Está ocorrendo uma cerimônia em homenagem aos mortos na chacina na Favela da Maré. Vejam o cartaz pedindo o fim da "ditadura de classe", o fim do "extermínio das favelas" e a "desmilitarização" da polícia:
Pensando nisso, fiz esta notinha. Escrevi uma dissertação de mestrado nos idos de 1996, sob a orientação do sociólogo Ronaldo do Livramento Coutinho, de título "Controle do parcelamento do solo urbano: legislação urbanística e produção ilegal da moradia". Não prestava, naturalmente. No final, porém, eu fiz algo não convencional: alinhavei citações sobre a cidade e o direito e terminei com algumas considerações sobre a falta de contornos precisos do que seria o direito à cidade no Brasil.
A lista era aberta e fechada por trechos de um poema de Octavio Paz. A maior parte das citações era, porém, de livros teóricos, e não de literatura, mais ou menos em choque entre si. Por exemplo: Engels explicando como a burguesia não quer resolver o problema da habitação e, de outro lado, o jurista burguês Luís Roberto Barroso, contrário na época ao direito à moradia.
Nela, alguns juristas críticos ao estado lamentável do direito brasileiro no campo do direito urbano (estávamos antes do Estatuto da Cidade, que só foi aprovado em 2001). Rocha Lagôa lembrava que a palavra cidade nem mesmo aparecia no Código Civil de 1916, que estava em vigor quando escrevi a dissertação.
Dois nomes que julgo muito importantes para os estudos urbanos no Brasil, e que infelizmente morreram ainda no século passado: o arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos e o jurista Eduardo Guimarães de Carvalho, cujas obras deveriam ser reeditadas. De ambos, seria necessários recolher os artigos dispersos, que ainda teriam muito a ensinar, eis que os problemas das cidades brasileiras continuam, e alguns agravaram-se: nos locais, como as favelas, em que o direito à moradia e os outros direitos sociais não estão assegurados, tampouco estão os direitos à vida e à integridade física. O caso da Maré exemplifica-o.
antes de las escuelas y las prisiones, los alfabetos
y los numeros, el altar y la ley(...)
hablo de la ciudad inmensa, realidad diaria hecha de
dos palabras: los otros
Octavio Paz - Hablo de la Ciudad.
La ciudad estaba in sitio elegido, por sus
condiciones vantajosas, para centro de asociación; en ella residían los dioses,
se administraba justicia, se reunían los ciudadanos para celebrar sus fiestas,
negocios y para defenderse contra ataques exteriores; y su régimen político se
basaba en la participatión de todos los ciudadanos en la vida pública. (...) La
ciudad fué la única forma de estado que los pueblos antiguos reconocieron, base
primaria de todo el Derecho público y privado. (CASTRO, Andrés de la Oliva de.
Civitas. In: Diccionario del Mundo Clásico. Labor: Madrid, tomo I, p. 404,
1954.)
O estatuto da cidade era um contrato social; a cidade
livre tinha segurança tanto legal como militar, e morar na cidade corporativa
durante um ano e um dia fazia desaparecer as obrigações da servidão. Daí ter-se
a cidade medieval transformado em ambiente seletivo, que reunia em si a parte
mais experimentada, a mais ousada, a mais destacada - talvez, por
isso mesmo, a mais inteligente - da população
rural. [...]
Por meio da luta [...] as cidades ganharam o direito
de manter um mercado regular, o direito de se sujeitarem a uma lei de mercados
especial, o direito de cunhar moedas e de estabelecer pesos e medidas, o
direito de serem os cidadãos julgados nos tribunais locais e de pegar em armas
na sua própria defesa. [...] A cidadania dava a quem a possuísse a mobilidade
pessoal [...] (MUNFORD, Lewis. A Cultura das Cidades. Belo-Horizonte: Itatiaia,
p. 34-36, 1961.)
A aplicação das próprias leis do reino em sua colônia
ajudou a transposição dum certo tipo de desenho urbano através do Atlântico.
Por certo, o costume e a tradição alicerçada na idade média estiveram presentes
nessa reprodução de características urbanísticas tão forte e seguidamente
repetidas. Porém um quadro legal atinente a questões básicas e em que se
amparava o arcabouço normativo da cidade foi a causa mais direta do fenômeno.E,
muito especialmente, os reflexos da união Igreja-Estado lusitana. Pois em cada
fundação colonial entidades do poder civil e do clero se estabeleciam e
expressavam através de suas sedes respectivas uma função particular e a imagem
da metrópole. Seu concerto configurou a cidade” [...] (MARX, Murillo. Nosso Chão: do sagrado ao profano. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,1988, p. 41.)
[...] ficou, espero, visível um padrão dual de
cidadania, onde campo e cidade se diferenciam nitidamente. Talvez mais que em
muitas outras partes do mundo, no Brasil o termo “cidadão” tem mais afinidades
com a palavra “cidade” que as puramente semânticas. Cidade e cidadania são
aparentadas por motivos essencialmente políticos, derivados da história da
sociedade brasileira, em especial deste século. (COIMBRA, Marcos A. E. L. S.
Cidade, Cidadania e Políticas Públicas. In: SOUZA, A. de. Qualidade da Vida
Urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 1984, p. 96.)
O sentimento de responsabilidade administrativa e o da
solidariedade social são derrotados diariamente pela força viva e
incessantemente renovada do interesse privado. (...) Mas, do próprio excesso do
mal surge, às vezes, o bem; e a imensa desordem material e moral da cidade
moderna terá talvez como resultado fazer surgir enfim o estatuto da cidade,
que, apoiado em uma forte responsabilidade administrativa, instaurará as regras
indispensáveis à proteção da saúde e da dignidade humana. (CARTA DE ATENAS.
Cartas Patrimoniais. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, 1995, p. 66.)
O nosso Código Civil, ainda em vigor, que foi baixado
para entrar em vigor em 01/01/1917, nada diz a respeito do fenômeno cidade. A
palavra cidade não entra no Código Civil. (LAGÔA, Paulo Francisco Rocha. In:
SECRETARIA MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GERAL, 1984, p. 131.)
[...] no momento, 70% da população brasileira já é
urbana.Porém, 70% dessa população que já é ubana está morando em apenas 15
aglomerados de cidades. Isto nos traz a grande novidade, porque cidadão é
morador da cidade. “Polis” é o lugar da política. Pode ser que estejamos na
beirada de uma virada histórica nesse País, em que pela primeira vez a grande
massa da população poderá, talvez, ser consciente dos seus direitos, isto é,
ser cidadão. (FERREIRA DOS SANTOS, Carlos Nelson. In: SECRETARIA MUNICIPAL DE
PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GERAL, 1984, p. 43-44.)
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano,
executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em
lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
Parágrafo primeiro. O plano diretor, aprovado pela
Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é
o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
Parágrafo segundo. A propriedade urbana cumpre sua
função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade
expressas no plano diretor. (BRASIL. Constituição da República Federativa do
Brasil.)
Art. 422. [...]
Parágrafo primeiro. As funções sociais da cidade
compreendem o direito da população a moradia, transporte público, saneamento
básico, água potável, serviços de limpeza urbana, drenagem das vias de
circulação, energia elétrica, gás canalizado, abastecimento, iluminação
pública, saúde, educação, cultura, creche, lazer, contenção de encostas,
segurança e preservação, proteção e recuperação do patrimônio ambiental e
cultural. (MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. Lei Orgânica.)
[...] no que concerne à terra urbana, os instrumentos
jurídicos ainda são insuficientes para uma ocupação do solo urbano mais
ordenada e equânime, assegurando para todos melhor qualidade de vida [....] não
se tendo o domínio das conseqüências da sua aplicação com vistas à indústria da
construção civil, às repercussões sobre a mão de obra, e à efetivação de uma
política supridora do deficit estimado em 12 milhões de unidades habitacionais
no país. (LIRA, Ricardo Pereira. Campo e Cidade no Ordenamento Jurídico
Brasileiro. Rio de Janeiro: Gráfica Riex Editora,1991, p. 66.)
[...] como a burguesia resolve, na prática, o problema
habitacional. Os focos de epidemias, os porões mais imundos, nos quais, noite
após noite, o modo de produção capitalista encerra os nossos trabalhadores, não
são eliminados... são simplesmente deslocados! A mesma necessidade econômica os
faz nascer, aqui ou acolá. E enquanto subsistir o modo de produção capitalista,
será loucura desejar resolver o problema da habitação ou qualquer outro
problema social relativo à sorte do operário. (ENGELS, Friedrich. A Burguesia e
o Problema Habitacional. In: PAULO
NETTO, José (org.) Política. São
Paulo: Ática, p.138.)
Igualmente irrealizável é o preceptivo constitucional
que padeça de excesso de ambição, colidindo com as possibilidades reais do
Estado e da sociedade, ainda que aferidas por critério generoso. Assim, v.g., o
art. 368 do Anteprojeto elaborado em 1986 pela Comissão Provisória de Estudos
Constitucionais, presidida pelo Professor Afonso Arinos de Melo Franco, segundo
o qual “é garantido a todos o direito, para si e para sua família, de moradia
digna e adequada, que lhes preserve a segurança, a intimidade pessoal e
familiar. (BARROSO, Luís Roberto. O
Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: limites e possibilidades
da constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2.ª edição, 1993, p.
5.)
[...] certos direitos abrem caminho, direitos que
definem a civilização (na, porém freqüentemente contra a sociedade - pela, porém
freqüentemente contra a “cultura”). Esses direitos mal reconhecidos tornam-se
pouco a pouco costumeiros antes de se inscreverem nos códigos formalizados.
Mudariam a realidade se entrassem para a prática social: direito ao trabalho, à
instrução, à educação, à saúde, à habitação, aos lazeres, à vida. Entre esses
direitos em formação figura o direito à cidade (não à cidade arcaica mas à vida
urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos
de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos
e locais, etc.) (LEFEBVRE, Henry. O Direito à Cidade. São Paulo: Moraes, 1991,
p. 143.)
[...] hoje me preocupa, como questão relevante para os
estudos de urbanização, o direito ao trabalho. De certo modo, o título destas
minhas notas reflete uma trajetória profissional que coincide com a trajetória
do Brasil e de boa parte da América Latina, do direito à cidade ao direito do
trabalho. (SCHERER, Rebeca. Do Direito à Cidade ao Direito do Trabalho: uma
revisão pessoal. Revista USP, São Paulo: Universidade de São Paulo, n. 5, 1990,
p. 61.)
A década de 70 apresenta um outro momento da modernidade no processo de metropolização
latino-americana. A racionalidade, a ordem e o progresso haviam produzido
enormes áreas periféricas onde o desejo da cidade se transforma agora no
“Direito à Cidade”. (LEMOS, Amalia Inés Geraiges de. Metropolização e
Modernidade. As Metrópoles da América Latina. In: SCARLATO, F. C. e outros. O
Novo Mapa do Mundo: Globalização e Espaço Latino-Americano. São Paulo:
Hucitec/ANPUR, p. 185.)
Pode-se mesmo observar que, conjugado ao direito ao
saneamento, habitação e transporte, as políticas públicas em relação ao espaço
urbano expressam agora a preocupação com uma novíssima reivindicação, o
“direito à cidade”. Este direito seria, mais ou menos, o direito de todos os
cidadãos ao gozo do espaço urbano como o duplo exercício da história e da
estética. (HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Cidade ou Cidades? Revista do
Patrimônio. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, n. 23, 1994, p. 16.)
[...] s’il doit y avoir un “droit à la ville” dont la
substance reste à préciser, il ne saurait se réduire à la question des types et
répartitions des logements, mais qu’il lui incombe d’étendre son empire sur les
multiples activités qui constituent l’être-citadin. Et parmi celles-ici, la
fréquentation des jardins urbains, modalités de l’éstetique urbaine, n’est pas
à revendiquer sa place. (MONEDIAIRE, Gérard. Droit et Politique des Jardins
Urbains. Droit et Ville. Toulouse:
L’Institut des Etudes Juridiques de l’Urbanisme et de la Construction, n. 35, 1993,
p. 150.)
A l’heure où la majeure partie de la population est
citadine, on conçoit aisément que la qualité de la ville soit un facteur
déterminant de la qualité de la vie. Le droit à la ville pourrait n’être
finalement que le droit à une ville de qualité. (COULET, William. Qualité de la
Ville et Qualité de Vie. Droit et Ville.
Toulouse: L’Institut des Etudes Juridiques de l’Urbanisme et de la
Construction, n. 35, 1993, p. 103.)
Le droit à la ville serait le droit à n’être pas captif
d’un ghetto, le droit à ce que les quartiers où vivent les plus démunis
deviennent attractifs par la qualité - laquelle
n’est pas proportionnée au coût des aménagements - de leur
environnement. (MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Rapport de Synthèse. Droit e Ville. Toulouse: L’Institut des
Etudes Juridiques de l’Urbanisme et de la Construction, n. 35, 1993, p. 180.)
O que se vê, portanto, é que o ser humano tem direito a uma
vida digna, na cidade ou no campo, onde possa dispor de segurança e saúde, ter
uma moradia decente, um trabalho lícito, conforto, lazer, educação e cultura e
um meio ambiente que respeite às condições de seu organismo. Isso implica dizer
que o Município, ao organizar a cidade, deve levar em conta todos esses
fatores, que, isoladamente e por força do próprio regime federativo que lhe
atribui essa competência, não podem ser alcançados senão em cooperação com os
demais Municípios, Estados-membros e a própria União.
Em outras palavras, o direito à vida digna antecede o
direito à cidade. (SOUTO, Marcos Juruena Villela. Parecer n.º 14/90. Revista de Direito da Procuradoria Geral.
Rio de Janeiro: Estado do Rio de Janeiro, n. 44, 1992, p. 301.)
Embora a
elaboração teórica deva ser remetida a advogados que publicaram trabalhos de direito
civil, trabalhista e penal sob tal denominação, permito-me incluir dentro da
rubrica "direito insurgente" outras contribuições, dedicadas ao
espaço urbano. Em comum, elas aceitam a idéia de que a cidade tem uma função
social, de que toda a população urbana
tem direito à cidade e de que o direito de construir deve ser concessão do
poder público municipal, separado do direito de propriedade. (CARVALHO, Eduardo
Guimarães de.Cidadania em Horário Integral. In
FASE - Instituto Apoio Jurídico Popular. Discutindo a Assessoria Popular - II.
Rio de Janeiro: AJUP e FASE,1992, p. 36.)
Une ville ne se decrète pas. (OLIVIE, Jacques.
L’Incidence de L.O.V. sur la Valeur des Biens Immobiliers. Droit et Ville. Toulouse: L’Institut des Etudes Juridiques de l’Urbanisme
et de la Construction, n. 35, 1993, p. 99.)
la ciudad con la que hablo cuando no hablo con nadie
y que ahora me dicta estas palabras insomnes
Octavio Paz - Hablo de la Ciudad.