O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Matrimônio igualitário e o Conselho Nacional de Justiça

Escrevo esta nota em virtude de perguntas que me fizeram sobre a Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que "Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas do mesmo sexo." Seu texto pode ser lido nesta ligação: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/resolu%C3%A7%C3%A3o_n_175.pdf
A manifestação do CNJ deveu-se a requerimento do deputado Federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) e da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado do Rio de Janeiro. Nesse Estado, o Tribunal de Justiça, mais atrasado, ainda não regulara a questão, ao contrário dos Tribunais de outros Estados do país: http://jeanwyllys.com.br/wp/jean-wyllys-e-arpen-rj-solicitam-ao-cnj-a-regulamentacao-do-casamento-civil-igualitario-em-todo-o-brasil
A Resolução é inconstitucional? Creio que nem um pouco, e os consideranda já deixam clara sua perfeita fundamentação jurídica:

CONSIDERANDO a decisão do plenário do Conselho Nacional de Justiça, tomada no julgamento do Ato Normativo no. 0002626-65.2013.2.00.0000, na 169ª Sessão Ordinária, realizada em 14 de maio de 2013;
CONSIDERANDO que o Supremo Tribunal Federal, nos acórdãos prolatados em julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF, reconheceu a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo;
CONSIDERANDO que as referidas decisões foram proferidas com eficácia vinculante à administração pública e aos demais órgãos do Poder Judiciário;
CONSIDERANDO que o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do RESP 1.183.378/RS, decidiu inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo;

Voltemos, pois, às decisões mencionadas. Em maio de 2011, no julgamento das ações ADI 4277 e ADPF 132 (unificadas devido a seu objeto comum), sobre a união estável, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a isonomia entre casais com cônjuges do mesmo sexo e aqueles com sexos diferentes.
No primeiro comentário que fiz sobre a decisão (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/matrimonio-igualitario-no-brasil.html), lembrei que "O caso tem várias implicações - ainda mais porque a lei da união estável, no Brasil, permite a conversão em casamento, o que provavelmente gerará novas campanhas judiciais e publicitárias de ódio contra os homossexuais." Essas campanhas continuam, inclusive no meio jurídico.
Na segunda parte do comentário (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/matrimonio-igualitario-no-brasil_08.html), lembrei que certos argumentos da associação nazista que, junto com a CNBB, fez sustentação oral contra o matrimônio igualitário, referiam-se ao

[...] problema do originalismo que, no direito constitucional dos Estados Unidos, serviu para legitimar a discriminação racial em nome da vontade dos "Founding Fathers". Se a constituição é um monumento petrificado pelas palavras do constituinte originário, os preconceitos e a servidão do pessado devem imperar sobre a progressividade dos direitos humanos.
Esse tipo de argumento, antes empregados contra os negros, foi e é usado para que os homossexuais nos EUA continuem como cidadãos de segunda classe. 
Apenas nessa visão conservadora, adotada, entre outros, por Ives Gandra da Silva Martins, é que se poderia sustentar a ideia de que o Supremo Tribunal Federal teria tomado o papel do legislador, ao reconhecer aquela isonomia. Expliquei-o em outra nota (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/matrimonio-igualitario-no-brasil-o.html):
No plano constitucional, tenta fundamentar-se na tese de que o STF roubou o papel do constituinte. Trata-se da questão do originalismo constitucional, usado nos EUA para negar direitos às minorias (como os negros), com sua tentativa de deixar o direito estagnado na pretensa vontade do legislador.
No entanto, o STF não criou novos direitos, apenas os estendeu a uma categoria discriminada em ofensa ao princípio da isonomia, ele mesmo disposto na Constituição de 1988. Por sinal, esse é o papel do juiz desde a noção aristotélica de equidade.
Ives Gandra, um jurista pré-aristotélico? Deixo essa tese para que os mais capazes do que eu desenvolvam ou refutem. Para o Amálgama, escrevi um texto (http://www.amalgama.blog.br/08/2011/casamento-e-homofobia/) que trata do caráter simultaneamente abstrato e histórico dos direitos humanos  e da força normativa dos princípios constitucionais:
[...] como um ordenamento jurídico que apresente, em seus princípios gerais, o da igualdade, pode ser usado para legitimar a discriminação de homossexuais? Tortuosidades argumentativas e hermenêuticas costumam aparecer – afinal, como conciliar aquele princípio de origem iluminista com os preconceitos inspirados em livro religioso milenar? Há quem o faça, mas não são os ortodoxos.
O caráter abstrato desse princípio permite-lhe ser historicamente moldável e abrigar causas que não foram pensadas em 1789, mas que hoje são prementes, como o da união entre pessoas de mesmo sexo; como escrevi em meu livro Para que servem os direitos humanos?, trata-se da capacidade histórica dos direitos humanos de se transformarem sem a necessidade de alterações jurídicas formais.
Ademais, a decisão do Supremo Tribunal Federal já tinha aberto a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, como expliquei em outra nota, "Matrimônio igualitário no Brasil: já e ainda não" (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/04/matrimonio-igualitario-no-brasil-ja-e.html), com uma questão a elucidar: "subsiste uma desigualdade: é necessário, de acordo com esse caminho legal, para casais do mesmo sexo, ter uma união estável para depois casar. Isso não faz muito sentido mesmo do ponto de vista da atual Constituição, uma vez que os de sexos diferentes não precisam seguir esse trâmite."
O Conselho Nacional de Justiça apenas regulou a questão de forma que a Constituição fizesse sentido, já que não poderia subsistir uma exigência para casais do mesmo sexo que não existe para os de sexo diferente, em face do princípio da isonomia.
A Resolução faz menção a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ); esta outra corte de Brasília tem, no tocante à garantia da validade da legislação federal, o mesmo papel que o Supremo Tribunal Federal possui em relação à garantia da Constituição da República. Se o problema é apenas de lei federal, e não constitucional, a última palavra é do STJ. Por isso, ele se pronunciou a respeito do casamento entre pessoas do mesmo sexo e o Código Civil no Recurso Especial 1.183.378/RS, (http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/39/Documentos/STJ%20Resp%20casamento%20homoafetivo%20acordao%202012.pdf).  
Nesse caso, duas mulheres, em Porto Alegre, pleiteavam o direito de casar-se; os cartórios de registro civil negaram-no, e a justiça gaúcha (cujo suposto caráter "avançado" ainda permanece como um curioso mito), tanto em primero quanto em segundo grau, mantiveram a negativa, somente desfeita com a decisão do STJ:


8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar.

Os adversários da Constituição e da igualdade, entre eles membros do Ministério Público Federal, políticos do PT e do PMDB que decidiram questionar a Resolução (ver aqui: http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/05/procurador-e-deputados-questionam-decisao-do-cnj-sobre-casamento-gay.html), ao brandir a ideia de que houve um sequestro das competências do Legislativo e, com isso, um atentado à democracia, na verdade fundamentam-se em uma postura antidemocrática no tocante às fontes do direito. O voto do Ministro Luís Felipe Salomão, no Recurso Especial mencionado, já abordava essa questão, ao afirmar que 
[...] a família é um fenômeno essencialmente natural - sociológico, cujas origens antecedem o próprio Estado.
É dizer: família é uma instituição pré-jurídica, surgida das mais remotas experiências de aglomeração e vinculação pelo parentesco e reciprocidade, anterior por isso mesmo ao próprio casamento, civil ou religioso.
Não pode o Direito - sob pena de ser inútil - pretender limitar conceitualmente essa realidade fenomênica chamada "família", muito pelo contrário, é essa realidade fática que reclama e conduz a regulação jurídica.
Essa realidade fática é que conduz a regulação jurídica. Isto significa que o casamento entre pessoas do mesmo sexo somente passou a ser reconhecido juridicamente porque existe socialmente. E mais: a própria sociedade, criando esse fato social, gera efeitos jurídicos que o Judiciário deve reconhecer, sob pena de agir antidemocraticamente.
A propósito, é corrente, desde a Antiguidade, que os direitos criem-se dessa forma: nascem como direito costumeiro, o próprio Judiciário reconhece-os e, um dia, o legislador acorda de seu sono feito de recessos, lobbies, cargos e mordomias, e resolve formalizar a matéria em direito escrito. Acreditar que só o Legislativo, e não também o povo, por meio de suas práticas, possa criar direitos, é profundamente antidemocrático - e nega, devo dizer, a própria realidade histórica do direito.
Para reforçar a ideia de isonomia, devemos lembrar que o mesmo atraso legislativo aconteceu com a união estável de casais com parceiros de sexo diferente no Brasil: diante de décadas e décadas de um Legislativo escravizado a preconceitos religiosos (os grilhões bíblicos permanecem lá, por sinal), a população brasileira não podia unir-se fora legalmente fora do casamento, o que se complicava, ainda, com a inexistência do divórcio.
Orlando Gomes, na interessante obra Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro (reeditada pela Martins Fontes em 2003), explica o caráter senhorial e privatista do Código Civil brasileiro de 1916: "o Código Civil, sem embargo de ter aproveitado frutos da experiência jurídica de outros povos, não se liberta daquela preocupação  com o círculo social da família, que o distingue, incorporando à disciplina das instituições básicas, como a propriedade, a família, a herança e a produção (contrato de trabalho), a filosofia e os sentimentos da classe senhorial." (p. 22). O que o grande civilista afirmou a respeito dos direitos sociais, ou seja, o atraso do Código em razão dos interesses conservadores, pode ser verificado também na ordem do direito de família.
O povo brasileiro, o que fez? Uma vez que o Legislativo e o direito escrito não o contemplavam, passou ele mesmo a criar suas formas de união familiar fora do Código Civil. Essas práticas sociais consolidaram-se e foram previstas na Constituição de 1988 (pela primeira vez na história do direito constitucional brasileiro) e, na década de 1990, bem atrasado em relação até o Judiciário, é que o Legislativo foi tratar da questão, com a lei n. 8971 de 1994...
Ou seja, também para casais heterossexuais, o Congresso Nacional brasileiro mostrou-se atrasado, reacionário, e desidioso. É notável que essa desídia seja uma constante histórica, e sempre acompanhada da reclamação de políticos e juristas conservadores, inconformados com que o povo assuma a criação dos próprios direitos, e que o Judiciário cumpra seu dever, reconhecendo-os à luz da Constituição.

Um comentário:

  1. Que essa decisão do CNJ provoque, ainda que tardia, uma discussão no legislativo para que os casais tenham acesso pleno aos direitos do casamento civil

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