O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Antologia de viagem: Argentina III

Em 2012, estive na Argentina, o que é sempre uma oportunidade para atualizar-se com sua literatura. A viagem me inspirou duas pequeníssimas séries de poemas traduzidos:

Argentina I: http://opalcoeomundo.blogspot.com.ar/2012/07/antologia-de-viagem-argentina.html
Argentina II: http://opalcoeomundo.blogspot.com.ar/2012/07/antologia-de-viagem-argentina-ii.html

Tento agora mais uma, apesar de meus modestos talentos para a tradução, uma vez que o meio editorial brasileiro não tem sido muito generoso com a poesia argentina contemporânea - já não o é com a brasileira!
Começo, naturalmente, com Julián Axat, pois uma das razões da viagem foi o lançamento do seu mais novo livro (http://opalcoeomundo.blogspot.com.ar/2013/05/edicao-argentina-de-calcio-e-lancamento.html).
As histórias de musulmán o biopoética dizem respeito a menores vítimas de violência; escolhi, porém, um poema que, apesar de aparentemente não tratar do assunto (a referência explícita é a Paul Celan), dele nasce, o que é revelado na segunda parte do livro, "Passagens em espelho", em que, benjaminiamente, Axat expõe sua fábrica poética, trazendo, "torcidos", recortados, os materiais textuais de que compôs os poemas da primeira parte, "Mal sobre ruínas do bem".
Incluí os poucos livros que consegui ler na rápida viagem. O eu lírico que deambula no livro de Emiliano Cruz Luna; a poesia explicitamente spinoziana de Liliana Lukin em La Ética demostrada según el orden poético; a poesia de viagem de Carlos Aprea; e um longo e audaz poema em que se cruzam sexo e história, Nova Iorque e genocídio armênio, o impressionante Káukasos de Ana Arzoumanian; deste, traduzi apenas um fragmento.



Julián Axat (La Plata, 1976), musulmán o biopoética (La Plata, Libros de la talita dorada, 2013).

Mal sobre ruínas do bem
31. A poesia é / a boca


Ninguém /
testemunha /
pela Testemunha / ou

Ninguém
é poeta Testemunha

Ninguém testemunha?

Ninguém
testemunha
pela Testemunha

O poeta não?
O poeta Ninguém?
Paul Celan Ninguém?

A Testemunha é Ninguém
mas / é Testemunha

O poeta testemunha / logo
é Ninguém


Passagens em espelho (Bitácora)
31. a poesia é / a boca

... Você não sabe / você quer me defender / mas você não vive onde vivo / você come bem / se veste bem / você não é perseguido pela polícia o tempo inteiro / seus irmãos não são assassinados / você quer me defender / mas primeiro teria que saber as coisas que vivo / o que é viver da forma como meus filhos vivem numa fossa / e estão / expostos à morte / no dia-a-dia...

(Palavras pronunciadas por Romina, mãe do menor A.D, dirigidas a uma Assessora de Menores de La Plata, durante uma audiência judicial realizada em 8/10/2012)

... E sabe por quê? / Porque não têm outra saída / se o menor não faz nada / o agarram do mesmo jeito / e se está metido em algo / também... / então, é melhor estar, não?...

(Palavras pronunciadas por uma mãe tentando justificar seu filho durante uma audiência judicial. Registro em campo próprio. Realizada em 14/5/2010)




Emiliano Cruz Luna (San Justo, 1976), Desocupez (Buenos Aires: Ediciones del Dock, 2010).

Lenda do abismo nas colinas Mossman


Logo aconteceu, distanciando-se o navio não se distinguia;
mas ele ali sustentou seu obscuro humor humano.

A disgressão do rumo não é possível em um mundo sem pegadas,
a pátria não me espera, já ninguém tem
minhas lembranças, meu nome
pesa menos do que o ar sobre o céu.

Devo andar em outubro ou em sua luz falsa
a baía tende a fraturar-se
a comida já não faz falta
tenho frio
o vento é parte de meus ossos
trazendo-me a melodia da última palpitação
do voo último do pássaro do Adormecido.

Pássaro e voo nas mãos detenho, ergo uma pena
branca de uma de suas asas até minha boca e daí
a pena cai para meu peito esquerdo, muda de cor;
tornando-se pele cola-se em minhas costelas que já são parte do solo.




Liliana Lukin (Buenos Aires, 1951), La Ética demostrada según el orden poético (Buenos Aires: Ediciones La Cebra, 2011).


XXI


Às vezes sonho como estratégia
contra a devastação.

Neste senho vou veloz
como se cavalgasse
fugindo de outra mordida.
Tudo em redor se trata
de morder sobre o aberto
e tornar mais profundo
o dano para ver sua tristeza.

No meu cavalgar difícil
é a ação de fugir e
difícil a ação de ser mordido,
enquanto trato de erguer no ar
crianças, que no sonho ainda estão
inteiras e difícil a ação de crianças
que vão subindo na minha garupa:

centenas de crianças escamoteadas
às mandíbulas que povoam o mundo.

Ao despertar, tocarei a cama,
não como se buscasse o amado,
senão como quem volta
de um sonho de grandeza
e é surpreendido pela luz,
sabendo que, outra vez,
perdeu uma batalha.




Carlos Aprea (La Plata), Pueblos fugaces (City Bell: Libros de la talita dorada, 2012).


Guandacol


Na rota a Jachal,
perseguindo a derradeira luz do dia,
somos um navio em plena cordilheira,
cento e vinte colisões contínuas
mareiam como um mar.
Transtornados, famintos,
avistamos a respiração de uma baleia,
gaivotas negras como condores,
outros navios de carga nos perseguem
e um sal amargo
nos resseca a boca.
Alguém nos grita pelo caminho
que não bebamos a água do próximo rio,
que está morta,
que a mataram os da mina.




Ana Arzoumanian (Buenos Aires, 1962), Káukasos (Buenos Aires: Activo puente, 2011).


..................
Eu uma negra que está
aqui
agora,
porque não esteve
na Anatólia
nesse momento.
Aqui como um barco
que te busca na orla
dos portos
do mar
que não se enche,
para que me vejas
enquanto afundo.
A corda
com que enforcaram
as meninas
nas plantações.
Eu, uma negra
consumida
por chicotadas.
Todas as manhãs
do mundo
eu
um povo vencido
assisto
ao nascimento
de uma nação.
Woodrow Wilson e sua dislexia
escrevendo
a história do povo americano.
A dislexia de Wilson
invadindo o México,
com sua incapacidade
para ler
ou escrever
outorga a autonomia
aos povos do império otomano.
Deformações.
Eu estou aqui
porque não estive
ali
nesse momento.
Uma negra
que não dorme nunca
toda inteira.
......................




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