O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 18 de junho de 2011

Desbloqueando a cidade II: Marchando com Ana C.

Neste sábado haverá uma Marcha Nacional pela Liberdade em várias cidades brasileiras: Rio de Janeiro, Fortaleza, Belo Horizonte, São Paulo, São Carlos... Trata-se de um processo desde a proibição (em algumas cidades) da Marcha da Maconha e a repressão policial em São Paulo em 21 de maio, com a subsequente realização da Marcha da Liberdade, sobre que escrevi há poucos dias.
Talvez eu não tenha ressaltado devidamente o caráter multifacetado da manifestação. Abaixo, vê-se cartaz no metrô de Santa Cecília, em que se anunciava a "Marcha das marchas", uma espécie de direito à política.






Participei da Marcha, assim como Fabio Weintraub, com o símbolo do #desarquivandoBR. Na nota que escrevi na ocasião, destaquei a questão dos crimes da ditadura militar. Muitas outras demandas, porém, estavam presentes, como o protesto contra o assassinato dos castanheiros e defensores da Floresta Amazônica José Cláudio e Maria do Espírito Santo. A Marcha fez um minuto de silêncio diante do Cemitério da Consolação em homenagem aos mortos. Abaixo, cartaz pela liberdade de expressão e contra a criminalização dos movimentos sociais. Um rapaz segura um cartaz "Planet Hemp".
A Marcha desceu, alcançou o Teatro Municipal de São Paulo (teria sido interessante que os corpos artísticos do Teatro, ainda antes da reinauguração, tivessem preparado algo para celebrar a Marcha, mas nada foi feito nesse sentido). Entrou na Barão de Itapetininga, sempre acompanhada por um grande efetivo policial, até chegar à Praça da República, onde se dissolveu sob a noite. Veja a bicicleta na Praça - os ciclistas também compareceram com suas demandas por uma outra cidade.









































































Algumas das demandas eram as de caráter especificamente feminino, como os chamados direitos reprodutivos. Depois, em junho, contra o machismo, veio a Marcha das Vadias. Não pude vê-la, mas, talvez inspirado por ela e por outras manifestações, aqui, no Marrocos, na Síria, na Espanha, falei de certa marcha em um dos poemas políticos mais surpreendentes da literatura brasileira: "21 de fevereiro" (leiam-no) de Cenas de Abril (livro recolhido a A teus pés) de Ana Cristina Cesar.
Quando estive no Voz do Autor no último dia 14, Fábio de Souza Andrade fez uma pergunta complexa a mim e a Eduardo Sterzi sobre o eu lírico. Respondi com Murilo Mendes ("A marcha das constelações me segue até no lodo") e Ana Cristina Cesar, a quem atribuí a qualificação de "poeta política", talvez para o escândalo de alguns presentes.
Esse poema, a que já me referi neste blogue - mas somente em sua dimensão lírica, da poeta dirigindo-se à sua "querida" - também apresenta uma marcha pública. Não é difícil perceber do que se trata, embora várias análises prefiram ignorá-lo, cedendo à heteronormatividade: ela entra na "sapataria popular", procura "na vitrina um modelo brutal"; antes, ela "era 36, gata borralheira, pé ante pé, pequeno polegar, pagar na caixa, receber na frente". Trata-se do estigma da sapatão, desafiado aqui: "As alemãs marchando que nem homem."
A poeta desafia o estigma popular e confronta valentemente também seus companheiros de ofício, de quem criticou, mais de uma vez, as representações femininas. Baudelaire ("Abomino Baudelaire querido") tem poemas sobre lésbicas, em que as mulheres que amam mulheres não se podem reconhecer. Ana Cristina apodera-se do grande soneto "Recueillement", que começa com "Sois sage, ô ma Douleur"; esse primeiro trecho torna-se "Fica boazinha, dor; sábia como deve ser", pois é da dor que se fala. Entra Bandeira, com sua visão patriarcal da mulher (que ela critica em outros poemas, como o do Irene no céu), que ela revira ao avesso: em vez de "Belo belo belo,/ Tenho tudo quanto quero", lemos em Ana Cristina "Belo belo. Tenho tudo que fere".
O que ela quer é o que a fere, sob os estigmas populares e os da alta cultura. Um amor que reivindica participar da esfera pública, ser reconhecido como tal: "As cenas mais belas do romance o autor não soube comentar."
Nessa briga pela palavra pública, o poema ainda apresenta mais uma genial intertextualidade. De Bandeira, "Bandeira do Brasil" segundo Drummond, passa-se para um outro símbolo nacional: há algo que possa ser mais oficial do que um Hino à Bandeira? E um Hino cuja letra foi escrita pelo antigo Príncipe dos Poetas, Olavo Bilac? Ana Cristina Cesar subverteu o oficialismo transformando "Recebe o afeto que se encerra no meu peito." em uma fala de amor para outra mulher - o peito "varonil", que rima com "Brasil" no oficialismo bilaquiano, é cortado.
Ela quer, portanto, construir outro país, onde esse amor seja possível. Essa tarefa é política. Novamente, aqui, a apropriação que ela faz de Baudelaire é subversiva.
No dia da palestra, a professora Viviana Bosi, que muito escreveu sobre a poeta e organizou o Antigos e Soltos para o IMS, insistiu no soneto. Eu não estava com ele nessa ocasião. Reli-o e pensei em várias coisas; o trecho "Ma Douleur, donne-moi la main; viens par ici,/ Loin d'eux. Vois se pencher les défuntes Années," e o final "Entends, ma chère, entends la douce Nuit qui marche." também são parodiados por Ana Cristina Cesar e transformados para outros fins: "Minha dor. Me dá a mão. Vem por aqui, longe deles. Escuta, querida, escuta. A marcha desta noite. Se debruça sobre os anos neste pulso." As alegorias do poeta francês são substituídas por algo mais carnal e próximo. A marcha desta noite é também a das alemãs, que querem abrir espaço com seus próprios pés, e esse desbravamento é escrito com o pulso da poeta, enquanto ela se dirige para a sua "querida".
Talvez o mais irônico, porém, seja o fato de que o soneto de Baudelaire tem por título "Recolhimento". Ele foi subvertido para se transformar em parte da argamassa que celebra uma marcha de lésbicas.
O que dizer para uma poeta como essa? O mesmo que ela diz para sua dor: "Não me deixa agora, fera."

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