O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXIV: Zé Celso, o RoboGolpe, a RoboCopa

Em abril, mês dos cinquenta anos do golpe de 1964, houve diversos eventos e atos sobre a efeméride. Vi apenas dois que me pareceram lamentáveis: o primeiro, palestra de um professor de filosofia de uma faculdade do interior de São Paulo que achava que Ministros do STF haviam sido cassados em 1964, que não sabia quando havia ocorrido o AI-5, e que pensava que na República de Platão tínhamos um grande modelo da nossa democracia.
Vi um Ministro do STF, Toffoli, em uma hora e quarenta minutos, gastar menos de cinco minutos com o tema da palestra e do seminário em que ela ocorria, que era o da ditadura militar, para explicar que não poderia julgar (tendo em vista a ética da magistratura!) se havia ocorrido um golpe ou uma "revolução" (tal é sua concepção de trabalho intelectual: uma função do poder político!), e que não abordaria o período porque certamente no seminário já se havia muito ouvido a respeito...
Pude assistir, no entanto, a eventos bem interessantes, o que mostra que ocorre de fato uma construção social da justiça de transição. Em termos artísticos, o que presenciei de mais impressionante, de longe, foi a peça Walmor y Cacilda 64 - O RoboGolpe, de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, no Teatro Oficina. O espetáculo tem pouco mais de duas horas e meia (curto para os padrões do Oficina) e ficará em cartaz até 29 de junho: http://www.teatroficina.com.br/menus/45/posts/791
Várias apresentações estão disponíveis no canal da companhia. No entanto, nada se compara a experimentar o Oficina ao vivo dentro do seu próprio teatro, dançar e cantar com os artistas, e participar da celebração final. 
A peça, depois da recepção do público com música indígena (o que faz todo sentido nessa abordagem antropofágica da história brasileira, e aponta para o final da peça), inicia-se com os últimos dias de Getúlio Vargas. A tradicional família brasileira aparece, bem como o embaixador dos EUA, a FIESP e outros agentes do golpe, na conspiração contra João Goulart. Temos um desfile carnavalesco-antropofágico da história brasileira, até que irrompe o RoboGolpe, simultaneamente engraçado e terrível.
A apresentação, como ocorre no Oficina, inclui música, vídeo, poesia e dança, bem como diversas alusões ao teatro, especialmente Tennessee Williams (a iguana desse autor é personificada na peça) e, em razão do monólogo final de A Tempestade, Shakespeare. Zé Celso, no poema primal que apresenta perto do fim da peça, recusa a renúncia da magia, feita pelo personagem da última peça de Shakespeare, e decide unir Próspero a Eros.

A peça não tem como foco o Teatro Oficina dos anos 1960, embora ele (parte essencial da história do teatro brasileiro) seja nela referido; como se sabe, foi um dos grupos mais perseguidos pela ditadura militar, e Zé Celso teve que sair do Brasil. O centro é, novamente, Cacilda Becker (interpretada por Sylvia Prado), desta vez na sua forte atuação de resistência contra a ditadura que se iniciava.
A cena fulcral da peça é a ida da atriz com sua colega Maria Della Costa (por Juliane Elting) ao DOPS, comandado pelo Delegado Bonchristiano (há nomes que são destino - vejam esta entrevista que o torturador deu para a Agência Pública; interpreta-o Acauã Sol), para prestar declarações, pois Cleyde Iáconis (personagem de Letícia Coura) estava lá presa.
Essa militância teatral contra a repressão política, que se dirigia contra as ideias, os livros, as peças - era tipificada oficialmente como parte do que se convencionou chamar, na doutrina de segurança nacional, de guerra psicológica, isto é, de ações contra a ideologia e os valores do regime político.
Pode-se notar que o arrazoado autoritário não mudou tanto assim, da ditadura para cá. A Federação Anarquista Gaúcha, em 2013, foi invadida pela polícia e teve livros apreendidos. Há pouco, ativistas foram presos em Goiânia, numa antecipação do que se prepara para a Copa; eles tinham panfletos contra a Copa, o que comprovaria o que o juiz Oscar de Oliveira Sá Neto escreveu sobre "poder e ascensão intelectual dos incitadores de práticas criminosas sobre os participantes de movimentos de reivindicação, ou seja, a hierarquia dos autores intelectuais". A criminalização dos movimentos sociais passa, em geral, pela criminalização da inteligência.
Essa criminalização atinge a arte, mais diretamente a arte com propósitos críticos ou emancipatórios, o que sempre foi o caso do Teatro Oficina. Nessa outra época de perseguição aos movimentos sociais, a da ditadura militar, lembro de uma das prisões de Zé Celso, em 1974.
Ele estava trabalhando para finalizar o filme O Rei da Vela, a partir da peça de Oswald de Andrade, que ele havia montado pioneiramente em 1967. Essa prisão interrompeu os trabalhos e ele acabou indo para Portugal e ficou do país, executando vários projetos (inclusive um filme sobre a independência de Moçambique para a RTP, que tenho curiosidade de ver) até 1978.
O curioso e sucinto "relatório" assinado pelo delegado Magnotti em primeiro de julho de 1974, nos autos do inquérito contra o diretor de teatro e dramaturgo, a autoridade coatora é bem clara sobre a arbitrariedade cometida.  Mantenho os erros de concordância e de pontuação do original:
A prisão do indiciado ocorreu em virtude de ter sido encontrado em sua residência, livros que fazem apologia do comunismo, livros esse estrangeiros e que deram entrada no país através do próprio indiciado.

Essa prisão de 1974 foi logo noticiada, o que gerou clamor que ultrapassou a chamada "classe teatral" e causou a irritação das autoridades policiais, que preferiam trabalhar na obscuridade, ambiente mais propício para a ilegalidade.
Veja-se, no documento ao lado, a insatisfação daquele mesmo delegado com a notícia da prisão. A publicidade sempre atrapalhava as práticas ilegais e oficializadas de tortura e desaparecimentos forçados, ou seja, o que é caracterizado no eufemismo "os serviços de investigação de interesse da segurança nacional".
Voltando à peça, sem nunca ter saído de seu assunto, destaco a total pertinência em RoboGolpe de representar carnavalescamente o golpe por uma máquina policial. O governo do Estado do Rio de Janeiro, assumindo o  seu ridículo autoritário, de fato robocopizou sua polícia: https://twitter.com/elizondogabriel/status/468807263940255744
Essa é a RoboCopa, marca dos dias de hoje, em que até palavras cotidianas da língua viraram propriedade intelectual da FIFA.
No passado recente, na época do RoboGolpe, a cultura era uma das matérias preferidas da polícia. Na peça, temos um antológico confronto dos personagens de Cacilda Becker e Maria Della Costa com o delegado, no fim do qual elas obtêm a abertura dos teatros.
Mateus Araújo, em crítica da peça, destaca que ela faz referência aos protestos contra a Copa do Mundo. Com efeito, Zé Celso sempre dialoga com as questões do presente. Se ele fosse voltar a Hamlet hoje, certamente a Copa estaria entre as coisas podres do reino da Dinamarca. Por vezes, os paralelos são gritantes, na medida em que as forças reacionárias de hoje evocam o passado ditatorial. Vejam o que o Oficina faz com as Marchas da Família (as de ontem e as de hoje) e suas músicas a partir dos 58 minutos: https://www.youtube.com/watch?v=kqJHVXqJurE


Zé Celso não escreveu uma peça sobre sua própria trajetória nesses anos, e não sei se isso lhe interessa. Se o fizesse, estaria cheia de momentos robogólpicos. Em 1978, Zé Celso voltou ao Brasil e teve que retornar ao DOPS/SP para que esclarecesse o que havia feito no exterior.
Entre outras informações, queriam saber com que artistas mantivera contato no estrangeiro, e lhe perguntaram se eles faziam campanha contra o Brasil (novamente, a tal da guerra psicológica, que visaria atingir a imagem do país).
É curioso ver como as autoridades policiais, de fato, estavam completamente afastadas desses aspectos da cultura brasileira (que eles, não por acaso, reprimiam) e não foram capazes de escrever corretamente nem o nome de Augusto Boal.
A resposta de Zé Celso foi brilhante: "Não vi campanha contra o Brasil, esses artistas ao contrário à [sic] imagem mais linda que o Brasil pode mostrar."
Hoje, além do Teatro Oficina, os que estão criando uma bela imagem do Brasil, por meio de sua ação política, são pessoas como Sonia Guajajara, da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), na Mobilização Nacional Indígena. Em Brasília, ontem, essa Mobilização foi atacada, fazendo o Estado sujar ainda mais a imagem do nosso país. Vejam as fotos:

Montagem de Rugendas com foto de Lunaé Parracho: https://twitter.com/joaofellet/status/471719961275404288
No El País: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/05/28/politica/1401233708_863738.html
Na Servindi: http://servindi.org/actualidad/105914
Há mais! https://www.facebook.com/idelber.avelar/posts/10152253495382713

Zé Celso, sempre antenado com o presente, inclui os índios desde o início da peça. Para ele, e isso é explicitado no "poema primal" que lê perto do final da peça (levanta-se nesse momento; é impactante, pois estava em cadeira de rodas até então), o núcleo do golpe é o "direito absoluto de propriedade": em nome dele, e contra as reformas da base, foi dado o golpe, em nome dele os índios são espoliados de suas terras, e o próprio Oficina está sendo ameaçado (há décadas) pelo grupo de Silvio Santos.
Já no início da peça (no vídeo, depois dos 28 minutos), os atores declamaram "Sem reintegração de posse/ A terra é de Oxóssi". Contra os "assassinos da mata selvagem, nossa mãe geratriz".
Zé Celso, o Prosperos, movido pelo Eros do teatro, conduz a peça à celebração final: o público com os autores saem para abraçar o Oficina cantando a música que Surubim Feliciano da Paixão compôs para O Rei da Vela, "Tupi or not Tupi":  http://www.teatroficina.com.br/headlines/12. Ela pode ser ouvida na Rádio Oficina: http://www.teatroficina.com.br/radio_uzonas
Isso me tocou especialmente, tendo em vista a conjuntura, como os governos reforçaram as forças da especulação imobiliária com os grandes eventos esportivos; no 19 de abril deste ano, dia da passeata Índio é nós em São Paulo, o único grupo de teatro que participou foi exatamente o Oficina, e foi genial: os artistas animaram a caminhada com cantos antropofágicos e o "Tupi or not Tupi", que recebeu mais uma estrofe, escrita especialmente para a ocasião por Fabio Weintraub: "Que nós é índio/ na cidade ou na floresta/ que demarquem nossas terras/ é o que vamos exigir." Letícia Coura, com sua potente voz, tocou (com outros músicos do Oficina) e puxou o coro por quatro horas.
Na plataforma Índio é nós ainda não se escreveu um texto sobre esse dia, mas podemos ver que Zé Celso assistiu ao lançamento da campanha e ainda se pronunciou, inesperadamente, nela, a partir da fala de Maria Rita Kehl: http://www.indio-eh-nos.eco.br/2014/05/03/os-videos-do-lancamento-paulista-de-indio-e-nos/
No dia 19, a passeata terminou no Oficina, e nele se cantaram o Choros 10 de Villa-Lobos e a música de Surubim Feliciano da Paixão, abraçando a terra do Teatro Oficina, um tekoha do teatro e de São Paulo. Zé Celso revelou que tinha acabado de receber uma ação de reintegração de posse do Grupo Silvio Santos. Falei-lhe que os índios Guarani da Terra Indígena do Jaraguá também haviam, fazia poucos dias, sido citados por causa de uma ação do mesmo tipo.
Trata-se da questão oswaldiana da posse contra a propriedade, tão urgente mas tão pouco estudada nesses termos antropofágicos (Alexandre Nodari é uma exceção). Creio que a academia, ao menos no Direito (que é a que conheço melhor), não está à altura de espetáculos como este, que conseguem operar essas sínteses entre o passado e o presente, na relação entre o Golpe e a Copa, e de ações como da Mobilização Nacional Indígena com os sem-teto, ambos alvo da repressão robocópica:  http://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.com/2014/05/28/comite-popular-da-copa-e-mobilizacao-nacional-indigena-denunciam-violencia-policial/.

P.S.: RoboGolpe e RoboCopa, por alguma razão que me escapa, evocam-me a ideia de roubo... E não é que a filha e neta de nomes poderosos das forças RoboCópicas disse que o que havia para ser roubado já o foi? Vejo nisso mais uma confirmação do gênio de Zé Celso, uma das "antenas da raça", e também uma estratégia de despistamento feita por essas forças. A questão é mesmo a grande política, como Elaine Tavares escreveu: "a Copa é um assunto político. E o governo está fazendo política com a Copa, exatamente como os trabalhadores, os sem-teto, os indígenas. Todos estão a fazer política. Então, é preciso que a opinião pública saiba disso, e desde aí, do conhecimento, se posicione. O que não dá é para jogar um manto protetor sobre a Copa, como se fosse apenas uma linda e alegre festa popular, a qual alguns “malfeitores” estão querendo estragar." (http://eteia.blogspot.com.br/2014/05/a-copa-e-espaco-da-politica.html)

P.S. 2: Acabo de ver que foi publicado um vídeo de João Baptista Lago, filmado no Teatro Oficina no dia 19 de abril: https://www.youtube.com/watch?v=9MAnqDrIIpM

P.S. 3: O vídeo do grande sucesso #DesarquivandoBr e #NaoVaiTerCopa do Oficina, "Axé do Robocop (RoboGolpe RoboCopa)", pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_a75ZaOCSNM

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