Na ligação indicada, pode-se ouvir um trecho dos dois discos que acompanham o livro, em que o autor lê os poemas com acompanhamento de efeitos sonoros, editados por Oriana Alves (que participa da leitura) e Nuno Morão, ou aqui: https://www.youtube.com/watch?v=q8lvr1uHNKs
Já li duas resenhas sobre a obra, de José Mário Silva, http://bocaaudiolivros.blogspot.com.br/2013/01/de-nada-na-ler-por-jose-mario-silva.html e de Manuel de Freitas http://bocaaudiolivros.blogspot.com.br/2013/01/de-nada-na-actual-por-manuel-de-freitas.html
Não sei se conseguirei escrever um texto mais longo sobre o livro, mas não me furto a fazer esta nota.
Queria lembrar do subtítulo, já na aparência nada trivial, à diferença do enganador título (Manuel de Freitas bem nota que ele remonta ironicamente a tratados filosóficos antigos): resposta e perguntas dum homem que pára na escada para os que sobem acabem de subir e ele então acabe de descer.
Esse movimento de descida, de que este livro é uma etapa, a que subterrâneos se dirige? Que espécie de escavador é este poeta, enquanto outros ascendem, inconscientes? Também neste livro, o poeta, para Alberto Pimenta, nada tem do albatroz do Baudelaire, ou, se é esse albatroz, temos que relê-lo da seguinte forma: a ave somente se torna poeta quando está no chão, "comique et laid".
O belíssimo penúltimo texto do livro, um poema em prosa, "Prólogo em marcha", descreve o poeta, desde o começo da vida, coxeando, pois perdeu o "tacão dum sapato", "logo no início do caminho da vida" (mais precoce do que Dante).
Mas essa condição não é privilégio do poeta. Todos a compartilham, embora muitos não saibam:
[...] acompanho-me a mim mesmo como um pé acompanha o outro, e ao meu lado vejo filas de caminhantes que avançam como eu, todos coxeando sem o saberem, ou sabendo-o e ignorando-o, e todos parece que procuram chegar a um lugar que eu não conheço, e falam dele sempre em sonho, enquanto fazem seus projectos, e quando esses projectos que fazem, juntamente com eles, se tornam dejectos, algo os sacode, porque a viagem chegou ao fim, mas eles continuam a pensar que não, e a sonhar, ou assim parece. [p. 107]O poeta anda ao rés do chão, e coxeia. Parece que são condições para esta poesia deliberadamente prosaica e desconfiada do sublime.
Pimenta retoma várias referências de livros anteriores. Diógenes, por exemplo, é novamente citado:
como disse DiógenesGisberta Salce, a transexual brasileira morta depois de três dias de tortura por adolescentes de uma instituição católica no Porto, e heroína do genial livro de Pimenta Indulgência plenária (assunto desta resenha: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/11/alberto-pimenta-tortura-estupro-e.html), volta como fecho de um poema "sobre a expulsão do ditador islâmico" [p. 43], contrapondo fundamentalismos islâmico e católico.
lá vão os ladrões grandes
enforcar os pequenos
a subcultura a manifestar-se
disse Platão o catedrático
honorário
que ia a passar por ali
a caminho do museu
Diógenes limpou os olhos
com o pano de limpar o cu
vociferando
agora eles ficam limpos outra vez [p. 89-90]
A própria ideia da Europa como IV Reich, destacada por Luís Mourão nesse livro (http://blogmanchas.blogspot.com.br/2013/02/alberto-pimenta-de-nada.html), já estava presente em Ode pós-moderna. Temos também Shakespeare, fisting... Sem diluição: o último texto do livro é uma frase solitária, "o trabalho que dá pôr em ordem um caos" [p. 108, não numerada], e Pimenta soube neste livro, como tantas vezes antes, manter a força de ambos: da ordem, e seu caráter de necessidade, e do caos, com sua imprevisibilidade. Quase como se este livro fosse o mundo, que é uma mistura de necessário e acidente.
Além desse olhar sobre sua própria trajetória, e isso implica nesta outra característica, De nada é marcado por um chamado à revolução contra os donos do tempo, pois "o tempo tem dono/ e é hereditário" [p. 83], com as novas formas de produção de mais-valia. Não por acaso, o primeiro poema parte da Revolução Francesa e afirma que, 222 anos depois da sentença sofrida por Luís XVI, temos um "número fatídico". No entanto, não temos aqui determinismo histórico algum: "mas a história/ é uma série de interrogações/ não de respostas" [p. 15]
O poeta desce e coxeia. Se há um voo neste livro, é o "voo do tijolo/ que vai para César/ porque também é dele/ e não passa" [p. 18]; "o tijolo de César// ele continua ali" [p. 97].
O facebook (que ele volta a ridicularizar), Assange para Nobel da Paz (Pimenta é a favor), a banca, programas de auditório, cirurgias de redução de estômago, a ONU (e os "onunistas"!), a União Europeia são algumas das matérias que Pimenta visita em De nada, todas marcadas pelo momento de crise:
para os desempregados
o único grupo desta sociedade
que está em alta
uma boa notícia mais
eles são muitos
uma vaga que se ergue
como do fundo
dum mar em fúria
[...]
depois de pagas
as taxas do lixo derramado
os impostos
aos pais do país
perderam no céu
todo o crédito
e tiveram também
de devolver a habitação
na terra [p. 59-60]
Algumas das palavras mais ácidas, Pimenta dirige-as para os poetas, seus (des)semelhantes. Eles "fazem artigos filosóficos/ para ajudar os desempregados/ a matar o tempo" [p. 62-63]. Em um pungente poema que retoma a imagem da menina brincando com excrementos de cachorros, constata que já nenhum poeta brinca dessa forma, e ele mesmo não é capaz de tanto.
vejo
a pequena suja
a brincar na rua
com os cagalhões dos cães
não digo que seja sublime mas
como tudo
não deixa de ser interessante
alguns
parecem as
galáxias
mais longínquas
ou os berços
de estrelas
Barnard 68
tudo claro
mérito dela
e das suas mãos
gostava também
de ir brincar com ela
mas
quem sou eu para isso
já nenhum poeta o faz
só uma ou outra das 4.370
inspecções-gerais da vida corrente [p. 27]
Não transcrevo o fim do poema, mas saibam que ele dói demais. Mais adiante, na segunda sequência do livro, o que temos é desprezo:
se restassem deste mundo
só os livros de poesia
os arqueólogos mais tarde
pensariam
que neste tempo
não aconteceu nada
a não ser afiar os cabos das facas [p. 75]
O final desse poema é inclemente. Ele diz a esses poetas: "o que nos divide é um véu espesso/ não/ não podemos ser amigos" [p. 76].
Acima, pode-se ver uma das fotos que tirei de Alberto Pimenta em julho de 2011, à beira do Tejo em Almada. Ao fundo, vê-se Lisboa. Pode-se reconhecer o gesto insubmisso do poeta na imagem e nos livros. E mais não digo, pois ele já o fez:
ganir
sim talvez seja isso
o que devíamos dizer
e é o que ainda por cima
sentimos [p. 102]
O livro foi apresentado pelo autor e colocado à venda, ainda em 2012, mais exactamente a 15 de Dezembro, no Porto, na Livraria Gato Vadio.
ResponderExcluir(uma pequena correcção à 1ª frase do artigo)
Obrigado.
Excluir