O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 8 de setembro de 2012

Universos paralelos da educação VI: periódicos acadêmicos e clubes sociais

Visibilidade, quantificação, prestígio e verbas. Essas palavras cada vez mais associam-se às publicações acadêmicas no Brasil e relacionam-se de diversas formas, antagônicas ou não, com o problema da qualidade da produção científica.
Na área do direito, em que o ensino é geralmente fraco (os exames da OAB são apenas um dos índices que demonstram essa debilidade), a extensão é, muitas vezes, claudicante, e a pesquisa, incipiente, as publicações acadêmicas não possuem uma tradição com a mesma força de outras áreas.
As exigências do Qualis, que continuam a ser construídas, são apreendidas nessa área de forma peculiar, de forma a moldá-las a um ambiente onde há tantas vezes apadrinhamento, vassalagem, falta de reflexão crítica e fetiche por títulos, em um reflexo do mundo do fórum.
Já preenchi planilhas em excell com os dados de autores e artigos para o Qualis, pois fui editor de revista jurídica acadêmica. Nela, publiquei em ampla maioria autores externos, incluindo estudantes de pós-graduação e até mesmo graduandos, nos raros, excepcionais casos em que estes conseguiram estar à altura dos critérios de avaliação dos pareceristas. Um deles foi o Lucas Pizzolatto Konzen, um outro foi Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino. O que ambos estão fazendo hoje (apontando para novas promessas) apenas confirma o talento que já manifestavam - e que já deveria ser compartilhado com o público.
Menciono minha experiência, apesar de pouco notável, porque um dos itens de avaliação dos periódicos para o Qualis é a afiliação institucional, o que nos remete para o prestígio de certos programas de pós-graduação. Dessa forma, há periódicos que, ou por não confiarem em seus métodos de avaliação da qualidade do artigo, ou por acharem que o título é uma das condições necessárias da qualidade, só publicam trabalhos assinados por doutores. Um exemplo é a Juris Poiesis, da Universidade Estácio de Sá, cuja chamada de artigos se dirige aos "professores doutores integrantes do corpo docente de outros programas em Direito reconhecidos pela CAPES". Por sinal, de forma sutilissíma, a chamada destaca em caixa alta a palavra sensível, informando que se trata de uma revista ligada a um programa de pós-graduação com "mestrado e DOUTORADO em direito". O último número da revista disponível na internet no momento em que escrevo esta nota, o décimo-quarto (número anual de 2011), só possui artigos em que um dos autores (em geral, um dos coautores) é doutor.
Essas exigências podem gerar efeitos nefastos na prática? Talvez isso venha a ocorrer em alguns periódicos. Mais além do fetiche do título (ingrediente importante do bacharelismo), pode surgir algo como uma negação ao direito de nascer (academicamente), pois é comum que os programas de pós-graduação exijam que o estudante publique (para encher de dados o sistema Coleta), apesar das dificuldades que se lhe antepõem por ainda não deter o título. E, tantas vezes, esse estudante, por estar em pleno envolvimento com a pesquisa, e talvez trazer uma visão nova sobre a área, produzirá um trabalho mais original e importante para a área do que o professor doutor que sucumbiu à burocracia, à politicagem e ao marasmo. Já vi a derrota da inquietação e da inteligência ocorrer com alguns desses professores...
Uma consequência deletéria desse possível quadro é a de que esses jovens pesquisadores iniciem a carreira fazendo o aprendizado da vassalagem, tendo que aceitar a assinatura conjunta de seus orientadores, já titulados, mesmo que estes apenas tenham feito poucas ou pouquíssimas sugestões.
É claro que, se essa atitude de vassalagem é extremamente hostil à autonomia intelectual, em revanche se coaduna perfeitamente com os hábitos do meio jurídico nacional. Dessa forma, a universidade, que poderia ser crítica a esse meio jurídico e contribuir para modificá-lo, passa apenas a reproduzi-lo, pouco importando o discurso apregoado nas revistas acadêmicas: o modo de produção dos periódicos, com seus tráficos de prestígio, irá negar esse discurso, mesmo se progressista, desde a raiz.
Outro problema, de grande interesse antropológico, é o da endogamia acadêmica que, embora desestimulada fortemente pelo Qualis, ainda possui bastiões. A revista da faculdade de direito da USP, por exemplo, somente publica autores externos se indicados por professores dessa instituição, o que denota uma concepção do saber semelhante a de um clube social, em que novos sócios só podem entrar com indicação dos antigos, ou análoga à prática normalmente endogâmica das elites brasileiras no sistema político. Dessa forma, o Regimento Interno dos Colegiados dessa revista institui:
Art. 7º - Os autores de artigos de Direito deverão ser sempre professores, ex-professores, professores visitantes, professores convidados e alunos de graduação ou pós-graduação da Faculdade.
Parágrafo Primeiro – Os trabalhos de professores convidados somente serão avaliados se vierem acompanhados da indicação expressa de um docente da Casa
Imagino que isso mudará com o tempo (como já se prevê nos critérios específicos de avaliação da área de direito), pelo menos formalmente. É possível, no entanto, que as atuais exigências de exogenia sejam, digamos, ultrapassadas por trocas entre instituições: os docentes e alunos de certo programa passam a publicar no periódico de outro, em um sistema semelhante aos das nomeações cruzadas que aconteciam no Judiciário (antes da atual orientação do Conselho Nacional de Justiça) para aplicar criativamente a proibição constitucional do nepotismo: o desembargador X nomeava o cunhado do desembargador Y em seu gabinete e vice-versa.
Tais são alguns dos desvios possíveis que o sistema de avaliação dos periódicos acadêmicos e dos programas de pós-graduação stricto sensu podem gerar. Tendo em vista a atualidade do problema não só no Brasil (por exemplo, a revista Esprit de julho de 2012 aborda essa questão na França no dossiê Les mirages de l'excellence), pretendo voltar ao tema nos próximos meses.
Gostaria de terminar esta nota com uma pergunta de Idelber Avelar: por que as revistas acadêmicas estariam chamando o envio de artigos de "submissão", um anglicismo (submission) novo em nossa língua? Respondi-lhe que tinha quase certeza de que a palavra decorria de uma tradução inadequada presente na plataforma de editoração eletrônica SEER (quem tem de operar o sistema sabe que ela não é bem escrita), Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas, que foi uma adaptação do software da plataforma Open Journal Systems. Apesar de ser um provável fruto de erro tradutório, a palavra não deixa de ser significativa.
Replicou Idelber Avelar: "Uma perfeita alegoria do estado da universidade." Se assim for, trata-se de mais um sintoma de que a promessa da universidade, que inclui a autonomia, está a se distanciar.

7 comentários:

  1. Claro que é tradução mal feita, Pádua. Que nem "aplicar" pro doutorado, ou uma que vejo muito em textos acadêmicos que é "eventualmente" querendo dizer "ao final".
    O dialeto acadêmico e o marquetês têm certa semelhança, afinal...

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    1. Mas precisamos reconhecer, Renata, a adequação aos tempos atuais dessa tradução no modelo Google Translator.
      Abraços, Pádua.

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  2. Muito bom seu texto! Parabéns! Posso postar no meu blog?

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    1. Obrigado. É este? http://hipocrisiaacademica.blogspot.com.br/ Se for, pode sim.

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    2. Também gostaria de publicar.
      O meu blog é o Aprender Direito
      http://aprenderdireito8.blogspot.com.br/
      Abraço,
      Horácio

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  3. Excelente! Parabéns!

    E já que vc pretende estender-se nesse assunto espinhoso ("pretendo voltar ao tema nos próximos meses"), sugiro comentar o nosso sistema de revisão por pares (o chamado "peer review"), aquele que é aclamado como legitimador da qualidade acadêmica dos artigos "submetidos" (rs!) às revistas. Muito pano pra manga...

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