Além disso, ele também participou da criação do Conselho Indigenista Missionário em 1972. Tendo em vista o caráter anticamponês e anti-indígena da ditadura militar, sua atuação o colocou em oposição ao regime.
Quero me referir apenas à questão do genocídio dos índios; como Maria Rita Kehl bem explicou no lançamento da campanha Índio é nós (http://www.indio-eh-nos.eco.br/2014/05/03/os-videos-do-lancamento-paulista-de-indio-e-nos/), a ditadura militar feriu gravemente os direitos não só de quem se opôs a ela, mas também de quem simplesmente estava em seu caminho. Os índios estavam no caminho dos projetos desenvolvimentistas e foram tratados pelos militares como obstáculo a ser eliminado.
A militarização da Funai fez dessa entidade, nesse período, em que foi criada em substituição ao SPI, (o Serviço de Proteção ao Índio, órgão que havia se tornado um instrumento do genocídio indígena no Brasil) mais um órgão de repressão. Sabe-se disso há tanto, mas se esquece sempre. Shelton Davis, em seu Vítimas do milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil (a Zahar o publicou em 1978, traduzido por Jorge Alexandre Faure Pontual), tratou especificamente desse desvio de rota da entidade:
O Governo brasileiro, em outras palavras, poderia ter intervindo para proteger essas áreas indígenas contra intromissões externas [...]É triste que esse livro não esteja mais em catálogo: massacres, o Relatório Figueiredo, o uso de dinamite contra tribos, o conluio do governo militar com as multinacionais, prisões para indígenas, está tudo lá.
Durante um breve período em 1968, parecia que esta seria a política da FUNAI. Em 1970, porém, novas diretrizes de natureza integracionista e desenvolvimentista começaram a dominar a política indigenista brasileira, e várias tribos, e várias tribos, tais como os Parakanân e os Kréen-Akaróre, foram expulsas e destruídas.
Entre 1970 e 1974, a política indigenista brasileira tornou-se cada vez mais comprometida com a política global de desenvolvimento econômico do regime militar brasileiro. Durante esse período, a Fundação Nacional do Índio passou a ser a principal cúmplice nos processos de etnocídio desencadeados contra as tribos da Bacia Amazônica.
A atuação de membros da Igreja Católica como Dom Pedro Casaldáliga (outro nome do clero progressista) e Dom Tomás Balduíno não podia deixar de ser mal vista pela ditadura. Quero lembrar aqui somente de poucos exemplos. Neste Sumário Informativo sobre Comunismo Internacional do Serviço Nacional de Informações (SNI), um documento reservado, aparece Dom Tomás Balduino, em reprodução de reportagem do Jornal do Brasil de 14 de fevereiro de 1973.
Ele criticava a política indigenista do governo Médici, pois ela significava, na prática, o fim das formas de viver indígenas:
Tenho viajado por todo este Brasil e tenho presenciado fatos entristecedores com relação à política indigenista que a FUNAI diz desenvolver e defender. Com a implantação de frentes pioneiras e a abertura de novas estradas na Amazônia, o índio vai-se transformando, virtualmente, num pobre diabo, num marginal, que vai ter que acabar pedindo esmolas, na própria casa, para poder sobreviver.
Na mesma reportagem, Dom Tomás Balduíno conta sua visita a presos políticos, aos freis dominicanos e a não religiosos como Maurice Politi. Este documento pode ser lido no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
Um outro documento: no Arquivo Público Mineiro (APM), pode-se encontrar a Informação n. 334/74-COSEG, da Coordenação-Geral de Segurança da Secretaria de Segurança Pública de MG. Balduíno viajava pelo Brasil para tratar da política indigenista. No "ciclo de debates nacionais", promovido pelo DCE da UFMG, Dom Tomás Balduino falou em 14 de junho de 1974.
Segundo o relatório de espionagem, além das críticas às ideias de "integração" do índio e à Transamazônica, o religioso teria feito esta denúncia:
Em torno do nosso primitivo habitante D. Tomás mais se preocupou, detendo-se maior tempo, especificando minuciosamente no campo da sociologia. Supervalorizou o nosso índio, exemplificando que alguns caciques, dotados de notáveis inteligências, superam muitos de nossos Estadistas. Que nossos indígenas, em grande número, estão sendo massacrados, subjugados por civilizados inescrupulosos. Citou, D. Tomás, como exemplo, que um funcionário da FUNAI, com a intenção de apoderar-se de terras pertencendo aos índios, cevou-os com açúcar durante um mês e depois colocou "arsênico", matando a todos.
Não é à toa que eram encontrados agentes da repressão política na Funai militarizada. Há pouco, a antropóloga Lúcia Hussak Van Velthem, que pertencia à União da Juventude Patriótica (UJP), braço estudantil do PCdoB, contou à Comissão Nacional da Verdade que foi presa e torturada em 1972. Anos depois, recebeu um telefonema:
Depois de solta, ela conta que ficou no Rio, sob vigilância, durante 6 meses e, em 1973, mudou-se para Belém. Nos anos 80, trabalhando no Museu Goeldi, recebeu o telefonema de um ex-agente da repressão: “Joana, como vai você?”, disse o ex-agente que, àquela altura, servia na Funai. Joana era o codinome de Lúcia, informação conhecida apenas por companheiros da UJP e pelos ex-agentes.Aqui pode ser lida a notícia, de 7 de maio: http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/482-antropologa-entrega-a-cnv-depoimento-sobre-prisao-no-doi-codi-do-rio
A Comissão Pastoral da Terra, com sua defesa dos camponeses, também era um problema para a ditadura militar. Ela foi considerada, pelos órgãos da repressão, como difusora de teses marxistas. Vejam o início desta Informação confidencial da Aeronáutica (disponível no APESP) de 1977: "O Relatório do 2o. Encontro da Comissão Pastoral da Terra/MT contém, em essência, desenvolvimento de teses marxistas sobre a propriedade, como pode ser observado nos seguintes tópicos".
Não à toa, religiosos católicos estrangeiros foram expulsos do Brasil nesse período em razão de sua defesa dos direitos humanos no interior do país.
O problema prosseguiu durante o governo Figueiredo. Em 1981, um episódio anedótico: o coronel Barbosa Lima invadiu a missa Terra sem Males, inspirada no livro de Dom Pedro Casaldáliga (por sua vez, inspirado nos mitos indígenas), organizado pelo CIMI em Cuiabá: "Não admito que a Igreja critique o Presidente Figueiredo e a Funai." Trata-se de recorte do Jornal da Tarde, feito pelo DEOPS/SP, e guardado no APESP.
Nos acervos que pesquisei, embora nunca tivesse me detido na figura deste religioso, pude ver diversos documentos em que agentes seguem e anotam as falas e rastros de Dom Tomás de Balduíno. Não pesquisei arquivos do Centro-Oeste; neles, imagino que o material seja imenso. Para terminar esta nota, faço referência a mais um, de São Paulo (no APESP). Em um "Ciclo de Debates sobre a Questão Indígena" na Federação Universitária Linense (em Lins, claro), um dos participantes foi Dom Tomás Balduíno.
O relatório, de 7 de maio de 1979, não é muito circunstanciado e traz apenas uma descrição genérica das falas dos oradores:
Os oradores fizeram severas críticas à FUNAI, taxando-a de incompetente e incapaz para solucionar os problemas dos índios. Mencionaram as construções de usinas hidrelétricas, barragens, estradas e as vendas de grandes glebas de terras, pelo Governo Federal, como meio de afugentar os índios de seus legítimos territórios, abandonando-os em seguida completamente desamparados. Opinaram, com veemência, por uma urgente demarcação dos territórios ocupados pelos índios, dando-se-lhes a segurança necessária e prevista em lei.
Os problemas não foram resolvidos até hoje! O Estatuto do Índio, de 1973, previa a demarcação das terras indígenas em cinco anos; eles passaram. A Constituição de 1988 renovou esse compromisso. A perfídia oficial não está apenas em não fazer, mas também no que se faz, as barragens, as usinas, e no que se deixa fazer: a violência e as invasões do agrobanditismo contra os povos indígenas.
Para ratificar essa mistura malfazeja de omissões com leniência e agressões, parlamentares entram em campanha de incitação de ódio contra esses povos: http://www.indio-eh-nos.eco.br/2014/04/01/indio-e-nos-na-revista-baderna/
As lutas de Dom Tomás Balduíno mantêm, pois, sua atualidade, pois também a reforma agrária foi praticamente paralisada neste atual governo.
Termino lembrando do Bispo Erwin Kräutler, presidente do CIMI, que precisa andar escoltado neste país do agrobanditismo, nesta entrevista dada a Eliane Brum, publicada pela revista Época:
Para mim, desenvolvimento é dar à população a possibilidade de viver com dignidade. Ou seja: vamos aplicar em saúde, em educação, em transporte, em habitação, em saneamento básico e em segurança. Mas, aqui, desenvolvimento é fazer dinheiro, é garantir energia para as grandes multinacionais e exportar matérias-primas. Vai beneficiar a quem esse desenvolvimento? O pessoal ainda não acordou. E esses grupos, a favor de Belo Monte e dos grandes projetos para a Amazônia, disseminam a falsa ideia de que a gente é contra o desenvolvimento, contra o progresso. Mas nós sempre lutamos pela saúde nessa cidade, pela educação, pelo saneamento básico. Esse desenvolvimento que pregam é para uns poucos, não é para o povo.Veja-se a identidade dessas reivindicações com a dos grupos e Comitês Populares da Copa ("sem educação não vai ter copa"), que enfrentam as remoções forçadas e os megaempreendimentos. Essas lutas estão nas cidades também, e espero que cresçam.
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