O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXII: O lançamento de "Índio é nós" e os milhares de mortos pela ditadura

Escrevo mais uma nota para a IX Blogagem Coletiva DesarquivandoBR, que durará até 6 de abril.

É necessário dizer novamente: as maiores vítimas da ditadura militar foram os índios. Milhares de mortos na Amazônia, muitas outras vítimas pelo Brasil, a implantação de campos de trabalho forçado (vejam a matéria da Agência Pública), usurpação de terras, estupro, tortura, a militarização da Funai... No campo e na floresta, a violência do Estado brasileiro foi muito maior. E não começou em 1964, claro - o genocídio indígena iniciou-se nos tempos coloniais. No tocante ao campo, a recente pesquisa sobre os quase mil e duzentos camponeses mortos, publicada em 2013 pela Secretaria de Direitos Humanos aponta vítimas da repressão política desde 1961, que estão dentro do alcance legal para indenizações. Ela pode ser lida nesta ligação.
É impressionante que ainda se repita que a ditadura brasileira matou aproximadamente quinhentas pessoas. E ouvimos esse número brutalmente subestimado mesmo de pessoas que trabalham com a justiça de transição, o que mostra como estamos atrasados em relação ao direito à memória e à verdade. Em relação à floresta, estima-se o montante de oito mil índios mortos somente em razão dos projetos desenvolvimentistas na Amazônia, como bem lembra o jornalista Leão Serva.
Também impressiona que se repita que as Comissões da Verdade não estão trazendo nada de novo. Alguns historiadores do passado recente, que deveriam estar acompanhando mais de perto a questão, não perceberam que terão que rever seus livros. Na Comissão Nacional da Verdade, Maria Rita Kehl é responsável pela investigação dos crimes cometidos contra esses povos. Ela voltou recentemente do Paraná, onde também houve genocídio. Leiam esta matéria de Tadeu Breda para a Rede Brasil Atual, "Nos 50 anos do golpe, CNV ouve relatos sobre 'êxodo guarani' no Paraná". Um dos testemunhos é do índio Casemiro Pereira:
Casemiro contou à CNV que se deu de maneira violenta a expulsão dos guarani que viviam nas áreas prestes a serem tomadas pelas águas da barragem, nos anos 1980. "Tinha muito guarani, mas queimaram casa. Incra fez isso. Trouxe militar e expulsou e matou gente lá", relatou, explicando que, antes de a represa tomar conta de tudo, a aldeia se chamava Jakutinga e tomava um amplo pedaço de terra à beira rio. "Não sei quanta gente morreu, mas foi mais da metade. Alguns fugiram para o Paraguai."
Por conta da necessidade de desarquivar esse passado, ainda tão presente na opressão aos índios, a campanha Índio é nós, (a mobilização nacional, neste abril de 2014, em prol dos direitos e terras indígenas no Brasil) preocupou-se com a questão da justiça de transição. Em seu lançamento paulista, neste dia cinco de abril, na Casa do Povo, trará Maria Rita Kehl e Marcelo Zelic, pesquisador que encontrou o Relatório Figueiredo. Esse relatório documentou os crimes contra os povos indígenas no Brasil cometidos na época e pelo SPI, o Serviço de Proteção ao Índio.
David Martim, índio Guarani da Terra Indígena Jaraguá, falará do problema de demarcação dessa TI e também da Tenondé Porã, na Grande São Paulo, que dependem apenas da assinatura do Ministro da Justiça. Índio é nós está apoiando a petição dos Guarani, que eu também assinei, para que o Ministro não tarde mais ainda em cumprir seus deveres constitucionais.

Ademais, o lançamento contará com as antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Artionka Capiberibe, a demógrafa e ex-presidente da Funai Marta Azevedo, com as apresentações artísticas de Marlui Miranda e da Cia Oito Nova de Dança. Também ocorrerá o lançamento nacional do novo número da Revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, editada por Afonso Henriques Neto, que apresenta um especial, organizado por Sergio Cohn (que estará no evento), sobre poesia ameríndia.
No lançamento, se divulgará também a petição Índio é nós (já aberta para assinaturas nesta ligação) pela demarcação das terras dos índios (atrasadíssima, deveria ter sido concluída em 1993, segundo a Constituição da República) e respeito ao direito de consulta previsto na Convenção 169 da OIT, sistematicamente desrespeitado nos empreendimentos que se pretendem realizar em áreas que afetam os povos indígenas.
Escrevi um pequeno texto para a revista Baderna sobre a campanha:
A campanha trata dos genocídios de ontem e de hoje, que estão relacionados, como se pode perceber nos projetos de intervenção na Amazônia (Belo Monte é um exemplo) concebidos pela ditadura militar que estão sendo implementados hoje. Por conseguinte, ela envolve também a justiça de transição, isto é, a democratização da sociedade e a punição dos perpetradores de abusos contra os direitos humanos após o fim de um regime autoritário. A falta dessa justiça no Brasil evidencia-se tanto na impunidade escandalosa dos assassinos e torturadores da ditadura militar, bem como de seus financiadores, quanto na continuidade dos abusos cometidos contra os povos indígenas, à revelia dos direitos duramente conquistados, mas que permanecem em plano formal, e com o apoio de forças semelhantes às que promoveram o golpe de 1964, mas agora com a ajuda da esquerda que chegou ao poder. Como bem sintetizou Eduardo Viveiros de Castro, foi preciso a esquerda chegar ao poder “para realizar o projeto da direita”, o que certamente mostra os limites políticos e ideológicos dessa esquerda em particular.
Portanto, mesmo levando em consideração que a opressão data da colonização, é como se o golpe de 1964, para os povos indígenas, não tivesse terminado ainda.
Também por essa razão, esta campanha visa contribuir para a democratização do Estado brasileiro e, por isso, a todos interessa: índio é nós.
Nele, recordo que outra das continuidades da ditadura empregada contra os povos indígenas é o instituto processual da suspensão de segurança, que permite que razões inspiradas na segurança nacional. O Estado brasileiro foi recentemente denunciado na OEA, por índios e organizações não governamentais (como a Terra de Direitos e a Justiça Global) em razão dessa conduta autoritária.
Tanto pior para os que acham que não se deve falar no que "resta da ditadura", questão que abordei em outra nota. O silêncio sobre esses assuntos também é algo que resta da ditadura...






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