O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Não é literatura


Discutir quem ficou de fora da foto de lançamento de revista literária não é literatura.

Propor ação popular contra júri que não o premiou não é literatura (aliás, nem bom direito).

Jornadas de trabalho de 60 horas em editoras não são exemplos de amor à literatura.

A lista de mais vendidos não é um gênero literário.

Reclamar de não inclusão em antologia, quando até o primeiro cachorro que passou na rua o foi, não é literatura.

Escrever cartinha para o poeta morto (já falou algo semelhante Angélica Freitas) não é literatura.

Chamar um poeta de comercial só porque ele vende mais do que você não é literatura.

E por que seria literatura ensaiar para o eventual recebimento do Nobel, sem esquecer a sutil reprimenda à academia sueca pelo atraso na outorga do prêmio?


Abrir para nulidades espaço para escrita em troca de ataques a desafetos mantém trancados os mistérios das letras.

Pedir e/ou negar atestado de sanidade ao poeta não é literatura.

Propaganda de e-books não é um exemplo de vanguardismo literário.

Perguntar se a poeta é bonita não é literatura; decidir que ela não o é porque não iria para a cama com você, muito menos.

Culpa e/ou orgulho de classe não é literatura.

Cobrar pela exposição dos livros não torna a livraria um lugar literariamente valioso.

Vociferar que os críticos ignoram a literatura contemporânea porque não falam de você, mas de outros escritores vivos, é certamente mesquinho, mas não chega a ser literatura.

Assumir que sua poesia é ruim, mas que o guarda-roupas do crítico é pior, não é literatura.

O analfabetismo de doutorandos em letras não pode ser classificado como literatura transgressora.

Ignorar autores quando publicam por editoras pequenas não é literatura.

Usar como argumento o próprio currículo pleno de bem-sucedidos tráficos de influência literária não é literatura.

Reclamar que a literatura de hoje não presta deixa os queixosos mais velhos, e não mais escritores.

Confundir crítica a seu livro com ataque a sua pessoa não o torna escritor. O livro já não o tornava.

Reclamar da universidade porque ela não estuda os livros que você assinou não os torna literatura; louvar a universidade porque ela elogia esses mesmos livros não a torna universidade.

Pagar centavos a revisores não significa confiar nos escritores.

Cobrar do escritor para publicar não é exatamente igual a reconhecer o valor da literatura.

Roubar direitos autorais dos tradutores não torna os livros mais ricos.

Não é literatura vender pílulas e/ou selos e/ou banners e/ou mensagens de biscoito e/ou cursos tecnológicos e/ou até mesmo livros, enfim, todos de marketing literário.

Reclamar que não entende os outros escritores não o torna mais inteligente. Nem mais escritor.

Decretar démodée a literatura engajada também representa um engajamento, mas antiliterário.

Não é literatura criar encontros com os colegas para explicarem para o eventualíssimo público o quanto vocês seriam geniais por não serem lembrados por mais ninguém.

Outros argumentos imprestáveis: ter a barriga de Oswald ou a magreza de Drummond, os olhos de Clarice ou os de Cecília, o partido de José de Alencar ou o de Jorge Amado, o sexo dos Mários ou os extraterrestres de Hilda, as superstições de Rosa ou o cientificismo de Augusto, o esquadro dos concretos ou as ervas de Piva. E vice-versa.

Argumentos que tornam a literatura imprestável: a agenda e/ou a cama cheia(s) de nomes de escritores, os e-mails que arrancaram o último patrocínio e a última resenha de vinte palavras, a caneta de ouro do político em noite de autógrafos sem os ghost-writers, a coleção de saquinhos de chá usados das academias de letras, o relatório de fiscalização das partes íntimas dos poetas.


Listas como esta não são literatura.
E paro, pois a não-literatura é muito mais extensa do que qualquer texto que eu possa escrever.


Não esquecer: evidentemente, tudo acima poderia ter sido literatura. Mas não havia talento.

14 comentários:

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    1. Obrigado. Você conhece bem melhor do que eu as situações não literárias do trabalho editorial...

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  2. Só você Dr. Pádua Fernandes!

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    1. Doutor? Até fiz doutorado, mas em outra área. Talvez eu merecesse, porém, um título mais singelo, de especialista, e em não-literatura...

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  3. Respostas
    1. Obrigado. Veja que tive que citá-la... e, assim, o texto ficou pelo menos com uma referência literária!

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  4. clap clap clap! posso publicar no fb? abraço!

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  5. Gostei de você. Mas gostar de um escritor não é literatura. Tudo bem, não sou escritora, mesmo. :P (utilizar emoticons também não é literatura).

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  6. Boa literatura sobre a não literatura! Valeu!

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  7. Obrigado a vocês. Mas não devemos desanimar por causa daqueles exemplos. O talento consegue converter não-literatura em literatura...

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