da história de Danielli porque Amelinha, César e Criméia, também sequestrados pelo DOI-Codi, foram testemunhas do assassinato e sempre denunciaram o crime (cliquem aqui e verão um panfleto que a Comissão "Rubens Paiva" recuperou com uma denúncia realizada ainda durante o governo do general Figueiredo).
Um aspecto cruel da história foi o de que a operação para capturá-los tornou-se exemplo em apostila de Brilhante Ustra para um curso do SNI. Conto no livro:




Hoje provavelmente diriam que foi um "case de sucesso" dos crimes de lesa-humanidade do período. 
Danielli somente pôde ser enterrado pela família no Rio de Janeiro em 1981. Amelinha Teles auxiliou na exumação e translado do corpo. Em audiência de 13 de setembro de 2013 da Comissão da Verdade "Rubens Paiva", ela contou esta história absurda, porém, real: na certidão de óbito, Danielli era chamado de terrorista:

Eu me lembro que eu fui, numa dessas minhas tarefas na vida, eu fui fazer a exumação e o traslado dos restos mortais do Carlos Nicolau Danielli que era um dirigente do Partido Comunista do Brasil. E eu fui ali no cartório do Jardim América buscar o atestado de óbito porque, para fazer o traslado eu tinha que ter o atestado de óbito.
Quando eu peguei o atestado de óbito estava escrito assim, profissão, “dois pontos terrorista". Aí eu falei com o moço do cartório, eu falei assim, não! Isso aí não dá para eu levar, profissão terrorista. O senhor já viu ter carteira de trabalho assinado profissão terrorista? Ele olhou para mim e falou assim, “é, nunca vi, não”. Eu falei, então tira isso aí! Ele falou, “mas o que eu ponho?” Eu falei você põe o que você quiser, mas não dá para por isso aí.
Você sabe que na hora o funcionário, não foi nem, o funcionário falou “eu vou corrigir isso aqui”. Pegou, pôs um monte de “x” assim, pode olhar, o atestado de óbito tem profissão “xxxx”. Ele falou, “vou tirar mesmo”.
Quer dizer, é tão simples agora colocar, até deixa lá "anemia aguda". O Carlos Danielli ele, como ele foi assassinado sob torturas e teve hemorragia interna, então lógico que deu anemia aguda, não é? Ele perdeu todo o sangue, não é? E aí, então, põe "anemia aguda" por causa da tortura no DOI-CODI senão, quer dizer, só completar, ele pode ter tido sim anemia aguda.
Agora, em 2025, a anemia aguda foi substituída pelo que a causou.
Não são apenas as certidões dos 434 mortos e desaparecidos listados pela CNV que deverão ser retificadas. A resolução mencionada prevê que familiares de outras vítimas poderão requerer o mesmo, bem como a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania:
Art. 4º Nos casos de óbitos que não constem do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, poderão os familiares das vítimas, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos ou o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania requerer a lavratura ou a retificação dos assentos de óbitos aos cartórios competentes, cabendo recurso administrativo da decisão perante as Corregedorias locais, sem prejuízo de eventual revisão do Conselho Nacional de Justiça.
Há muitos outros além daqueles 434; na lista de mortos e desaparecidos políticos da Comissão "Rubens Paiva" há outros nomes. Criméia Almeida, em parte do depoimento que a Globo não levou ao ar, lembrou do genocídio dos indígenas. Na verdade, ainda há muito para pesquisar em relação às vítimas da repressão.
Danielli era considerado perigoso para o regime porque articulava o contato dos guerrilheiros do Araguaia com o PCdoB nas cidades e, ademais, fazia as denúncias contra a ditadura circularem no exterior. Essa última questão também é destacada nos documentos confidenciais dos órgãos de repressão e vigilância. No Brasil, em razão da censura, o governo controlava os meios de comunicação. Volto a citar aquele meu livro:


A Anistia Internacional não era uma entidade do "comunismo internacional", ao contrário do que aparece em vários documentos quejandos. Ela era incômoda, porém, porque a divulgação da verdade dos crimes do regime era considerada, ela mesma, um crime na ditadura.  Essa é uma das razões pelas quais o direito à verdade é fundamental para a justiça de transição. Quem leu o livro de Marcelo Rubens Paiva, Ainda estou aqui, e/ou viu o filme de Walter Salles deve lembrar que Eunice Paiva ficou feliz ao receber a certidão do óbito de Rubens Paiva, e ela mesma reconheceu que era uma alegria estranha, mas real. Vi o mesmo ocorrer com Criméia e Amelinha.
Trata-se da alegria de ver a luta pela verdade triunfando no final. No caso de Danielli, depois de 52 anos de seu assassinato, 9 depois do falecimento (por doença) de seu algoz, C. A. Brilhante Ustra, jamais punido porque a ação do Ministério Público Federal foi barrada pelo Judiciário brasileiro (vejam nesta ligação) e apenas 3 após o fim do governo daquele militar, Jair Bolsonaro, que homenageou Ustra diversas vezes e agora está sendo investigado por tentativa de golpe de Estado, que começaria com assassinatos pelo menos do presidente e do vice-presidente eleitos (Lula e Alckmin), de um ministro do Supremo Tribunal Federal (Alexandre de Moraes) e de uma quarta pessoa ainda não identificada.
Provavelmente o golpe teria gerado mais vítimas, como Rubens Paiva e Carlos Nicolau Danielli o foram.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Ditadura e golpe, Dmitri Hvorostovsky, Ogum, Angélica Freitas, Alberto Pimenta e outros na retrospectiva de 2024 à luz dos leitores

Sempre faço uma retrospectiva anual neste blogue: o exercício de memória do passado recente permite compreender melhor o presente. De alguns tempos para cá, sempre espero que os doze meses terminem, que é o que faz sentido, ao contrário do que estipula a temporalidade jornalística. Imaginem que no jornalismo cultural há até veículos que pedem que se escolha em outubro as melhores produções do ano!

Ademais, em certo sentido, nunca sabemos quando um ano realmente termina. Alguns ferem a cronologia e demoram mais para terminar, o que deve ser a razão pela qual o governo Lula não mencionou no primeiro de abril passado os sessenta anos do golpe de 1964.

Sempre mudo o critério da retrospectiva. Em 2017, quando ainda fazia essas coisas no último dia do ano, resolvi escolher  textos interessantes dos blogues que seguia. Entre eles, dois caíram.

Os blogues perderam audiência para as redes de fotos e as de vídeos que duram alguns segundos. No entanto, de 2023 para cá, vejo pessoas que afirmam desejar ler textos na internet, e não ver esses flashes que não convidam exatamente à reflexão. Notei também que blogues novos foram criados, o que é um movimento interessante.

Eu mantive este porque ele serve como um grande rascunhão de textos. Resolvi, então adotar o procedimento que muitos seguem: simplesmente listar as doze entradas mais lidas no blogue durante 2024, a começar da que teve mais visualizações. Eu não tinha a ideia de quais eram, surpreendi-me porque algumas são antigas, chegando a 2010. Imagino, portanto, que o interessante desta lista seja indicar temas que alguns leitores em português na internet acharam sensíveis.

Não que O palco e o mundo tenha sido muito lido: ele teve 45 mil e oitocentas visualizações no ano, o que não é muito para um blogue; ademais, pelo menos metade desse público deve ter chegado aqui por acaso e não por causa dos textos. No entanto, mesmo reduzindo a, talvez, dez por cento das visualizações, trata-se certamente de mais gente do que leu meus livros no mesmo período.

Curiosamente, os dois primeiros textos têm relação com música. Sou tenor e canto na Associação Coral de São Paulo, porém não tenho formação alguma nessa área, em que sou apenas um amador anônimo, apesar de participar de produções profissionais. Imagino que o assunto dos textos tenha sido o que chamou a atenção das pessoas ao ponto de lerem até mesmo algo que escrevi.



Dmitri Hvorostovsky (1962-2017), o cantor do mundo, a voz da Rússia e da Itália (22 de novembro de 2017). O texto conta minha experiência, apesar de limitada, com o célebre cantor russo, que morreu depois de uma batalha contra o câncer quando ainda estava senhor de sua voz e a carreira continuava a se desenvolver nos grandes palcos do mundo.

Tive a sorte de vê-lo duas vezes. Reproduzi no texto o programa de seu concerto no Rio de Janeiro (vazio de público, para a vergonha dos cariocas), falei de algumas gravações e lembrei da última vez que o vi, no ano em que descobriu a doença.

Escrevi um texto bem simples; o fato de ele ser lido mostra como Hvorostovsky continua a ser ouvido e amado graças às gravações e à memória que deixou no público. Imagino que continue criando memórias, pois leio nos comentários sobre as pessoas que o descobriram depois que morreu. De certa forma, um grande artista não morre.


30 dias de canções: O céu, o mar, a umbanda (31 de janeiro de 2017). Ousei, no início de 2017, produzir trechos para essa série, que outros blogues adotaram. Modifiquei algumas entradas, que não faziam sentido para mim, porém mantive a estrutura dos trinta dias. Comecei dia 28 de janeiro e só consegui encerrá-la no 25 de março, pois não consegui (nem imaginei que o faria) escrever um texto por dia. Em 2024, no entanto, publiquei aqui menos de trinta textos em um ano!

Na série, escolhi música de Guiraut de Borneilh a Tiganá Santana, passando por Beth Amin e Schumann. Também selecionei um ponto de Ogum que me foi ensinado por minha madrasta (por sinal, ela morreu há pouco mais de um mês; talvez tivesse gostado de saber disto).

"Se o céu é lindo" foi o tema do despretensioso texto que, sete anos depois, continua sendo lido, não sei por que razão. Talvez isso aconteça por causa da continuidade dos ataques racistas de terroristas cristãos às religiões afro-brasileiras, bem como dos chamados narcocrentes: lembro aqui do famigerado Complexo de Israel, no Rio de Janeiro, região em que os traficantes evangélicos expulsaram os terreiros, o que é outro dos crimes (além da venda de drogas) que são cometidos sistematicamente naquele Estado, tendo em vista a inoperância das forças de segurança e do Judiciário.


Desarquivando o Brasil CCVI: Jair Bolsonaro, Carlos Alberto Brilhante Ustra e outros militares (25 de novembro de 2024). Trata-se do mais lido entre os textos que escrevi neste ano, provavelmente por causa da urgência do tema: a descoberta do plano militar de assassinato de pelo menos Lula, Alckmin, Alexandre de Morais em 2022. 

Nele, lembrei dos trechos de meu livro mais novo, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura, sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.

Quis contrastar o texto com a  aparente leveza ou até leviandade de certos meios de comunicação no tratamento do assunto, que diz respeito diretamente à continuidade da democracia no Brasil. O mais curioso foi ver bolsonaristas reagindo assumindo tudo ou quase tudo do que foi investigado pela Polícia Federal e alegando, mesmo assim, perseguição política: a impunidade é seu lar e, por isso, estranham quando algo diferente ameaça surgir no horizonte. 


Angélica Freitas e o tamanho da insurgência (10 de outubro de 2012). Aqui, além de reproduzir um texto que publiquei em 2007 sobre a estreia em livro da autor, Rilke Shake, em um extinto jornal impresso de crítica literária, o K., escrevi minhas impressões sobre Um útero é do tamanho de um punho, que comprei e li antes do lançamento em São Paulo. 

Publiquei-o em 2012 justamente para fazer propaganda da poeta, que (devo dizer aqui, por causa da maledicência desse meio) não é minha amiga pessoal. Simplesmente entendi que o livro era importante. Destaquei nele o caráter de contestação à ordem patriarcal, bem como a insurgência do feminino. Cheguei na época a discutir com uma professora de literatura que afirmou que ele não era poético porque "um útero é realmente do tamanho de um punho". Ai.

Creio que ainda é a melhor obra de Angélica Freitas. Poucos anos depois, vi uma jovem com veleidades críticas escrever que nunca viu os homens destacaram essas mesmas qualidades desse livro. É triste que os jovens tantas vezes usem na internet sua própria ignorância (nunca viram nem leram nem ouviram...) como argumento de autoridade. A poeta é muito maior do que isso.


Desarquivando o Brasil CXCVII: "O intento golpista e, portanto, criminoso": minutas de golpes e atos institucionais (21 de fevereiro de 2024). Escrevi este sobre as minutas de golpe encontradas pela Polícia Federal com Anderson Torres. Resolvi elaborar um paralelo, do tipo que costumo fazer neste blogue na série Desarquivando o Brasil, com os antigos atos institucionais da ditadura militar.

O golpe, felizmente mal sucedido, era retrô também nesse aspecto. Ademais, sua base teórica era péssima (foi um caso de inteligência militar como deux mots qui hurlent de se trouver ensemble), precário até mesmo para os juristas que o inspiraram, conforme destaquei.


Desarquivando o Brasil CCIII: Onde está o relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (16 de setembro de 2024). Eu estava há muito tempo para escrever esse texto. O que finalmente me moveu foi ter lido um livro cheio de equívocos que venceu a primeira edição do Jabuti Acadêmico; entre os erros, estavam afirmações sobre o relatório mencionado. 

A Comissão "Rubens Paiva", criada pelo Legislativo estadual por iniciativa de Adriano Diogo, foi interessante já pelo fato de ela ter surgido antes da Nacional e, com isso, ter despertado a fundação das outras: estaduais, municipais, sindicais, universitárias, a Camponesa etc. 

Era uma pena que a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo não estivesse tratando bem do relatório, que jamais foi impresso e só existe on-line. Não sei se o meu texto teve alguma influência nisto, mas algumas semanas depois, não tive mais problema para acessá-lo.


Alberto Pimenta e o Discurso sobre o filho-da-puta de volta, em tempos muito apropriados, ao Brasil (16 de dezembro de 2020). O maior poeta vivo da língua portuguesa, Alberto Pimenta, é uma das principais razões por que as pessoas vêm parar neste blogue. Quatro anos depois, o texto de 2020 sobre a publicação na Serrote do célebre Discurso, que é seu livro mais traduzido, foi o mais lido dos vários que já escrevi sobre ele.

Evidentemente, além da genialidade de Pimenta, o assunto de que ele trata é sempre atual, o que deve ter chamado a atenção de quem leu o meu texto.


Subterrâneo do anjo e aniversário do Walter Benjamin (15 de julho de 2024). Este foi uma surpresa porque é um poema meu, ainda não recolhido em livro, publicado em um periódico de poesia, Ouriço, que o pediu. Eu o li com Fabio Weintraub no lançamento paulista da revista. Achei que a reação foi meio gélida, com exceção de Matheus Guménin, que foi a pessoa que estava lá e disse que gostou do poema. Acho que o problema foi tê-lo escrito com um tema (poesia e história), que foi alterado depois, o que me deixou meio fora do lugar naquele contexto. No blogue, porém, algumas pessoas talvez o tenham lido porque nele viro Walter Benjamin de pernas para o ar, o que não é tão comum.


Desarquivando o Brasil LXVII: Polícia e direito de manifestação (23 de agosto de 2013). Aqui tratei de alguma falas minhas no ano difícil de 2013, com destaque para a que fiz em uma iniciativa de esquerda de que morreu logo depois. Luka França também lá estava para tratar do caso Carandiru.

O vídeo caiu, mas os textos que apontei estão aqui: https://web.archive.org/web/20130811025608/http://vandaleando.laboratorio.us/. Como sempre, fiz o exercício de comparar o presente e o passado, dessa vez desde os anos 1950. 

Por que esse texto continua a ser lido, mais do que outros bem mais recentes? Imagino que a persistência do problema, com os casos diários de arbitrariedade policial, seja a razão.


Impressões europeias: a sombra do continente (21 de setembro de 2010). Trata-se de 355 caracteres (com espaços) e uma foto, que eu tirei, de xenofobia e racismo no Aeroporto de Madri. Zapatero e Sarkozy ainda estavam no poder.


Ele cala: a poesia de Nuno Ramos (20 de setembro de 2010). É o mais antigo dos textos, publicado na véspera do anterior. Trata-se de um dos artigos que escrevi sobre a obra literária de Nuno Ramos; este saiu na extinta revista Rodapé, que não foi publicada na internet.


Desarquivando o Brasil CCIV: Ciclo no SESC-SP de pesquisas acadêmicas e jornalísticas sobre a ditadura (16 de setembro de 2024). Eu não iria ficar, como o governo federal (já que habito em São Paulo, digo o mesmo do estadual e do municipal), calado sobre os sessenta anos do golpe de 1964. Uma das ocasiões em que falei em público sobre a triste efeméride foi nesse ciclo do Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP, para o qual fui chamado em razão de meu livro de 2023,  Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura.

Também no livro não me calei sobre a problemática da ditadura, por sinal. Para quem ainda não o leu, aqui está a introdução: https://www.editorapatua.com.br/ilicito-absoluto-a-familia-almeida-teles-o-coronel-c-a-brilhante-ustra-e-a-tortura-ensaios-de-padua-fernandes/p


terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Adília


I

É preciso ser muito idiota
ou muito poeta
para afirmar que a poesia é o amor;

(a poesia, evidentemente, é o amor
e o ódio também o é;
quando combinamos os dois
o prato ainda não resulta na poesia)

é preciso ser muito louco
ou muito poeta
para aconselhar alguém a escrever poesia;

(é óbvio que a loucura escreve
tanto quanto a poesia,
mas se juntamos as duas
não temos ainda o poeta)

mencionar estrelas no poema é o cúmulo,
nem os astrólogos o fazem,
ocupados que estão com a indústria do entretenimento
e as eleições nas grandes potências;

(sabe-se desde as cavernas
que tanto as sombras quanto os versos
vêm da nostalgia das estrelas)


II

Talvez escrever poesia seja apenas perder a gata
e ganhar as garras
o cio
o salto
sobre a presa mínima


III

A poeta morreu antes do fim do ano,
deixou a Física antes do fim do curso,
esqueceu os planos ao sair à rua,
queimou os projetos antes de pegar os fósforos,
não sabia qual era a frente
onde trocaria de lugar com o carro e os bois,
não chegou a terminar a viagem
e a troca de lugares
e porque recusou tanto o fim
podemos nela recomeçar.


IV

Ao verso final
da obra reunida
chama-se morte;

pode-se dizer
o mesmo
do inicial.

Ao verso final
da obra reunida
chama-se golpe,

aquele que acerta
o plexo solar
e dobra o corpo

em mil estrelas;
diga o mesmo
sobre as estrelas.


V

Se tivesse sido um homem
que desinteressante teria sido.

É o que se diz quando se vê um homem poeta:
quão mais interessante seria
se fosse uma mulher.


VI

os livros, ou seja, a carne,
o osso e mais algo
que abraça ou fere
como os poemas;

os livros, ou seja, terra,
ares e águas e mais outra coisa
para meios de transporte
como os poemas;

os livros, ou seja, o abraço,
a ferida e o transporte
que juntos
não compõem aquilo
que os poemas
tampouco logram.


VII

Sabemos que morreu uma poeta
porque os jornalistas não sabem o que dizer
e os influencers não dizem nada,
embora especialistas em tanto dizer
sobre o que ignoram por completo.

Sabemos que morreu uma poeta
porque pararam de lhe perguntar
suas influências, seus amores,
desistiram de saber o conceito
e a finalidade da poesia,

embora ela inteira se manifeste
na morte da poeta,
compartilhando entre nós
o ser e o não-ser.


VIII

Tenho dois gatos: o Breu e a Brilho. O preto puxa o papel higiênico e o desfaz em tiras antes de saltar para as alturas do box; a frajola observa tudo ao lado do tapete do banheiro. 
Breu nas alturas, Brilho ao rés do chão.
Aprende-se muito sobre poética quando se vive com gatos.


IX

Às vezes você escrevia como as crianças.
Quem não gosta de poesia não tem desculpa alguma.


X

A poeta morre,
editores que nunca a publicaram 
desdenham do cadáver
que jamais verão.

Lembro do orgulho de Vitor,
dizer que foi o primeiro editor da poeta.

Também foi o meu,
mas essa é a única coisa em comum
que tive com a poeta

além do fato
de que estamos sempre a terminar.


XI

Declamações nas aulas de português, ou
lições caladas sobre Portugal,
essenciais para aprender
que para os fascistas somos cães de rua
e aos habitantes da rua
eles enforcam.


XII

Quando os poetas não se internam
ou saem da internação, o que fazem?
Derrubam asilos? Arrombam
suas portas? Abrem o poema

para o leitor entrar se quiser
talvez ele não tenha outro refúgio
para pensar ou espreguiçar-se ou cantar
e para ouvir os cães do lado de fora
e poder chamá-los para dentro se quiser
e saírem juntos quando lhe apetecerem
e morderem juntos
se atacados
depois de terem entrado no poema.

Há os poetas que constroem os asilos,
mas esses não entram
em minhas categorias poéticas.


XIII

Ignoro se gostam mais da sua obra em Portugal, em Angola, em Moçambique, no Brasil ou alhures.
O lugar onde apreciam sua obra certamente torna-se alhures.


XIV

Por outro lado, nunca sabemos quando nascem poetas.


terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCVII: Flávio Dino e a Lei de Anistia

O Ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, propôs em 15 de dezembro último dar repercussão geral a um caso dos crimes de lesa-humanidade da ditadura militar, que chegou ao STF por meio do recurso do Ministério Público Federal em processo que considerou anistiado o tenente-coronel Licio Maciel. Esse militar é um dos listados pela Comissão Nacional da Verdade entre os 377 agentes de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar.

O portal do Supremo Tribunal Federal está desatualizado no momento em que escrevo, porém o Migalhas publicou a importante decisão.

O Ministro cita as Convenções da ONU e da OEA sobre desaparecimento forçado, bem como a 1a. Convenção de Genebra e considera que o crime em questão é permanente e não foi atingido pela Lei de Anistia (mesmo se considerarmos que ela se presta a perdoar crimes de lesa-humanidade), pois o crime de ocultação de cadáver continua a ser praticado enquanto persiste o desaparecimento; transcrevo este trecho:


[...] existe o crime enquanto não cessar a permanência, o que reforça a certeza de que a Lei da Anistia não atingiu, nem poderia atingir, os fatos posteriores à sua vigência.

A Lei da Anistia é válida para os fatos pretéritos, entretanto não alcança aqueles crimes em execução depois da sua aplicação. Não há ultratividade para a Lei da Anistia, pois isso constituiria uma espécie de “abolitio criminis” prospectiva, inexistente no Direito pátrio.


A decisão, que expressamente ocorre em obediência às normas de justiça de transição, recebeu destaque em boa parte da imprensa, com razão, tendo em vista  o atraso do STF, de quase uma década e meia, em julgar os recursos interpostos contra a lamentável decisão na ADPF 153, que o Conselho Federal da OAB propôs a respeito da Lei de Anistia de 1979, bem como a nova ADPF que o Psol propôs contra aquela lei. A decisão infausta ocorreu em abril de 2010, quando o STF considerou, contra o texto expresso da norma, contra a Constituição de 1988 (que prevê a anistia só para as vítimas dos atos de exceção) e o Direito Internacional aplicável que os crimes de lesa-humanidade da ditadura teriam sido anistiados. 

Mais tarde, no mesmo ano de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em denúncia feita pela Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (uma organização da sociedade civil), determinou que aquela lei era inaplicável para esses crimes.

Dos debates e movimentações políticas gerados por essa decisão internacional, vieram as leis de criação da Comissão Nacional da Verdade e de Acesso à Informação em 2011.

Enquanto o STF não julga em definitivo a ADPF 153, o restante do Judiciário, em regra, vem indeferindo as denúncias criminais do Ministério Público Federal que têm aqueles crimes como objeto. Neste caso, um dos réus, o tenente-coronel Sebastião Curió, também listado pela CNV como responsável por desaparecimentos na Guerrilha do Araguaia, não pode mais ser condenado porque faleceu (não sem antes ser recebido e homenageado pelo militar que ocupou a presidência da república antes de Lula e hoje é investigado por golpe de Estado).

A notável lentidão do STF anda de mãos dadas com o ciclo da vida e da morte, tendo em vista que o falecimento dos réus, nestes casos de crimes cometidos há décadas, também livra-os da responsabilidade penal.

Escrevo esta nota porque li algumas notícias que deixaram de lado que Dino está aplicando a jurisprudência da própria Suprema Corte, em posição comum  com o Ministério Público Federal. Até encontrei comentários de que o Ministro estaria inovando no tribunal com entendimentos esdrúxulos. No entanto, incorrem em erro esses que pensam assim.

Para esclarecer, cito meu livro mais recente, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura, escrito em 2023, antes da decisão mencionada de Flávio Dino. O livro trata, entre outros assuntos, do imbróglio do (não) julgamento da Lei de Anistia, inclusive dos


[...] casos de crime permanente de sequestro durante a ditadura militar, em casos em que a Lei de Anistia não era aplicável. Nesse crime, o equivalente no Brasil ao desaparecimento forçado, a vítima desaparece e não é encontrada, o que impede o início da contagem da prescrição criminal, segundo decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal na extradição pedida pela Argentina do tenente-coronel uruguaio Manuel Juan Cordero Piacentini, em razão de desaparecimentos forçados no âmbito da operação Condor.

Nessa extradição, o próprio procurador-geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, considerou, em fevereiro de 2008, que o crime permanente de sequestro não estava prescrito: [...]


Dino não está rasgando, pois, a jurisprudência do STF. Apesar disso, alguns querem desqualificá-lo por causa de seu passado. Sabe-se que ele deixou a magistratura, na qual ingressou por concurso público, para entrar no sistema político, o que fez também com sucesso: venceu eleições para deputado federal, governador de Estado e para Senador e foi Ministro do terceiro governo de Lula; na maior parte desse tempo ele pertenceu ao PCdoB, depois migrou para o PSB.

Flávio Dino atuou politicamente no campo da esquerda, porém não sujou a toga, quando foi juiz de carreira, para trocar decisões judiciais por cargos políticos. De volta à magistratura, e agora no tribunal mais alto do país, Flávio Dino neste caso está apenas a aplicar o Direito de forma tecnicamente correta. 

Dito isso, é verdade que, em geral, é a esquerda que, no Brasil, deseja cumprir o Direito aplicável aos crimes de lesa-humanidade e reconhecê-los como insuscetíveis de anistia. 

No entanto, o que deveria ser objeto de dúvida e constrangimento não é essa postura da esquerda, mas o fato de boa parte da direita (inclusive seus porta-vozes na imprensa) não se conformar com a eficácia das normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, preferindo a elas o louvor aos crimes de lesa-humanidade, incompatível com a democracia.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCVI: Jair Bolsonaro, Carlos Alberto Brilhante Ustra e outros militares

Esboço esta nota por causa da trama recentemente descoberta de militares que conspiraram em 2022 para matar Lula e Alckmin, depois de eleitos em 2022, e o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre Moraes.

Quando resolvi escrever um livro sobre o processo em que a família Almeida Teles conseguiu o reconhecimento judicial, o Ilícito absoluto, não imaginava o quanto teria mencionar Jair Bolsonaro. São mais de noventa menções no texto. É claro que eu sabia que citaria o voto que ele proferiu em 2016, humilhando o país diante do mundo por homenagear um torturador no parlamento contra a presidenta eleita, Dilma Rousseff. 

Esse voto ignominioso, lido no plenário sem que nenhum deputado lembrasse que Carlos Alberto Brilhante Ustra já tinha sido declarado torturador pelo Judiciário brasileiro, aparece na introdução do livro; chamei-o de "elogio fúnebre" que "veio atrasado", pois o outro militar havia sido enterrado meses antes após uma longa doença (não, ele não foi assassinado).

Ele apareceu em parte por causa de Olavo de Carvalho, admirado tanto por Brilhante Ustra quanto por Bolsonaro; ele representou uma conexão entre ambos no soi-disant pensamento da extrema-direita brasileira, embora aquele ideólogo concedesse que a família Almeida Teles poderia ter razão no processo contra o coronel reformado.

Bolsonaro, quando subiu à presidência da república, chamou o falecido militar de herói nacional e convidou a viúva, Joseíta Brilhante Ustra, para trabalhar em sua equipe; ela recusou, mas ele a recebeu no Planalto algumas vezes.

Bolsonaro cortejou a extrema-direita militar e louvou os crimes de lesa-humanidade da ditadura mais de uma vez durante sua carreira política. Depois de Brilhante Ustra ter sido citado judicialmente pela família Almeida Teles, aconteceu um tumulto nos meios militares, que chegou ao governo federal e, em 2007, o Clube Militar no Rio de Janeiro fez um evento em defesa da extensão dos efeitos da Lei de Anistia aos agentes da repressão.

Militantes contra a violência do Estado e por memória, verdade e justiça protestaram; Brilhante Ustra saiu pela porta dos fundos e Bolsonaro soltou uma de suas frases emblemática: o "erro foi torturar e não matar", como se a ditadura não tivesse também matado. É um dos eventos em que os dois se cruzaram e que menciono no Ilícito absoluto:



Os dois se cruzaram no âmbito da extrema-direita militar e sua indisposição com o regime democrático. Não à toa, Bolsonaro passou a citar como seu livro de cabeceira A verdade sufocada, o compêndio de inverdades históricas de defesa da ditadura e ataque à esquerda e à democracia (nele, Vladimir Herzog é considerado suicida) que Brilhante Ustra publicou na época da propositura da ação pela família Almeida Teles.

Citei no livro trabalhos de Piero Leirner e de Marcelo Pimentel sobre como Bolsonaro foi escolhido informalmente como o candidato das Forças Armadas depois da reeleição de Dilma Rousseff em 2014. Na minha pesquisa, achei mais uma coisa: o apoio de Brilhante Ustra desde 2005 (uma carta aberta de Joseíta) a Bolsonaro como único representante das Forças Armadas no Congresso Nacional:




Aparentemente, Bolsonaro foi grato a esse apoio em uma época em que ele não detinha tanto prestígio, e em que outros colegas provavelmente não partiriam para o banditismo político para protegê-lo.
Anos depois, Amelinha e Janaína Teles gravaram depoimentos sobre a tortura no DOI-Codi chefiado por Carlos Alberto Brilhante Ustra para o programa eleitoral de Fernando Haddad em 2018; o programa gerou repercussão e logo foi tirado do ar pela Justiça Eleitoral a pedido da campanha de Bolsonaro. Ambas receberam ameaças anônimas.
O governo de Bolsonaro repetiu várias características da ditadura militar, algumas das quais listei no trecho abaixo, e marcou-se pelo negacionismo da ciência e da história.




Não por acaso, também dois órgãos que se ocupavam da justiça de transição, tentando remediar graves violações de direitos humanos da ditadura, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia, foram extintos pelo governo de Bolsonaro. Escrevei que isso parecia dizer algo sobre as Forças Armadas de hoje; copio o trecho, pois já disse isto tantas vezes:

[...] o engavetamento das recomendações da CNV, o golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018 parecem indicar algo além disso: a batalha continua, e as Forças Armadas mantêm seu ativismo pelo negacionismo histórico, isto é, pela negação dos crimes de lesa-humanidade da ditadura que comandaram.

Exatamente por isso, Bolsonaro continuava a ser uma ameaça à democracia. Francisco Assis, em 2018, na crônica para o jornal português O Público "Um canalha à porta do planalto", falou do caso da família Almeida Teles e do escândalo (ao menos para pessoas não fascistas) de o ídolo de Bolsonaro ser um torturador, um torcionário. Quatro anos depois, na campanha de 2022, Antonio Prata fez algo parecido lembrando de Janaína e Edson Teles, crianças diante dos pais torturados, em crônica publicada na Folha de S.Paulo. Escrevi no Ilícito absoluto que a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 parecia indicar que o "risco era muito real":




A tentativa de golpe de 2023 foi precedida pelo malogro em 2022 dos atentados planejados, agora sabemos. Os preparativos e a tentativa de assassinar o presidente e o vice presidente eleitos, Lula e Alckmin, e o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, seriam evidentemente apenas o começo: não é verossímil que o banditismo golpista parasse aí, pois já começaria em um patamar acima do primeiro de abril de 1964, que não buscou inicialmente assassinar João Goulart.
Viria enfim o trabalho "que a ditadura não fez", de matar trinta mil, segundo as palavras do Bolsonaro mais jovem, e provavelmente enganosas, pois o assassinato de indígenas bem pode ter chegado a essa cifra? 
É hora de tratar essa gente e os seus aliados, eleitos ou não, financiadores e/ou propagandistas como os inimigos da democracia que são. Falta saber se o país já possui instituições para isso, o que seria, de fato, uma novidade histórica, ao contrário de golpes de Estado, tentados ou efetivados.