O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 2 de julho de 2013

O direito à cidade, citações desconcertantes

Está ocorrendo uma cerimônia em homenagem aos mortos na chacina na Favela da Maré. Vejam  o cartaz pedindo o fim da "ditadura de classe", o fim do "extermínio das favelas" e a "desmilitarização" da polícia: http://instagram.com/p/bRmI_bw2Og/#
Pensando nisso, fiz esta notinha. Escrevi uma dissertação de mestrado nos idos de 1996, sob a orientação do sociólogo Ronaldo do Livramento Coutinho, de título "Controle do parcelamento do solo urbano: legislação urbanística e produção ilegal da moradia". Não prestava, naturalmente. No final, porém, eu fiz algo não convencional: alinhavei citações sobre a cidade e o direito e terminei com algumas considerações sobre a falta de contornos precisos do que seria o direito à cidade no Brasil.
A lista era aberta e fechada por trechos de um poema de Octavio Paz. A maior parte das citações era, porém, de livros teóricos, e não de literatura, mais ou menos em choque entre si. Por exemplo: Engels explicando como a burguesia não quer resolver o problema da habitação e, de outro lado, o jurista burguês Luís Roberto Barroso, contrário na época ao direito à moradia.
Nela, alguns juristas críticos ao estado lamentável do direito brasileiro no campo do direito urbano (estávamos antes do Estatuto da Cidade, que só foi aprovado em 2001). Rocha Lagôa lembrava que a palavra cidade nem mesmo aparecia no Código Civil de 1916, que estava em vigor quando escrevi a dissertação.
Dois nomes que julgo muito importantes para os estudos urbanos no Brasil, e que infelizmente morreram ainda no século passado: o arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos e o jurista Eduardo Guimarães de Carvalho, cujas obras deveriam ser reeditadas. De ambos, seria necessários recolher os artigos dispersos, que ainda teriam muito a ensinar, eis que os problemas das cidades brasileiras continuam, e alguns agravaram-se: nos locais, como as favelas, em que o direito à moradia e os outros direitos sociais não estão assegurados, tampouco estão os direitos à vida e à integridade física. O caso da Maré exemplifica-o.




antes de las escuelas y las prisiones, los alfabetos y los numeros, el altar y la ley(...)
hablo de la ciudad inmensa, realidad diaria hecha de dos palabras: los otros
Octavio Paz - Hablo de la Ciudad.

La ciudad estaba in sitio elegido, por sus condiciones vantajosas, para centro de asociación; en ella residían los dioses, se administraba justicia, se reunían los ciudadanos para celebrar sus fiestas, negocios y para defenderse contra ataques exteriores; y su régimen político se basaba en la participatión de todos los ciudadanos en la vida pública. (...) La ciudad fué la única forma de estado que los pueblos antiguos reconocieron, base primaria de todo el Derecho público y privado. (CASTRO, Andrés de la Oliva de. Civitas. In: Diccionario del Mundo Clásico. Labor: Madrid, tomo I, p. 404, 1954.)

O estatuto da cidade era um contrato social; a cidade livre tinha segurança tanto legal como militar, e morar na cidade corporativa durante um ano e um dia fazia desaparecer as obrigações da servidão. Daí ter-se a cidade medieval transformado em ambiente seletivo, que reunia em si a parte mais experimentada, a mais ousada, a mais destacada - talvez, por isso mesmo, a mais inteligente - da população rural. [...]
Por meio da luta [...] as cidades ganharam o direito de manter um mercado regular, o direito de se sujeitarem a uma lei de mercados especial, o direito de cunhar moedas e de estabelecer pesos e medidas, o direito de serem os cidadãos julgados nos tribunais locais e de pegar em armas na sua própria defesa. [...] A cidadania dava a quem a possuísse a mobilidade pessoal [...] (MUNFORD, Lewis. A Cultura das Cidades. Belo-Horizonte: Itatiaia, p. 34-36, 1961.)

A aplicação das próprias leis do reino em sua colônia ajudou a transposição dum certo tipo de desenho urbano através do Atlântico. Por certo, o costume e a tradição alicerçada na idade média estiveram presentes nessa reprodução de características urbanísticas tão forte e seguidamente repetidas. Porém um quadro legal atinente a questões básicas e em que se amparava o arcabouço normativo da cidade foi a causa mais direta do fenômeno.E, muito especialmente, os reflexos da união Igreja-Estado lusitana. Pois em cada fundação colonial entidades do poder civil e do clero se estabeleciam e expressavam através de suas sedes respectivas uma função particular e a imagem da metrópole. Seu concerto configurou a cidade” [...] (MARX, Murillo. Nosso Chão: do sagrado ao profano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,1988, p. 41.)

[...] ficou, espero, visível um padrão dual de cidadania, onde campo e cidade se diferenciam nitidamente. Talvez mais que em muitas outras partes do mundo, no Brasil o termo “cidadão” tem mais afinidades com a palavra “cidade” que as puramente semânticas. Cidade e cidadania são aparentadas por motivos essencialmente políticos, derivados da história da sociedade brasileira, em especial deste século. (COIMBRA, Marcos A. E. L. S. Cidade, Cidadania e Políticas Públicas. In: SOUZA, A. de. Qualidade da Vida Urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 1984, p. 96.)

O sentimento de responsabilidade administrativa e o da solidariedade social são derrotados diariamente pela força viva e incessantemente renovada do interesse privado. (...) Mas, do próprio excesso do mal surge, às vezes, o bem; e a imensa desordem material e moral da cidade moderna terá talvez como resultado fazer surgir enfim o estatuto da cidade, que, apoiado em uma forte responsabilidade administrativa, instaurará as regras indispensáveis à proteção da saúde e da dignidade humana. (CARTA DE ATENAS. Cartas Patrimoniais. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1995, p. 66.)

O nosso Código Civil, ainda em vigor, que foi baixado para entrar em vigor em 01/01/1917, nada diz a respeito do fenômeno cidade. A palavra cidade não entra no Código Civil. (LAGÔA, Paulo Francisco Rocha. In: SECRETARIA MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GERAL, 1984, p. 131.)

[...] no momento, 70% da população brasileira já é urbana.Porém, 70% dessa população que já é ubana está morando em apenas 15 aglomerados de cidades. Isto nos traz a grande novidade, porque cidadão é morador da cidade. “Polis” é o lugar da política. Pode ser que estejamos na beirada de uma virada histórica nesse País, em que pela primeira vez a grande massa da população poderá, talvez, ser consciente dos seus direitos, isto é, ser cidadão. (FERREIRA DOS SANTOS, Carlos Nelson. In: SECRETARIA MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GERAL, 1984, p. 43-44.)

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
Parágrafo primeiro. O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
Parágrafo segundo. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.)

Art. 422. [...]
Parágrafo primeiro. As funções sociais da cidade compreendem o direito da população a moradia, transporte público, saneamento básico, água potável, serviços de limpeza urbana, drenagem das vias de circulação, energia elétrica, gás canalizado, abastecimento, iluminação pública, saúde, educação, cultura, creche, lazer, contenção de encostas, segurança e preservação, proteção e recuperação do patrimônio ambiental e cultural. (MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. Lei Orgânica.)

[...] no que concerne à terra urbana, os instrumentos jurídicos ainda são insuficientes para uma ocupação do solo urbano mais ordenada e equânime, assegurando para todos melhor qualidade de vida [....] não se tendo o domínio das conseqüências da sua aplicação com vistas à indústria da construção civil, às repercussões sobre a mão de obra, e à efetivação de uma política supridora do deficit estimado em 12 milhões de unidades habitacionais no país. (LIRA, Ricardo Pereira. Campo e Cidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Rio de Janeiro: Gráfica Riex Editora,1991, p. 66.)

[...] como a burguesia resolve, na prática, o problema habitacional. Os focos de epidemias, os porões mais imundos, nos quais, noite após noite, o modo de produção capitalista encerra os nossos trabalhadores, não são eliminados... são simplesmente deslocados! A mesma necessidade econômica os faz nascer, aqui ou acolá. E enquanto subsistir o modo de produção capitalista, será loucura desejar resolver o problema da habitação ou qualquer outro problema social relativo à sorte do operário. (ENGELS, Friedrich. A Burguesia e o Problema Habitacional. In: PAULO NETTO, José (org.) Política. São Paulo: Ática, p.138.)

Igualmente irrealizável é o preceptivo constitucional que padeça de excesso de ambição, colidindo com as possibilidades reais do Estado e da sociedade, ainda que aferidas por critério generoso. Assim, v.g., o art. 368 do Anteprojeto elaborado em 1986 pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, presidida pelo Professor Afonso Arinos de Melo Franco, segundo o qual “é garantido a todos o direito, para si e para sua família, de moradia digna e adequada, que lhes preserve a segurança, a intimidade pessoal e familiar. (BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2.ª edição, 1993, p. 5.)

[...] certos direitos abrem caminho, direitos que definem a civilização (na, porém freqüentemente contra a sociedade - pela, porém freqüentemente contra a “cultura”). Esses direitos mal reconhecidos tornam-se pouco a pouco costumeiros antes de se inscreverem nos códigos formalizados. Mudariam a realidade se entrassem para a prática social: direito ao trabalho, à instrução, à educação, à saúde, à habitação, aos lazeres, à vida. Entre esses direitos em formação figura o direito à cidade (não à cidade arcaica mas à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais, etc.) (LEFEBVRE, Henry. O Direito à Cidade. São Paulo: Moraes, 1991, p. 143.)

[...] hoje me preocupa, como questão relevante para os estudos de urbanização, o direito ao trabalho. De certo modo, o título destas minhas notas reflete uma trajetória profissional que coincide com a trajetória do Brasil e de boa parte da América Latina, do direito à cidade ao direito do trabalho. (SCHERER, Rebeca. Do Direito à Cidade ao Direito do Trabalho: uma revisão pessoal. Revista USP, São Paulo: Universidade de São Paulo, n. 5, 1990, p. 61.)

A década de 70 apresenta um outro momento  da modernidade no processo de metropolização latino-americana. A racionalidade, a ordem e o progresso haviam produzido enormes áreas periféricas onde o desejo da cidade se transforma agora no “Direito à Cidade”. (LEMOS, Amalia Inés Geraiges de. Metropolização e Modernidade. As Metrópoles da América Latina. In: SCARLATO, F. C. e outros. O Novo Mapa do Mundo: Globalização e Espaço Latino-Americano. São Paulo: Hucitec/ANPUR, p. 185.)

Pode-se mesmo observar que, conjugado ao direito ao saneamento, habitação e transporte, as políticas públicas em relação ao espaço urbano expressam agora a preocupação com uma novíssima reivindicação, o “direito à cidade”. Este direito seria, mais ou menos, o direito de todos os cidadãos ao gozo do espaço urbano como o duplo exercício da história e da estética. (HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Cidade ou Cidades? Revista do Patrimônio. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 23, 1994, p. 16.)

[...] s’il doit y avoir un “droit à la ville” dont la substance reste à préciser, il ne saurait se réduire à la question des types et répartitions des logements, mais qu’il lui incombe d’étendre son empire sur les multiples activités qui constituent l’être-citadin. Et parmi celles-ici, la fréquentation des jardins urbains, modalités de l’éstetique urbaine, n’est pas à revendiquer sa place. (MONEDIAIRE, Gérard. Droit et Politique des Jardins Urbains. Droit et Ville. Toulouse: L’Institut des Etudes Juridiques de l’Urbanisme et de la Construction, n. 35, 1993, p. 150.)

A l’heure où la majeure partie de la population est citadine, on conçoit aisément que la qualité de la ville soit un facteur déterminant de la qualité de la vie. Le droit à la ville pourrait n’être finalement que le droit à une ville de qualité. (COULET, William. Qualité de la Ville et Qualité de Vie. Droit et Ville. Toulouse: L’Institut des Etudes Juridiques de l’Urbanisme et de la Construction, n. 35, 1993, p. 103.)

Le droit à la ville serait le droit à n’être pas captif d’un ghetto, le droit à ce que les quartiers où vivent les plus démunis deviennent attractifs par la qualité - laquelle n’est pas proportionnée au coût des aménagements - de leur environnement. (MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Rapport de Synthèse. Droit e Ville. Toulouse: L’Institut des Etudes Juridiques de l’Urbanisme et de la Construction, n. 35, 1993, p. 180.)

O que se vê, portanto, é que o ser humano tem direito a uma vida digna, na cidade ou no campo, onde possa dispor de segurança e saúde, ter uma moradia decente, um trabalho lícito, conforto, lazer, educação e cultura e um meio ambiente que respeite às condições de seu organismo. Isso implica dizer que o Município, ao organizar a cidade, deve levar em conta todos esses fatores, que, isoladamente e por força do próprio regime federativo que lhe atribui essa competência, não podem ser alcançados senão em cooperação com os demais Municípios, Estados-membros e a própria União.
Em outras palavras, o direito à vida digna antecede o direito à cidade. (SOUTO, Marcos Juruena Villela. Parecer n.º 14/90. Revista de Direito da Procuradoria Geral. Rio de Janeiro: Estado do Rio de Janeiro, n. 44, 1992, p. 301.)

Embora a elaboração teórica deva ser remetida a advogados que publicaram trabalhos de direito civil, trabalhista e penal sob tal denominação, permito-me incluir dentro da rubrica "direito insurgente" outras contribuições, dedicadas ao espaço urbano. Em comum, elas aceitam a idéia de que a cidade tem uma função social, de  que toda a população urbana tem direito à cidade e de que o direito de construir deve ser concessão do poder público municipal, separado do direito de propriedade. (CARVALHO, Eduardo Guimarães de.Cidadania em Horário Integral. In FASE - Instituto Apoio Jurídico Popular. Discutindo a Assessoria Popular - II. Rio de Janeiro: AJUP e FASE,1992, p. 36.)

Une ville ne se decrète pas. (OLIVIE, Jacques. L’Incidence de L.O.V. sur la Valeur des Biens Immobiliers. Droit et Ville. Toulouse: L’Institut des Etudes Juridiques de l’Urbanisme et de la Construction, n. 35, 1993, p. 99.)

la ciudad con la que hablo cuando no hablo con nadie y que ahora me dicta estas palabras insomnes
Octavio Paz - Hablo de la Ciudad.







2 comentários:

  1. Achei genial a ideia para o fim do trabalho, sinceramente.

    PS: AGORA entendi um comentário desgostoso que fizeste em relação ao Barroso dia desses...

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  2. Muito obrigado, Gabriel, mas na defesa tive que explicar (menos para o meu orientador, claro) a ideia de que tentava imitar a pluralidade de vozes da cidade nesse final. Foi muito inusitado para os professores.
    Em relação a esse novíssimo Ministro com ideias não tão novas assim, quando e se eu tiver tempo e vontade, ou se o momento compelir-me a tanto, escreverei explicando o tal desgosto.

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