O ato tinha sido anunciado na página de Adriano Diogo (PT/SP) (http://www.adrianodiogo.com.br/noticias/internas/id/1955/justi-a-para-olavo-hanssen/), presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva": http://www.al.sp.gov.br/comunidade/comissao-da-verdade-do-estado-de-sao-paulo-rubens-paiva. No anúncio ou nesta ligação https://www.youtube.com/watch?v=vGUN9sNZUnA, pode-se ver um curta-metragem sobre a vida do militante assassinado, que é interpretado por Edgard Castro.
Já escrevi sobre Olavo Hanssen outras vezes, especialmente aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/04/desarquivando-o-brasil-v-o-assassinato.html. Seu caso logrou a primeira condenação do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA. Ele fora assassinado após ser preso em uma grande operação policial montada para o Primeiro de Maio de 1970, cujos papéis encontrei no Arquivo Público do Estado de São Paulo: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/desarquivando-o-brasil-lviii-o-primeiro.html
O ato ocorreu onde ele foi preso, na Vila Maria Zélia; foi uma boa escolha. O local ficou repleto, com presença de membros de partidos identificados com a esquerda como o PT (da corrente Trabalho), PSOL, PSTU, e organizações como o MST, o Tortura Nunca Mais, e sindicatos filiados à CUT, o dos Químicos do ABC e dos Químicos de São Paulo. Paulo Vannuchi, atual candidato do Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, também lá estava.
O dia escolhido também foi significativo, mas de forma não prevista pelos organizadores. A Folha de S.Paulo havia publicado um editorial a favor da Lei de Anistia.
Sabemos que o jornal escreve em interesse próprio, e não do interesse geral, que não se manifesta na manutenção da tradicional cultura da impunidade. Lembremos do importantíssimo livro Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 da historiadora Beatriz Kushnir, que mostrou como o grupo Folha foi capaz até mesmo de emprestar veículos para a repressão política. Sugiro também a leitura dos textos desta ligação: http://caesdeguarda-jornalistasecensores.blogspot.com.br/, e a audição do depoimento de Ivan Seixas de como a Folha da Tarde anunciou a morte de seu pai antes de a repressão assassiná-lo (http://www.viomundo.com.br/radio/o-servico-sujo-do-grupo-folha-ao-regime-militar.html.
O editorial tomava partido de um dos artigos publicados na seção Tendências/Debates. No mesmo dia, 25 de maio, o jornal publicou textos opostos para a questão de se a Lei de Anistia deve ser revista. Um dos textos era de Luiza Erundina, que apresentou, na Câmara dos Deputados, projeto para dar interpretação autêntica dessa lei, com o fim de excluir dos "crimes conexos" "os crimes cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos". A deputada federal (PSB/SP) apresentou-o para que o Brasil possa cumprir a sentença do caso Gomes Lund e outros, em que o Brasil foi condenado em razão da Guerrilha do Araguaia, cujos mortos estão em boa parte desaparecidos, e os agentes da repressão continuam impunes. Expliquei essa condenação nestes dois pequenos textos: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/12/brasil-argentina-e-os-desaparecimentos.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/cumpra-se-ato-pelo-cumprimento-da.html
É notável que a CNV tenha este membro que, se não tem se destacado especialmente pelo afinco em suas funções, notabilizou-se pelas seus pronunciamentos contrários à justiça de transição.
Adriano Diogo indagou: "Passados 43 anos da morte de Olavo, o que é que estamos fazendo?"; e trato da importância do ato em lançar um movimento pela revisão da Lei de Anistia.
Ivan Seixas, que também está na Comissão Estadual da Verdade, já havia falado da relação entre a impunidade dos torturadores de ontem com a dos torturadores de hoje, a atacar os jovens negros e brancos nas periferias. E tratou da inversão histórica: nos anos 1970, militantes como ele queriam matar os agentes da repressão, enquanto os empresários protegiam-nos; hoje, os combatentes contra a ditadura desejam que aqueles agentes sobrevivam para serem julgados e punidos, enquanto os antigos financiadores e mandantes esperam que morram, com medo do que possa ser revelado.
A atriz Dulce Muniz narrou os acontecimentos do dia da prisão, e que foi ele que notou que aquele local estava "coalhado" de policiais; na prisão, ele sempre se preocupou com ela (que era dez anos mais jovem) e no último diálogo deles, quando ele já não conseguia mais andar, foi carregado para a portinhola da cela para saber se ela estava bem.
Geraldo Siqueira, que era da mesma célula do PORT, contou como, no dia em que foram presos, Hanssen o fez lavar as mãos, sujas de tinta de uma pichação "Abaixo a ditadura", para não despertar suspeitas. Na prisão, Hanssen o alertou para não deitar com a cabeça junto à porta - e isso foi providencial, pois logo depois os carcereiros entraram "arrombando", o que o teria machucado gravemente. Siqueira foi solto enquanto o militante mais velho ainda estava vivo, mas já muito mal em razão das torturas. Mesmo assim, deitado, conseguiu virar-se, sorrir e erguer o polegar para ele, o que interpretou como um gesto de esperança.
Raphael Martinelli foi torturado com Hanssen e explicou que os policiais queriam saber do militante do PORT os nomes da direção do partido no Rio Grande do Sul, que nunca revelou. Martinelli, um dos fundadores do PT, aproveitou para fazer diversas críticas ao partido, à CNV, ao imposto sindical, ao ritmo da reforma agrária.
Com a leitura de uma carta aberta à presidenta Dilma Rousseff, o ato assumiu o caráter de lançamento de uma campanha contra a Lei de Anistia.
O evento começou depois das 16 horas e durou até quase 19, e contou com a participação do Grupo Cultural Luther King, regido por Martinho Lutero Galati, que cantou, entre as mesas, a "Suíte dos Pescadores", de Dorival Caymmi no arranjo de Damiano Cozzella (já a cantei, e não é fácil; vejam-na: https://www.youtube.com/watch?v=b8Nvr7Xx_Jo), música que, Ivan Seixas explicou, era cantada sempre que um preso político era libertado ou transferido. Concluídas as falas, o grupo ainda cantou e tocou "A Internacional".
Após esse momento musical, ocorreu o lançamento da biografia de Olavo Hanssen por Murilo Leal (Olavo Hanssen: uma vida em desafio, São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013), que foi membro do PORT. O trabalho editorial foi modesto; nada há em iconografia, exceto a foto da capa. O texto poderia ser melhor também: parte significativa destina-se ao que soa como ajuste de contas entre a esquerda, com críticas às orientações do antigo partido. Não há muitas referências, e algumas são feitas de forma errada, como no caso dos documentos do acervo do arquivo Público do Estado de São Paulo, em que há uma confusão com os dossiês.
No entanto, o livro tem o grande mérito de, além de ser único, corrigir o nome de Hanssen. Sua irmã Alice, de quem Leal tomou o depoimento, esclareceu que ele foi sempre publicado erradamente, com apenas um s.
Eu mesmo caía nesse erro e publiquei na Revista Histórica, do Arquivo Público do Estado de São Paulo, um artigo, com meu então orientando Diego Marques Galindo, hoje advogado, em que escrevemos Hansen: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao36/materia02/
Na capa de seu prontuário no DOPS/SP (reproduzo aqui os documentos, guardados no Arquivo Público do Estado de São Paulo), o nome já estava errado. Citei neste blogue a decisão que trancou o inquérito penal militar que fingiu apurar as circunstâncias de sua morte em 1970; o nome, no decorrer dos autos, era Hansen. Documentos de prisões anteriores, no entanto, citam às vezes seu nome corretamente. Apenas às vezes. Em alguns deles, ele se torna Haussen (exibo um exemplo ao lado). O sobrenome chegou a ser metamorfoseado, em um registro, em Hansan.
O sobrenome estabiliza-se, mutilado de um s, em 1970, e dessa forma, ele foi reproduzido pelos sindicalistas que protestaram contra sua morte, pelo MDB, pela imprensa da época (reproduzo um exemplo da Tribuna da Rio, mas há vários, seu caso foi amplamente noticiado, apesar da censura), pelas autoridades policiais. E, como Hansen, seu caso chegou à OEA e à OIT...
Os dossiês sobre direito à memória e à verdade do governo federal e do Estado de São Paulo (que têm outros problemas) mantêm o erro. Mais recentemente, a seção do Rio de Janeiro da OAB também o divulgou dessa maneira (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/terra-sem-lei-iii-e-desarquivando-o.html). Outro exemplo foi o escondido monumento aos mortos da USP pela ditadura militar, inaugurado durante as férias, "Memorial em homenagem aos membros da comunidade USP que foram perseguidos e mortos durante o regime militar (1964-1985)"; veja-se na última foto deste texto.
Na última foto de nota que escrevi em 2011, pode-se notar como até os trotskistas grafam Hanssen equivocadamente: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/desarquivando-o-brasil-viii-e.html
A biografia escrita por Murilo Leal, no entanto, não menciona essas flutuações ortográficas, e chega ao ponto de citar outras obras, notícias e documentos corrigindo o nome de Hanssen, escrito erradamente por esses outros autores, sem indicar que está retificando o texto alheio.
Além do erro metodológico de alterar as citações sem o indicar, há outra questão: não se trata de mera falha ortográfica, o problema tem dimensão histórica e política.
O fato de que, mesmo neste caso, que não é de um desaparecido, de um morto do qual temos documentação (provavelmente incompleta, mas em boa parte conhecida), não conhecêssemos corretamente nem mesmo o nome da vítima, é extremamente significativo do esforço enorme que deve ainda ser realizado em relação à memória e à verdade no Brasil.
A tarefa é vasta e coletiva, e não contará com o apoio da maior parte dos veículos de comunicação - o partido tomado pela Folha de S.Paulo revela-o. A estratégia de ocultamento das reais dimensões da última ditadura (ou "regime", segundo a Reitoria da USP), realizada também pela grande imprensa (que tanto colaborou com as autoridades), impediu-nos de saber até hoje o número de mortos. Houve quem dissesse que a repressão teve apenas quinhentas vítimas. As dimensões do genocídio indígena multiplicam esse montante.
O recente relatório elaborado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de transição, também supera bastante aquele velho número: http://www.forumverdade.ufpr.br/wp-content/uploads/A_%20EXCLUSAO-Versao_18_setembro.pdf
É notável que parte significativa dessas mortes haja ocorrido antes da Constituição de 1988 e durante o governo Sarney. O malogrado governo do velho arenista, no entanto, está simultaneamente fora, em termos de abrangência temporal dos trabalhos, e dentro da Comissão Nacional da Verdade, na qual conta com um representante, José Paulo Cavalcanti Filho, contrário à justiça de transição. Representante que encontra não só cargos oficiais, como grandes veículos que veiculam seus pequenos pareceres.
P.S. 1: O Secretário Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, Rogério Sottili, falou na primeira mesa, e a Secretaria publicará os anais do evento. Na grande imprensa, o ato não teve chance de aparecer.
P.S. 2: A Carta Aberta à Presidenta, em que se diz "Clamamos mais uma vez, para todas as autoridades democraticamente constituídas no país, que os criminosos da ditadura devem pagar perante a justiça por seus crimes.", foi publicada nesta ligação da Confederação Nacional do Ramo Químico: http://www.cnq.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=903:olavo-hanssen-militante-quimico-do-abc-morto-pela-ditadura-foi-homenageado
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