O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 20 de abril de 2014

La Plata Spoon River: Poesia para os mortos que o governo tentou calar

Organizada pelo poeta e jurista Julián Axat, a coletânea La Plata Spoon River compõe-se de poemas originalmente escritos para este projeto: representar poeticamente cada um dos mortos na inundação que ocorreu em 2013 na cidade argentina de La Plata.
O título, claro, se inspira no livro do poeta estadunidense Edgar Lee Masters, Spoon River Anthology, de que há uma bela antologia publicada em português pela Relógio d'Água, traduzida pelo poeta português José Miguel Silva. O livro é composto de epitáfios, na própria voz dos mortos, que constroem a vida de uma cidade imaginária nos EUA.
Em 2013, houve uma grande inundação em La Plata. Vários morreram. Um juiz e um defensor judicial (o próprio Axat) decidiram investigar o real número de mortos, curiosamente subestimado pelo governo local...
Contra esse esforço pela verdade e pelas famílias dos mortos, o governo reagiu e tentou até mesmo o impedimento de Axat. Sendo ele quem é, jurista, poeta e editor, e genial nos três campos, decidiu reagir também no plano poético. E criou este livro, para que convidou vários autores, não só da Argentina, com a tarefa de escrever sobre as vítimas do alagamento, que o governo de La Plata, incapaz de prevenir o desastre, tentou silenciar.
Leiam esta entrevista em que Julián Axat explica a origem do livro e sua concepção de poesia política:
La inquietud primero fue meramente judicial y activista. Yo abrí la causa. Interpuse la acción ante la justicia, un habeas data para que se averigüe quienes eran las personas que estaban desaparecidas, fallecidas o en ese momento se desconocía su paradero. Paralelo a la causa judicial, siguiendo mis inquietudes artísticas-literarias, se me ocurrió un proyecto distinto. Yo trabajé casi medio mes con la causa y después el poder político me sacó. Impedido de seguir con la cuestión judicial avancé con la pesquisa literaria. Había pensado en armar un antología como Masters, escribiendo las voces de las víctimas que iba encontrando. En mi propia investigación judicial, al día 5 de abril cuando se dio la nómina, ya había encontrado que existían diez casos que no estaban incluidos. Le hice saber al poder ejecutivo que estaban omitiendo personas. Como respuesta me dicen que dejara de buscar debajo de la alfombra .

Nestes vídeos, podemos ver o lançamento do livro, e a grande multidão que prestigiou o evento: http://coleccionlosdetectivessalvajes.blogspot.com.br/2014/04/cuando-un-libro-de-poemas-es-mas-que-un.html
Na apresentação, Axat explica como a obra foi concebida e realizada, e afirma, sobre a poesia hoje, que "tiendo a creer que gran parte de la poesía que se escribe en este momento ha perdido su potencia disruptiva, por ausencia de una verdadera propuesta o relato interpelativo que la contenga."
A maioria dos autores é argentina, mas há exceções. A vítima que me coube nesse livro foi uma senhora, Dora Romero, que se afogou enquanto seu cão sobreviveu: ele conseguiu subir na mobília e salvar-se, ela não.
Eis o original. Não tentei escrever em primeira pessoa; quis elaborar um texto curto. O poema foi traduzido para o espanhol para a coletânea pelo poeta argentino Anibal Cristobo, que já havia traduzido para essa língua meu livro Cálcio.

Dora Romero

Um cão, uma mulher
e as águas. Só um deles
gritaria as marés,
terra calada. Cão,
mulher e águas. Um deles
seria o mais profundo
fugindo à superfície
da vida autorizada.
Águas e cão, mulher
sob os móveis a ver
toda a casa um rio
que o negro mordia.
Ouvir quem mergulhou
e fala do naufrágio
onde o poder navega.
Ouvir quem naufragou
quando a cidade e as ondas
latiram confundidas.
Ouvir quem se calou
submerso e na justiça
conheceu o deserto.

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