Mil desventuras pode sofrer a filosofia nas páginas dos jornais, às vezes até nas mãos de colunistas professores, como foi este caso: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/02/policia-direitos-humanos-e-o-lugar.html
Tratava-se de um problema com Foucault, agora Kant é o motivo. Há um ano, em uma coluna de 18 de fevereiro de 2012, quase escrevi por causa de curioso texto de Hélio Schwartsman, "Projetando bebês", publicado na Folha de S.Paulo (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/26459-projetando-bebes.shtml).
O colunista sustentou que o fundamento da moral para Kant, o imperativo categórico, "veda a utilização de outro ser humano como um meio para um fim, e não como um fim em si mesmo". E comentou que Kant "extrapolou", pois, se ele, o jornalista, quer comprar chicletes em uma loja, ele mesmo é só um instrumento para o vendedor receber dinheiro, e o vendedor é somente (para Schwartsman) uma "ferramenta" que fornece a mercadoria. Um é apenas instrumento para o outro, nenhum deles teria interesse "em ser tratado como um fim".
Imagino que o jornalista nem mesmo agradeça pela compra, já que normalmente não se fala com ferramentas.
Apresentado dessa forma, Kant parece, com efeito, um pouco tonto. Mas o fato é que não foi isso que o filósofo escreveu, e sim que o imperativo categórico não é compatível com ações que tratem o ser humano APENAS como um meio. É claro que, se o jornalista (por sinal, formado em filosofia) paga o preço ajustado pelo chiclete, ele está respeitando o trabalho do vendedor, que não foi apenas um meio, e sim também respeitado como pessoa, neste exemplo corriqueiro de intersubjetividade. Não há violação à dignidade de ninguém.
No entanto, se Schwartsman escravizasse o vendedor de chicletes e o obrigasse a fornecer-lhe a mercadoria a troco de pão e água, o pobre ex-vendedor, agora escravo, teria se tornado apenas em um instrumento para seu proprietário, em APENAS um meio. Isso fere a dignidade humana.
Cito agora, do filósofo, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, na tradução de Paulo Quintela. É de fácil acesso, pois foi publicada na coleção Os Pensadores: "O sujeito dos fins, isto é, o ser racional mesmo, não deve nunca ser posto por fundamento de todas as máximas das ações como simples meio, mas como condição suprema restritiva no uso dos meios, isto é, sempre simultaneamente como fim." A máxima é o princípio subjetivo da ação. Vejam que as palavras "simples" e "simultaneamente" foram ignoradas pelo jornalista, mudando o sentido do imperativo categórico.
Em alemão, "bloß" e "zugleich": "das Subjekt der Zwecke, d. i. das vernünftige Wesen selbst, muss niemals bloß als Mittel, sondern als oberste einschränkende Bedingung im Gebrauche aller Mittel, d. i. jederzeit zugleich als Zweck, allen Maximen der Handlungen zum Grunde gelegt werden." (http://gutenberg.spiegel.de/buch/3510/1)
Lembro disso porque, um ano depois, o imperativo categórico sofreu a mesma deformação, agora pela pena de Contardo Calligaris, que escreveu um texto curiosamente intitulado "Para que serve a tortura?" (talvez eu tenha achado o título intrigante porque um de meus livros chama-se justamente Para que servem os direitos humanos? : http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/padua.html e http://daliteratura.blogspot.com.br/2009/07/edicao-vs-distribuicao.html), publicado em 21 de fevereiro de 2013 no mesmo jornal. O poeta, tradutor e designer (entre outros talentos) André Vallias pediu-me que escrevesse sobre o assunto, o que me levou a rascunhar esta nota.
O psicanalista afirma que alguém poderia invocar a moral kantiana contra a tortura "e o dever de tratar os homens como fins e não como meios" (vejam que ele cai no mesmo equívoco de Schwartsman, em vez de escrever "como simples meios"). Nesse momento, ele dá um exemplo "politicamente mais neutro" (!) de uma criança presa, com pouco ar para respirar, enquanto o sequestrador está preso, e a tortura poderia fazê-lo falar.
No entanto, para a filosofia de Kant, não há dúvida alguma: o dever de respeitar a dignidade humana não admite exceções, nem mesmo contra o suposto sequestrador (neste caso, o psicanalista Calligaris já o condenou, mas na vida real geralmente não conseguimos ter tantas certezas). Há um famoso texto de Kant, de uma controvérsia com Benjamin Constant, em que sustenta que não há um direito de mentir por amor à humanidade. A mentira não pode ser universalizada, e o dever de dizer à verdade não conheceria exceção, nem mesmo se um assassino nos pergunta o paradeiro de sua pretendida vítima, tal é o rigor da posição deontológica de Kant. Rigor que é uma das fontes das várias críticas à filosofia moral desse filósofo.
Kant não tem coisas muito interessantes a dizer em A metafísica dos costumes sobre o direito penal, e Beccaria (que ele critica) é mais progressista. Porém, mesmo aí se pode ler que "se a justiça soçobra deixa de ter valor que os homens vivam sobre a terra." (cito a tradução do professor português José Lamego; a tradução brasileira deve ser evitada).
Dessa forma, creio que não há dúvida: para esse filósofo, o dever de não torturar também não admite exceção, nem mesmo no exemplo "politicamente neutro" requentado por Calligaris, tão interessante para "doutrinas" como a do último Bush presidente dos EUA.
Em um país em que a tortura, com um viés de classe e étnico evidente, é tão disseminada quanto impune, textos como o de Calligaris não são politicamente neutros, principalmente em um Estado em que o Judiciário ordenou a destruição do Pinheirinho e provavelmente não punirá ninguém pelo massacre no Carandiru. Termino com Vidal-Naquet e seu La torture dans la république (1954-1962). O historiador trata de outro contexto, mas esta frase serve para nós: "A tortura representa apenas o paroxismo de um mal muito mais vasto."
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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Kant não é nem de longe meu autor preferido, mas foi muito maltratado nesse caso. No entanto, faltou o que acho que talvez tenha sido a referência do Caligaris sobre tortura que explica um comentário deste neste momento, que é o filme a Hora mais escura, um filme aparentemente com dedo do depto de Estado (com miraculosas imagens fictícias idênticas a imagens reais que assustaram alguns membros de comissões dos EUA incautos)e que defende abertamente a tortura.
ResponderExcluirEntendo. Mas não vi o filme, e não vou fazê-lo, e eu só queria mesmo tratar dos abusos feitos contra o imperativo categórico.
ResponderExcluirDeixo para os cinéfilos fazerem a análise filosófica do cinema comercial dos EUA, e sua incompatibilidade com a dignidade humana...
Outro conflito interessante entre filosofia e jornalismo é o famoso "É Verdade ou Mito?"
ResponderExcluirQuem disse que mito é sinônimo de mentira?
Mito é uma história onde esta contida os valores e ideias de todo um povo que as cultivaram por tempos imemoriais. Não se pergunta se a história de Jesus, Maomé, Abraão ou Khrisna são verdadeiras ou falsas. O que se pergunta aqui é: toca o meu coração e faz sentido a mim ou não? Se sim, sigo esse caminho. Se não, continuo a busca. É o que eu acho.
Abraços
Excelente, Pádua. O texto do Calligaris me incomodou demais. Essa coisa de dizer que em alguns casos a tortura é admissível só serve para perpetuar a situação que temos, de impunidade com os crimes da ditadura.
ResponderExcluirE no infeliz exemplo usado por ele o torturador é o Estado e quem autoriza é a sociedade -- tal e qual na ditadura militar. Não querendo procurar chifre em cabeça de cavalo, mas não acredito em acasos nesse assunto.
Um beijo, e obrigada.
Obrigado, Niara. O professor Safatle acabou escrevendo contra a tortura ontem, no mesmo jornal, provavelmente por conta do mesmo incômodo.
ResponderExcluir"Pois não é torturando um homem, e tentando extrair-lhe os miolos
ResponderExcluirpelos processos mais modernos, que se conseguirá arrancar-lhe a sua verdade ou
impor-lhe uma verdade nova e de circunstância, como se tentou fazer em todos os
tempos e sobretudo nos tempos da Inquisição. A mim, pelo menos, esse processo
medieval e sanguinário sempre me pareceu ridículo ao extremo, como há de parecer a
todos os que pensem e sintam como eu - e o meu silêncio é tudo que lhes posso
oferecer em troca, quando não uma ou outra blasfêmia inoperante, proferida em meio
às minhas alucinações. Dou a minha verdade ao primeiro mendigo da esquina e sem
que ele a peça, como a dou de bom grado a quem se mostre humano como eu e me
trate como a um amigo; jamais, porém, a terão os que não confiem na minha
sinceridade e usem de processos violentos para abrir-me a boca e os olhos, que são
apenas os olhos e a boca do meu corpo, não da minha alma. Os carrascos, tenho-os
na conta apenas de imbecis a serviço do Estado ou de outra potência ainda mais
impotente do que o Estado - e com os imbecis a minha conduta foi sempre uma e
única: eles de um lado e eu do lado oposto, como duas margens de um rio que nem o
mar da morte conseguirá jamais unir." (Campos de Carvalho, em A lua vem da Ásia)
Viva Campos de Carvalho!
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