É reconfortante ver que ainda existe a gratidão: afinal, alguns desses meios foram generosamente tratados pelo falecido, como lembra Idelber Avelar em artigo para a Fórum, "O que você não leu na mídia sobre Paulo Renato (1945-2011)" (pobre, porém, do Profeta Gentileza, cujo ensinamento-mor é citado nesse contexto).
O ministério da educação de Paulo Renato tentou que as faculdades de direito pudessem formar bacharéis em três anos - entre outros cursos, de acordo com o Parecer CNE/CES 146/2002. A ministra interina assinou o ato - contra o qual a OAB conseguiu liminar. As diretrizes da educação brasileira passaram a ser discutidas pelos tribunais...
A degradação do ensino nas instituições particulares seria acelerada com a graduação em ritmo de fast food. É evidente que não só elas têm problemas, claro. As públicas possuem diversos problemas, muitos que derivam da falta de recursos, e outros, de origem endógena (às vezes oriundos da endogamia!), das práticas de compadrio e apropriação privada de recursos e cargos públicos, o que ocorre tanto à esquerda quanto à direita.
Dito isso, algo foi feito: o ENEM, o Fundef, que permanece como Fundeb; o Provão, que deu origem ao ENADE do governo Lula. No entanto, o que significaram essas ações?
As críticas do ex-ministro ao ENADE faziam sentido. Acho que a USP e a Unicamp estão corretas em não participar dessa avaliação. Mas se tratava do roto falando do esfarrapado: com Paulo Renato, houve uma expansão drástica, dramática do ensino superior sem qualidade, cujas consequências nefastas já estamos vivendo: os formados simplesmente não detêm as condições mínimas para trabalhar em suas respectivas áreas. O discurso da inclusão por meio do ensino sem qualidade (muitas vezes desejado por esses mesmos alunos) revela, assim, sua perversidade, e sua falta de sentido até mesmo do ponto de vista utilitarista: esses profissionais não servem para o mercado, o que é percebido em várias áreas, inclusive a engenharia, em que também vivemos um apagão da inteligência no Brasil.
Esses profissionais servem apenas para o mercado do ensino superior, que os produz e é por eles sustentado. Nesse sentido, a educação superior no Brasil, muitas vezes, tem representado um verdadeiro atentado contra o país, comprometendo-lhe seriamente o futuro. Já escrevi que esses profissionais frustrados podem servir de exército de reserva para o fascismo, ainda mais porque boa parte deles poderá retroalimentar aquele mercado de ensino, tornando-se docentes naquelas instituições, reproduzindo essa cultura extemamente cínica em que se sabe que nada se ensina e nada se aprende.
Voltando ao ex-ministro: o que foi por ele realizado vinha de certa matriz da reforma do estado, e não propriamente de um pensamento sobre a educação; lembro da dissertação de mestrado de Inácio José Feitosa Neto, O ensino jurídico: uma análise dos discursos do MEC e da OAB no período de 1995-2002 (discordo, porém, da solução que ele propõe para outro assunto, o da Residência Jurídica, que fracassou redondamente na área médica e não vejo como daria certo no direito):
Para o Ministro Paulo Renato Souza, em sua gestão foi realizada uma “Revolução Gerenciada” (SOUZA, 2005), que estava associada aos seguintes fatores, que para ele, “caracterizavam a moderna administração empresarial privada”, [...]
Qualquer semelhança com o discurso do Ministro Bresser Pereira não é mera coincidência. A valorização da administração privada era a mesma que fundamentava o Plano Diretor de reforma do aparelho estatal, daí a semelhança dos discursos dos ministros do MARE e do MEC. (p. 52-53)
Essa matriz de pensamento coadunou-se com o privatismo do governo. Cito agora Nicholas Davies, autor essencial para entender a questão do financiamento da educação no Brasil. Neste artigo de 2002, "O financiamento público às escolas privadas", ele analisa a singular combinação de ação (para o setor privado) e omissão (no setor público) estatais nas políticas educacionais:
[...] as escolas privadas (sobretudo as IES) se expandiram e se expandem não só porque existe uma demanda pelo ensino superior, mas também e sobretudo porque os governos não têm procurado atender toda a demanda, desviando-a para as IES privadas. O apoio oficial às escolas privadas tem se concretizado não só por essa omissão, como também pelo financiamento público direto e indireto a elas, com a isenção de impostos, da contribuição previdenciária e do salário-educação, e a concessão de subvenções, bolsas de estudo, empréstimos subsidiados, crédito educativo, FIES ao longo das últimas décadas. Sem este financiamento público (que deve ter totalizado e ainda totalizar alguns bilhões de reais por ano), as escolas privadas certamente não teriam se expandido tanto, pois as suas mensalidades teriam que ser muito maiores do que são, afastando assim a demanda de estudantes sem condições de pagar. A omissão do Estado e o financiamento público às escolas privadas têm sido, assim, duas das mais importantes medidas de privatização da educação, sobretudo do ensino superior.
O Fundef, outra bandeira de Paulo Renato Souza e Fernando Henrique Cardoso, nunca foi cumprido pelo governo. Nicholas Davies, entre outros autores, denunciou a violação sistemática da lei pelo governo federal, violação que foi mantida quando Lula subiu ao poder. A ilegalidade crônica e o desrespeito à educação foram constatados por órgãos públicos como o Tribunal de Contas da União, como bem ressaltou aquele autor, de quem cito "Fundeb: a redenção da educação básica?":
Além de dar uma contribuição irrisória, sobretudo porque tanta propaganda fez dos milagres que o FUNDEF é capaz de operar, o governo federal (tanto FHC quanto Lula) não cumpriu o artigo da lei do FUNDEF (n. 9.424), que estabelece o critério de cálculo do valor mínimo nacional, que serviria de base para o cálculo da complementação federal. Essa irregularidade, reconhecida no relatório do GT criado pelo MEC em 2003, significou que ele deixou de contribuir com mais de R$ 12,7 bilhões de 1998 a 2002 (Brasil, MEC, 2003). Como essa irregularidade continuou de 2003 a 2006, a dívida do governo federal com o FUNDEF, tendo em vista a Lei n. 9.424, alcançará um valor em torno de R$ 30 bilhões até o final de 2006, pois, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), em seu relatório sobre as contas da União em 2004 (Brasil, TCU, 2005), a complementação deveria ter sido em torno de R$ 5 bilhões só em 2004, não de R$ 485 milhões, se o governo tivesse calculado o valor mínimo conforme manda a Lei n. 9.424. Com base nisso, podemos estimar que a complementação devida só no governo Lula terá alcançado R$ 20 bilhões (4 x R$ 5 bilhões), que, acrescidos aos R$ 12,7 bilhões não aplicados pelo governo de FHC, totalizariam mais de R$ 30 bilhões.
O Legislativo e o Executivo desampararam a Educação e, do campo do Judiciário, pouco se pode esperar. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral firmemente solapou a dimensão social do direito à educação, permitindo, contra a lei eleitoral (também contra a Constituição e o Direito internacional dos direitos humanos), que administradores que violam a destinação orçamentária à educação possam, mesmo que tenham as contas rejeitadas (o que já é muito difícil de ocorrer, devido às injunções políticas do Legislativo, normalmente contrárias à educação) mantenham seus direitos políticos!
Analisei esse problema na minha tese, explicando como se dava essa produção legal da ilegalidade no campo da educação. Em um breve artigo, tentei resumir a questão e indiquei como se poderia questionar o problema perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
A educação é, de fato, um sistema: o maior problema do ensino superior não está nele mesmo, é o ensino básico: diante da violência que é a escola de hoje e do faz-de-conta das avaliações de qualidade (indico textos do professor Rodrigo Ciríaco, que é obrigado a se equilibrar entre saraus e bombas), vemos que o Brasil não tem futuro, apesar dos discursos triunfalistas dos governos de Médici até hoje, passando por FHC, Lula e a atual presidenta.
A adoção de tecnologias está servindo a esse tipo de discurso. Raquel Goulart Barreto escreveu um interessante artigo sobre o discurso da tecnologia na formação dos professores - a fetichização da tecnologia, que é tratada não como um instrumento sujeito às decisões humanas, mas como um sujeito (!) que decide as diretrizes sociais.
A tecnologia deve ser usada em benefício da educação, é claro, ainda mais em um país onde metade dos estudantes não tem acesso à internet. Mas ela, sozinha, não resolve nada. Vejam que certa gigantesca instituição de ensino superior (em número de alunos, não em produção científica), que dá tablets aos alunos, perdeu vagas no curso de Direito (não vi o que ocorreu em outros cursos) com os resultados do ENADE de 2009 (por sinal, estranhamente só divulgado em 2011).
Uma sala de aula pode estar toda conectada, todos com alunos com computador, e o resultado ser zero em termos de aprendizagem: os alunos podem usar o computador para brincar com outras coisas (não há ensino sem concentração) e, o que é mais grave, não ter o conhecimento metodológico nem as competências linguísticas para lidar com o universo de fontes que a internet oferece. Ficarão só no recorta-e-cola, completamente analfabetos diante da biblioteca infinita borgiana, apesar das maravilhas prometidas pelos apóstolos da educação à distância (que é um instrumento, não uma panaceia - embora poupe as instituições de construir mais salas para abrigar os alunos e contratar mais professores)...
Borges falou da ironia de Deus, que lhe permitiu ter milhares de livros, mas lhe impôs a cegueira. Ocorre algo parecido neste caso - temos milhões de livros, artigos, notas na rede virtual (muitos deles ruins) e a cegueira também, socialmente produzida pelas péssimas políticas de educação. Os discursos de expansão da internet nas escolas, em geral, não se preocupam com o iletramento generalizado dos alunos. Isso não é irônico, e sim perverso.
Parece-me que se trata da mesma perversidade da imprensa (não preciso mencionar os políticos, seja da oposição, seja do governo) ao exaltar a memória do ex-ministro a despeito das condições escatológicas da Educação. Para os jornais, um está morto (permanece, porém, o seu legado), e a outra não deve viver.
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