O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Desbloqueando a cidade IX e princípio do extermínio I: os ambulantes em São Paulo

E se não houvesse mais esta atividade que historicamente habitou e conformou as ruas das cidades brasileiras, o comércio ambulante? Essa distopia (assim como outras), o prefeito Gilberto Kassab, do Município de São Paulo, tem procurado realizar.
Raquel Rolnik, em seu indispensável blogue, havia escrito sobre as indisfarçáveis tentativas da  prefeitura de São Paulo de exterminar o comércio ambulante na cidade; como ela bem escreveu, "A atitude da Prefeitura de São Paulo foi autoritária, higienista e excludente, bem na lógica da 'São Paulo para poucos'."
O também indispensável Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em 28 de maio deste ano propuseram uma ação civil pública contra a medida kassabista de acabar com as licenças para o comércio ambulante. Remeto para o histórico do caso feito pelo Centro. A juíza Carmen Trejeiro concedeu liminar favorável aos ambulantes em quatro de junho, que foi suspensa em 11 de junho pelo presidente do Tribunal de Justiça, Ivan Sartori.
A decisão de Sartori não sobreviveu ao Órgão Especial do Tribunal, em 27 de junho. Não é difícil entender a razão. Na medida em que simplesmente acabaria com aquela profissão (pois todas as licenças foram cassadas), a medida administrativa não se limitava a discipliná-la (o que estaria de acordo com a competência municipal), mas, em evidente abuso de poder, fugindo a qualquer critério de razoabilidade. A liberdade constitucional de profissão foi ferida. E por que razão essa categoria eminentemente urbana perderia o direito à cidade?
O interessante é que a lei orgânica do município de São Paulo reconhece explicitamente a legitimidade do trabalho dos ambulantes da cidade:

Art. 160 - O Poder Municipal disciplinará as atividades econômicas desenvolvidas em seu território, cabendo-lhe, quanto aos estabalecimentos comerciais, industriais, de serviços e similares, dentre outras, as seguintes atribuições:
[...]
VI - normatizar o comércio regular, o comércio ambulante por pessoa física e jurídica nas vias e logradouros públicos e a atividade mercantil transitória em pontos fixos e em locais previamente determinados sem prejuízo das partes envolvidas;
Em vez de eliminar a atividade, o poder público deveria normatizá-la, "sem prejuízo das partes envolvidas", o que obviamente inclui os ambulantes, severamente prejudicados pelo atual prefeito.

Com a inconstitucionalidade e a violação da lei orgânica, alguém poderia indagar que fundamento Ivan Sartori encontrou para tomar aquela decisão favorável à administração de Kassab. A leitura da motivação do magistrado é muito instrutiva.

O deferimento das liminares objeto do pedido de suspensão impede o desenvolvimento eficaz dessa política pública, escolha discricionária da Administração, a par de obstar a regular administração dos espaços públicos pela Municipalidade, observada a precariedade dessas permissões de uso.
Relevante salientar que a suspensão das revogações fará com que a situação irregular persista por tempo indeterminado, impossibilitando a efetivação da política pública empreendida, com prejuízo do que já se realizou.
Ademais, impõe-se a suspensão das liminares como forma de impedir o efeito multiplicador dessas demandas e de liminares equivalentes, pois de se esperar de todos os antigos permissionários, ou de quantidade expressiva deles, o ajuizamento de demandas impugnando esses atos.
Assim, sem que se afirme desde logo a legalidade do proceder governamental, o que descabe nesta sede, a lesão ao interesse e à ordem pública é inconcussa.
Pelo exposto, defiro o pedido de suspensão das liminares aludidas no relatório, até o trânsito em julgado da sentença nesses processos.
O magistrado refere-se a uma política pública de "restrição das calçadas", eufemismo bem escolhido para o que deveríamos chamar de eliminação do comércio ambulante. Nessa decisão, a legalidade não importou (a constitucionalidade tampouco), como bem escreveu Sartori; o que interessa é que o Município criou uma política pública, e o magistrado existe para apoiá-la.
Algum estudante de direito talvez estranhe a menção à "escolha discricionária", e lembre que os atos discrionários, que dependem do exame de conveniência e oportunidade do administrador público, também se submetem ao princípio da legalidade. O ato discrionário não deve ser arbitrário. Não está abrigada pela discrionariedade do administrador municipal a criação de políticas inconstitucionais que, além disso, firam a lei orgânica do Município. Essas noções básicas do direito administrativo foram olvidadas.
A ementa, estranhamente, introduz um termo que não se encontra na decisão:
Ementa: Pedido de suspensão de liminar – Ambulantes – Indispensável demonstração de que haverá grave lesão à ordem, saúde, segurança ou economia públicas – Ocorrência – Prejuízo a política pública de ordem governamental – Ingerência indevida do Judiciário – Pedido deferido.
O termo "ingerência" não foi empregado pelo magistrado no corpo do texto, mas logo se percebe que se trata da tese, bastante regressiva para o Judiciário, de que esse Poder não deve tomar decisões que acarretem prejuízos a políticas públicas. Também faltou à decisão precisar que prejuízo teria sido esse - econômico? De quanto? Não há estimativa nenhuma desse tipo de impacto, embora salte aos olhos que a supressão da atividade econômica dos ambulantes é que surtirá efeitos nocivos à economia pública, com o aumento da inatividade da população economicamente ativa e a diminuição na oferta de produtos mais baratos. Isto é, o alegado fundamento da decisão, na verdade, aplicar-se-ia contra a pretensão do Município.
É deveras notável a ausência de fundamento econômico na decisão que rejeita, em nome da economia pública, o fundamento na legalidade. Esse discurso judicial, por conseguinte, flutua sem apoio algum, sustenta-se no vácuo aparentemente isento de qualquer lei, mesmo a gravitacional.
Escrevi que a tese sartoriana era regressiva, pois ela rebaixa o papel judicial ao de referendar as políticas públicas existentes e considera "ingerência indevida do Judiciário" fazer cumprir o direito contra uma "política pública empreendida". Se o fato sustenta-se apenas na sua efetividade, isto é, se a medida administrativa deve ser mantida apenas porque foi tomada, e o juiz deve dobrar-se ao arbítrio do administrador, joga-se fora o direito, que, em sua natureza, sempre possui uma dimensão contrafática.
Lembro agora dos célebres artigos dos Federalistas, especialmente de Alexander Hamilton, que, no de número 78, defendeu a ideia dos juízes como guardiães da constituição. Partindo da noção de que o Judiciário é o mais fraco dos Poderes, por não dominar nem a espada nem os fundos públicos, e só possuir o julgamento (e depender da ajuda do Executivo para a eficácia das decisões), ele afirma que a opressão judicial contra os indivíduos ocorrerá apenas se esse poder não for independente dos outros:


It equally proves, that though individual oppression may now and then proceed from the courts of justice, the general liberty of the people can never be endangered from that quarter; I mean so long as the judiciary remains truly distinct from both the legislature and the Executive. For I agree, that "there is no liberty, if the power of judging be not separated from the legislative and executive powers." And it proves, in the last place, that as liberty can have nothing to fear from the judiciary alone, but would have every thing to fear from its union with either of the other departments; that as all the effects of such a union must ensue from a dependence of the former on the latter, notwithstanding a nominal and apparent separation; that as, from the natural feebleness of the judiciary, it is in continual jeopardy of being overpowered, awed, or influenced by its co-ordinate branches; and that as nothing can contribute so much to its firmness and independence as permanency in office, this quality may therefore be justly regarded as an indispensable ingredient in its constitution, and, in a great measure, as the citadel of the public justice and the public security.
Creio que os fatos já o desmentiram na passagem "have nothing to fear from the judiciary alone". No entanto, a lição mantém-se na questão da independência judicial. Hamilton cita, nessa passagem, Do espírito das leis, de Montesquieu, no tocante à separação dos poderes. E afirma que a salvaguarda da liberdade está comprometida se a independência do Judiciário for apenas nominal e aparente. Neste caso, pode-se até mesmo extinguir uma categoria econômica...
Isso nos leva ao problema do instituto da suspensão de segurança, que foi empregado no caso, e é uma medida de legalização da exceção no ordenamento brasileiro, criada em favor das pessoas de direito público. Ela permite que os magistrados em geral mais politicamente caracterizados, os presidentes dos tribunais, possam decidir sem qualquer fundamento legal ou constitucional, em nome de qualquer coisa, a pedido do Ministério Público e das pessoas de direito público. Afinal, praticamente qualquer coisa pode ser etiquetada como grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas (condições previstas no artigo 15 da lei  nº 12.016 de 2009, no artigo 25 da lei nº 8.038 de 1990, e ainda no 4º da lei nº 8437 de 1992, que acrescenta o "manifesto interesse público" e a "flagrante ilegitimidade").
Esse buraco negro legal, em que muitos logo verão uma erupção do estado de exceção, está a servir para quem? Neste caso, para aqueles que lucram com o urbanismo higienista e desejam extinguir uma profissão popular, os ambulantes, enquanto criam outras soluções, ardentes ou não, para expulsar os pobres da cidade. Em outro, sobre que pretendo escrever (quando puder), os que lucram com o genocídio indígena.
Há um horizonte de extermínio não explicitado nessas decisões, que encontra em institutos como esse um meio ideal para ingressar no direito, tendo em vista que o ordenamento jurídico brasileiro ainda respeita os direitos humanos.

P.S.: Walter Hupsel, a propósito de Kassab, criou nova categoria política. O prefeito não seria hobbesiano, mas tão somente um "hobbit". Mais uma contribuição da prefeitura de São Paulo para o pensamento político!
P.S. 2: O provedor encheu de propaganda este blogue e todos os outros, pelo que vejo. Algumas das palavras foram destacadas por ele, não por mim, para se tornarem links de propaganda. Dessa forma, enquanto permaneço aqui, em vez de indicar as ligações da forma como ainda fazia até a presente nota, eu o farei as separadando do corpo do texto, para que o leitor possa distinguir o que é um texto de informação do que é simplesmente propaganda informática.

5 comentários:

  1. Pádua, é impressão minha ou a gestão Kassab levou essa sanha higienista para um grau acima? Tão perdendo o escrúpulo de falar disso, de dizer que é isso mesmo, que São Paulo boa é São Paulo sem pobres?

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  2. Creio que sim, Renata. Ele está um passo além das "remoções 'democráticas'" que Eduardo Paes tem realizado no Rio de Janeiro. Abraços, Pádua.

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  3. Imagino o prefeito de SP passeando pelas ruas caóticas e repletas de ambulantes, que constituem a marca de certo mundo árabe tradicional, de onde sua família possivelmente tenha emigrado - que choque cultural! Abr, Adriana

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  4. Prezada Adriana,
    acho que não, provavelmente ele ficará indiferente ao comércio de rua, porque lá ele não pode ser candidato e, portanto, não terá interesse em favorecer o setor imobiliário. Abraços, Pádua

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  5. ... contrariar as próprias tradições é extremo e difícil na maior parte das vezes... se bem que, vender imóveis, em razão simplesmente do verbo 'vender' talvez seja também uma tradição do mundo árabe, a quem o prefeito de SP se apega convenientemente, em desfavor da miríade caótica do comércio de rua, responsável pela sobrevivência de um número grande de pessoas, aqui e no Líbano. De qualquer sorte, a aparência do prefeito combina com a preocupação higiênica dele. abr, Adriana

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