Eu estava na ALESP quando o evento ocorreu, em 17 de setembro: depois de faltar em outras ocasiões, o reitor da USP, Marco Antonio Zago, finalmente apareceu em audiência da Comissão de Educação e Cultura da Assembleia Legislativa para falar sobre a situação da Universidade de São Paulo.
Este curto vídeo dá uma pálida ideia do que foi o discurso do reitor: https://www.youtube.com/watch?v=gWLsKO6LfM4
Diferentemente do que a reportagem afirma, o auditório não estava nada lotado no começo dos trabalhos; ele foi enchendo, provavelmente em razão das ausências do Magnífico, muitos devem ter achado que ele não apareceria, e só vieram depois da notícia da presença.
Esta matéria é melhor: http://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=359200
Porém, não o suficiente para sugerir o desastre da fala de Zago.
Tirei esta foto enquanto a mesa se formava. O deputado Adriano Diogo estava a sentar-se; da esquerda para a direita, vemos Beto Tricoli, Telma Souza, o reitor, Carlos Giannazi e Carlos Neder, que é o presidente da Comissão.
Desde agosto, vi duas audiências na ALESP em que o reitor faltou. Durante esse tempo, sua inabilíssima e ilegal condução da greve na USP (a mais longa da história, outro sinal do "sucesso" da atual gestão) levou à vitória judicial dos funcionários e dos professores.
Peguei uma das folhas impressas, cartazes simples contra a desvinculação dos hospitais universitários, uma das saídas aventadas pelo reitor. É significativo que Zago queira responder a crise da universidade
sucateando-a, isto é, aprofundando a crise, o que já virou piada na
internet com o tumblr "USP vende tudo": http://uspvendetudo.tumblr.com/
Zago ligou o computador e começou sua fala. Boa parte da plateia levantou cartazes (eu inclusive) um pouco depois de o reitor começar o seu discurso. Eram de três tipos: com a foto do reitor e faltando uma vírgula; um que exigia transparência nas contas; outro, contra a desvinculação dos hospitais universitários.
A exasperante inópia da fala do reitor marcava-se desde a estrutura do discurso: mais da metade do tempo foi consagrada a uma tediosa descrição da USP, com dados como número de unidades, de pesquisadores que forma, números e números.
Havia também listas, de institutos, professores e pesquisadores; no mesmo fôlego, foram pronunciados os nomes de Marilena Chaui e Antônio Delfim Netto (despertando risos na plateia), o que sugeria que o reitor não tinha muita noção daqueles a quem se referia.
Zago praticamente não tirava os olhos de seu computador; uma rara vez em que olhou a plateia (certamente devido à modéstia e ao pudor de ver seu retrato colorido nas mãos de tantos no público) ocorreu quando mencionou Fernando Henrique Cardoso. Vaias irromperam (certamente pela atuação como político, e não por sua obra), e ele argumentou que o antigo sociólogo havia ganhado um Nobel das Ciências Sociais. A resposta coadunou-se com o espírito da fala, que também listou prêmios e condecorações.
O desfile de números, prêmios e nomes deixou claro que a inteligência da USP estava sendo dirigida por um homem-planilha, e com más planilhas.
Essa primeira parte do discurso poderia ser usada em qualquer (má) fala do reitor, não importando em qual ocasião. Depois de assim evadir-se do assunto da audiência, no quarto final de sua fala, ousou uma (infeliz) pergunta retórica: "Há crise na USP?"
A maior parte da plateia gargalhou; Carlos Neder pediu silêncio, argumentando que Zago começava a explicar a situação da USP. Não o fez, porém: usou o clichê de recorrer aos ideogramas chineses e afirmou que a crise significava "oportunidade".
O homem-clichê, que é outra face do homem-planilha, afirmou em seguida que a USP gasta mais do que recebe, e que esperava ouvir sugestões de como lidar com isso. Fim.
Não pude ficar para ver como, nas horas seguintes (contaram-me depois, no entanto), os deputados e os representantes da Adusp desconstruíram o reitor, cuja inabilidade política e administrativa ficaram mais do que comprovadas nos poucos meses de gestão; a segunda inabilidade já foi por ele admitida a contragosto, por sinal, quando reconheceu o descontrole financeiro da gestão passada (o reitor Rodas), de que participou como pró-reitor de pesquisa.
Que tempos vive a USP, em razão de sua condução política, já há tempos. Não será esquecido Rodas, com suas construções inacabadas e escritórios em Cingapura e alhures, com a contaminação do solo da USP Leste (talvez com as terras insalubres do "templo de Salomão"!), com a proeza de ser considerado persona non grata na própria faculdade que havia dirigido, com seu rápido caminho do superávit ao déficit entre outras façanhas. Em homenagem a tão marcante gestão, ele foi escolhido para o conselho superior da Fapesp pelo governador. Afinal, trata-se de um homem confiável para o poder, um professor que chama o golpe de 1964 de "revolução"; lembre-se, na sua gestão, do monumento escondido e inaugurado secretamente em homenagem aos mortos e desaparecidos da USP.
(Nota: a reeleição da destruição da USP, da segurança, da água e de tanta coisa em São Paulo mostra que o renitente conservadorismo bandeirante cobra sua conta, e os paulistas, fiéis a esse conservadorismo, marcham retamente para o precipício que prepararam.)
Por que os grupos que comprometem a USP são os que a administram? Certamente a regulação tem um papel nisso. Renan Honório Quinalha, em fala na audiência que a Comissão da
Verdade do Estado de São Paulo promoveu sobre a USP, falou do estatuto
da instituição, sua origem na ditadura militar e seu caráter
concentrador de poder. Logo o vídeo estará disponível no canal da CEV "Rubens Paiva": https://www.youtube.com/user/comissaodaverdadesp
É sinal de grave atraso político que a
Universidade não se tenha desfeito desse legado da ditadura. Infelizmente, nesse atraso, ela reproduz o que acontece, mais amplamente, no país. Incluo nessa observação a ilegalidade da administração no tocante ao dever jurídico da transparência; o reitor tornou-se um garantidor da caixa preta das contas da administração, violando a Lei de Acesso à Informação, como conta Jorge Machado.
O desastre administrativo e político da USP, creio, faz com que ela sirva de forte argumento contra as estruturas oligárquicas: o
poder institucional, nessa instituição, é fortemente dominado pelos
professores titulares, e essa centralização não tem gerado escolhas excelentes, muito pelo contrário.
O discurso da competência tem legitimado administradores incompetentes
para o bem da comunidade (adequados, contudo, para as vozes que desejam privatizar a instituição) e, em verdade, fortalece os argumentos pela
democratização da universidade.
O estatuto, no entanto, não explica tudo. Ele é um instrumento para essas forças políticas conservadoras, publicamente apoiadas não importando o que façam e (privadamente) desfaçam. Já percebi que não escandaliza neste Estado a progressiva destruição da maior universidade da América Latina (e ainda há a Unesp e a Unicamp, tão importantes, e que sofrem os reflexos dessa crise), façanha que talvez se avizinhe do impressionante e envergonhado racionamento de água em região que era de Mata Atlântica.
Já não escandalizou, como afirmou Tales Ab'Saber, um "moleque sem lastro técnico dirigindo a Universidade de São Paulo, a Unicamp", o que ocorreu em gestão anterior do atual governador, do PSDB.
Afora a indiferença (quando não a hostilidade) que os assuntos da educação despertam usualmente no meio político, a USP tem que lutar com o despeito que ela desperta no campo do ensino superior em um país de analfabetos funcionais (incluindo universitários, claro), com o tratamento que ela tem sofrido pela grande imprensa em São Paulo (lembremos do erro grosseiro da Folha de S. Paulo em relação aos salários na instituição), e com uma administração, bem, que segue esse projeto do precipício.
Tudo isso faz com que a USP não tenha tantos defensores assim fora dela - e, no interior da instituição, há esses que a administram, e contra quem ela precisa ser apoiada.
A filósofa Martha Nussbaum escreveu um pequeno livro, Not for profit: why democracy needs the humanities (Princeton University Press, 2010), em que argumenta que o crescente desprestígio das humanidades nos EUA e na Europa prejudica a democracia, visto que propriedades como espírito crítico, conhecimento e abertura para outras culturas são necessárias para uma educação fomentadora dos valores democráticos, de cidadãos do mundo. É claro que homens-planilha e homens-clichê, que são os privilegiados pela ideologia da gestão, se beneficiariam do que ensinam as humanidades...
O livro não é melhor porque não pensa o que significa a "democracia" a que se refere (e as diferenças culturais envolvidas), tampouco questiona se o sistema político nos EUA é democrático e deixa de pesquisar as raízes políticas (no sistema pretensamente "democrático") desse desprestígio.
Outro problema é não estudar o problema no âmbito mais amplo de uma crise das universidades, que também precisa ser compreendida em suas raízes políticas, que variarão de acordo com cada local e cultura. Penso que essa observação vale também para a USP, em oposição aos discursos supostamente "técnicos" e "neutros" dos gestores, politicamente tão úteis para o poder institucional.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
sábado, 27 de setembro de 2014
domingo, 21 de setembro de 2014
Editais do SESC/DF: literatura e bem-estar, ou escritores e conformismo
Livros não são morais ou imorais, e sim bem ou mal escritos, afirmou Oscar Wilde no prefácio a O retrato de Dorian Gray. O próprio autor, lembre-se, foi abatido pela moral, que deixou marcas nos seus próprios textos (isto é, concessões para ser encenado ou publicado) e o matou.
A conflituosa relação entre a boa literatura e a moralidade apresenta vários casos exemplares: o processo e a condenação sofridos por Baudelaire em razão de As flores do mal; o processo de Allen Ginsberg por causa de Uivo (neste caso, o poeta venceu). Adaptando o dito de Gide, a qualidade da literatura não tem relação direta com a qualidade dos sentimentos que ela expressa.
Escrevi em 2012 uma nota neste blogue, "Poesia e bem-estar ou editais antidrummondianos entre sombras", em que explicava por que Carlos Drummond de Andrade não seria aceito como concorrente em um concurso do SESC/DF que, no entanto, abusivamente levava seu nome. O regulamento exigia que "As poesias devem conter elementos que promovam o bem-estar e os valores morais". Selecionei alguns exemplos, do primeiro livro, Alguma poesia, até o póstumo Farewell, que mostram que não eram exatamente essas as preocupações na melhor poesia de Drummond.
Por acaso, descobri que, em 2014, o concurso continua existindo e com a mesma cláusula moral: http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_carlos_drummond_2014.pdf
O mesmo se dá no concurso de contos Machado de Assis (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_machado_assis_2014.pdf), no de contos infantis Monteiro Lobato (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_monteiro_lobato_2014.pdf) e no de crônicas, que recebeu o nome de Rubem Braga: http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_rubem_braga_2014.pdf
No entanto, não há cláusulas semelhantes no concurso de pintura Cândido Portinari (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_candido_portinari.pdf); no de fotografia, Marc Ferrez: http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_marc_ferrez_2014.pdf; para o de música, Tom Jobim, tampouco (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/premio_sesc_tom_jobim_2014.pdf)
Em termos históricos, isso não faz sentido. Pintores, fotógrafos e músicos foram tão capazes de ofender a moral dominante e de incomodar o bem-estar dos conformistas quanto os escritores. Bem sabe disso aquela rede social que permite propagação de ódio racial e extermínio de pobres, mas proíbe imagens com A origem do mundo, de Courbet, ou as fotos de Mapplethorpe.
Não sei o que significa essa diferença. Alguém que desejasse pesquisar o assunto poderia verificar se se trata de um sinal de força da literatura, ainda capaz do incômodo e do dissenso, o que não ocorreria, por exemplo, no mundo progressivamente financeirizado das artes plásticas; ou na possível fraqueza dos escritores, que aceitam essas condições humilhantes para ganhar alguns trocados; tive notícias de, em redes sociais, escritores brasileiros contemporâneos advogando o conformismo porque, alegaram, não recebiam contracheques.
Não sei que tipo de literatura sai vencedora de tais certames de quem compete para agradar mais ao suposto senso moral existente. Uma crítica de cunho kantiano às morais do bem-estar apontaria que elas não podem pretender à universalidade, tendo em vista que são diversas as concepções de felicidade, que variam de acordo com as inclinações pessoais. Como a própria ideia de universalidade deve ser posta entre parênteses, creio que essa crítica deve servir para suscitar outra: em sociedades heterogêneas e complexas, critérios artísticos como os dos editais do SESC bem podem acarretar a busca de uma suposta média, a mediocridade na melhor das hipóteses e, na pior, a intolerância. Por exemplo, desclassificar Hilda Hilst e Angélica Freitas em nome de padrões conformistas de sexualidade, ou Augusto dos Anjos por incitação ao suicídio e mal-estar do Universal...
Para ficar na poesia, resolvi procurar poemas que tivessem ganhado prêmios do SESC. Todos os que encontrei são exercícios mais ou menos poéticos de grande conformismo também na linguagem. Linhas pré-pessoanas no estilo "Querido poeta, vou-lhe escrever uma cartinha", nostalgia meio amnésica à moda do vovô, poema como aluguel de frutas, lista aleatória com exercícios fonoaudiológicos. Alguns títulos, como "O bom e o mau", "Castigo" parecem aludir à preocupação moral. Se os poemas o fazem, verificará o leitor no futuro mais ou menos distante em que as coletâneas forem editadas.
O prêmio SESC de literatura, uma parceria com a editora Record, não possui essa cláusula. Porém não contempla a poesia.
Essa questão, o concurso do SESC/DF, tem alguma relevância, porém? Continuo achando que sim, e por dois motivos: o primeiro, bem externo ao edital, é que ele sinaliza de um encaretamento geral no Brasil, politicamente e juridicamente regressivo. Lembro que essa cláusula moral coexiste com um contexto eleitoreiro em que os candidatos parecem disputar quem será mais repressivo contra os movimentos sociais e os pobres - em nome da ordem!; quem será mais bem sucedido em tratar como cidadãos de segunda classe homossexuais e mulheres - em nome da família!; quem será mais racista contra índios e quilombolas - em nome do desenvolvimento...
Falo de regressão jurídica tendo em vista o quanto essa tendência ameaça os direitos humanos, inclusive a liberdade de expressão.
Esse encaretamento ocorre também na literatura e está ligado à institucionalização dos escritores (especialmente os prosadores). Vejam o que Ricardo Lísias declarou recentemente ao Sul21:
O que nos leva ao segundo motivo, que está na importância da própria instituição. É lamentável que o SESC seja reincidente na cláusula moral, tendo em vista seu forte papel entre as instituições de cultura no Brasil. A esse respeito, quero lembrar de recentíssima fala de Paulo Arantes sobre o "Capitalismo acadêmico", uma das atividades da última greve da USP. O filósofo argumenta que a universidade já está privatizada, em seus mecanismos de avaliação, no empreendedorismo, nos editais. E algo de semelhante ocorre nas políticas culturais:
Seria realmente possível fazer literatura sem trazer o mal-estar? Não a que me interessa ler, pelo menos. Escreveu Drummond em "A flor e a náusea": "meu ódio é o melhor de mim".
A conflituosa relação entre a boa literatura e a moralidade apresenta vários casos exemplares: o processo e a condenação sofridos por Baudelaire em razão de As flores do mal; o processo de Allen Ginsberg por causa de Uivo (neste caso, o poeta venceu). Adaptando o dito de Gide, a qualidade da literatura não tem relação direta com a qualidade dos sentimentos que ela expressa.
Escrevi em 2012 uma nota neste blogue, "Poesia e bem-estar ou editais antidrummondianos entre sombras", em que explicava por que Carlos Drummond de Andrade não seria aceito como concorrente em um concurso do SESC/DF que, no entanto, abusivamente levava seu nome. O regulamento exigia que "As poesias devem conter elementos que promovam o bem-estar e os valores morais". Selecionei alguns exemplos, do primeiro livro, Alguma poesia, até o póstumo Farewell, que mostram que não eram exatamente essas as preocupações na melhor poesia de Drummond.
Por acaso, descobri que, em 2014, o concurso continua existindo e com a mesma cláusula moral: http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_carlos_drummond_2014.pdf
O mesmo se dá no concurso de contos Machado de Assis (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_machado_assis_2014.pdf), no de contos infantis Monteiro Lobato (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_monteiro_lobato_2014.pdf) e no de crônicas, que recebeu o nome de Rubem Braga: http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_rubem_braga_2014.pdf
No entanto, não há cláusulas semelhantes no concurso de pintura Cândido Portinari (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_candido_portinari.pdf); no de fotografia, Marc Ferrez: http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_marc_ferrez_2014.pdf; para o de música, Tom Jobim, tampouco (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/premio_sesc_tom_jobim_2014.pdf)
Em termos históricos, isso não faz sentido. Pintores, fotógrafos e músicos foram tão capazes de ofender a moral dominante e de incomodar o bem-estar dos conformistas quanto os escritores. Bem sabe disso aquela rede social que permite propagação de ódio racial e extermínio de pobres, mas proíbe imagens com A origem do mundo, de Courbet, ou as fotos de Mapplethorpe.
Não sei o que significa essa diferença. Alguém que desejasse pesquisar o assunto poderia verificar se se trata de um sinal de força da literatura, ainda capaz do incômodo e do dissenso, o que não ocorreria, por exemplo, no mundo progressivamente financeirizado das artes plásticas; ou na possível fraqueza dos escritores, que aceitam essas condições humilhantes para ganhar alguns trocados; tive notícias de, em redes sociais, escritores brasileiros contemporâneos advogando o conformismo porque, alegaram, não recebiam contracheques.
Não sei que tipo de literatura sai vencedora de tais certames de quem compete para agradar mais ao suposto senso moral existente. Uma crítica de cunho kantiano às morais do bem-estar apontaria que elas não podem pretender à universalidade, tendo em vista que são diversas as concepções de felicidade, que variam de acordo com as inclinações pessoais. Como a própria ideia de universalidade deve ser posta entre parênteses, creio que essa crítica deve servir para suscitar outra: em sociedades heterogêneas e complexas, critérios artísticos como os dos editais do SESC bem podem acarretar a busca de uma suposta média, a mediocridade na melhor das hipóteses e, na pior, a intolerância. Por exemplo, desclassificar Hilda Hilst e Angélica Freitas em nome de padrões conformistas de sexualidade, ou Augusto dos Anjos por incitação ao suicídio e mal-estar do Universal...
Para ficar na poesia, resolvi procurar poemas que tivessem ganhado prêmios do SESC. Todos os que encontrei são exercícios mais ou menos poéticos de grande conformismo também na linguagem. Linhas pré-pessoanas no estilo "Querido poeta, vou-lhe escrever uma cartinha", nostalgia meio amnésica à moda do vovô, poema como aluguel de frutas, lista aleatória com exercícios fonoaudiológicos. Alguns títulos, como "O bom e o mau", "Castigo" parecem aludir à preocupação moral. Se os poemas o fazem, verificará o leitor no futuro mais ou menos distante em que as coletâneas forem editadas.
O prêmio SESC de literatura, uma parceria com a editora Record, não possui essa cláusula. Porém não contempla a poesia.
Essa questão, o concurso do SESC/DF, tem alguma relevância, porém? Continuo achando que sim, e por dois motivos: o primeiro, bem externo ao edital, é que ele sinaliza de um encaretamento geral no Brasil, politicamente e juridicamente regressivo. Lembro que essa cláusula moral coexiste com um contexto eleitoreiro em que os candidatos parecem disputar quem será mais repressivo contra os movimentos sociais e os pobres - em nome da ordem!; quem será mais bem sucedido em tratar como cidadãos de segunda classe homossexuais e mulheres - em nome da família!; quem será mais racista contra índios e quilombolas - em nome do desenvolvimento...
Falo de regressão jurídica tendo em vista o quanto essa tendência ameaça os direitos humanos, inclusive a liberdade de expressão.
Esse encaretamento ocorre também na literatura e está ligado à institucionalização dos escritores (especialmente os prosadores). Vejam o que Ricardo Lísias declarou recentemente ao Sul21:
As artes, no Brasil, estão crescendo muito e se profissionalizando. Então, os autores passaram a viver de eventos, de suas participações em eventos. Não há mal nenhum nisso. Porém, quando você se posiciona, acaba por decepcionar 50% e fecha mercado para si mesmo. Se você for convidado por uma Secretaria de Cultura do PSDB e se declara eleitor do PSOL, você deixará de ser convidado. Então, grandes autores brasileiros são hoje chapa branca. O mesmo vale para concursos literários.
O que nos leva ao segundo motivo, que está na importância da própria instituição. É lamentável que o SESC seja reincidente na cláusula moral, tendo em vista seu forte papel entre as instituições de cultura no Brasil. A esse respeito, quero lembrar de recentíssima fala de Paulo Arantes sobre o "Capitalismo acadêmico", uma das atividades da última greve da USP. O filósofo argumenta que a universidade já está privatizada, em seus mecanismos de avaliação, no empreendedorismo, nos editais. E algo de semelhante ocorre nas políticas culturais:
Política pública é a política de editais [...] A sua atividade social passa a ser produzir indicadores, pra dizer que você está conforme os termos do edital, para poder renovar o edital. Assim se reproduz a sociedade brasileira [risos]. Maior que o Ministério da Cultura é, por exemplo, o sistema SESC em São Paulo, mais que a Secretaria de Cultura, mais que o Ministério da Cultura em São Paulo [...] O SESC é o Ministério da Cultura de São Paulo [risos]. Funciona nessa base, totalmente privado, e ao mesmo tempo sendo público, [...] Ele funciona nessa base, abre o edital do SESC e pum! O sistema se reproduz, se fortalece, se legitima, e por aí vai.De fato, o SESC, em tais momentos, está a reproduzir certas estruturas de poder da sociedade brasileira que já deveriam ter sido derrubadas. Os escritores conformistas e institucionalizados ajudam na manutenção do sistema; essa é sua parte, talvez modesta mas presente, na ignomínia geral.
Seria realmente possível fazer literatura sem trazer o mal-estar? Não a que me interessa ler, pelo menos. Escreveu Drummond em "A flor e a náusea": "meu ódio é o melhor de mim".
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
Desarquivando o Brasil XCII: Sobre a Lei de Anistia e sua revisão
Escrevi algumas vezes sobre o
assunto. O problema da Lei de Anistia está ligado à interpretação elaborada
pela maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 153, em 2010,
proposta pelo Conselho Federal da OAB.
Às voltas com a evidente
incompatibilidade daquela lei com a atual Constituição, acabaram por realizar
um golpe branco, judiciário, e proclamar que a emenda constitucional n. 26 de
1985, feita para alterar a Constituição de 1967 e que trata da anistia aos
crimes políticos e “conexos” (expressão que não serve para abarcar os estupros,
torturas e desaparecimentos forçados), era superior à Constituição de 1988, servia-lhe
de limite material normativo.
Isto é, acabaram considerar que uma
alteração (manifestação do poder constituinte derivado) da Constituição
revogada da ditadura era superior à Constituição da democracia (produto do
poder constituinte originário, teoricamente superior ao derivado).
Nesse contexto, apesar das
várias exceções individuais de magistrados com valores democráticos, há
uma convergência do Judiciário com a tortura e a repressão política,
de ontem e de hoje. No tocante à tortura, verificou-se, no relatório de 2001
elaborado por Nigel Rodley, em nome da ONU, que os magistrados e o Ministério Público tendem a proteger os torturadores atuais.
Não é de crucial importância, creio, rever a lei. A revisão poderia se revelar inútil, visto que o problema não está exatamente nela, ou melhor, no seu texto, mas no Judiciário. Afinal, mesmo revista, ela poderia receber uma interpretação criativa que reprovaria qualquer aluno no terceiro semestre da faculdade de Direito e faria os torturadores serem juridicamente aprovados, até estimulados.
As virtudes democráticas da hermenêutica (em contraponto a certos filósofos que desejaram aposentá-la) manifestam-se em exemplos como esse: apenas por meio da arbitrariedade é possível beneficiar os assassinos e torturadores oficiais. Hermenêuticas da razoabilidade bastam para desmistificar tais decisões...
Não é de crucial importância, creio, rever a lei. A revisão poderia se revelar inútil, visto que o problema não está exatamente nela, ou melhor, no seu texto, mas no Judiciário. Afinal, mesmo revista, ela poderia receber uma interpretação criativa que reprovaria qualquer aluno no terceiro semestre da faculdade de Direito e faria os torturadores serem juridicamente aprovados, até estimulados.
As virtudes democráticas da hermenêutica (em contraponto a certos filósofos que desejaram aposentá-la) manifestam-se em exemplos como esse: apenas por meio da arbitrariedade é possível beneficiar os assassinos e torturadores oficiais. Hermenêuticas da razoabilidade bastam para desmistificar tais decisões...
Lembro das considerações de Fábio Konder Comparato, aqui na entrevista que deu ao número de outubro de 2010 da Caros Amigos:
O sistema de escolha dos Ministros, altamente permeado por compromissos políticos com o Executivo e o Legislativo, deveria ser mudado.
Será preciso relembrar que, na véspera do julgamento da ação movida pelo Conselho Federal da OAB no Supremo Tribunal Federal sobre a abrangência da Lei de Anistia, Lula convidou todos os ministros do Supremo para jantar no Palácio do Planalto? Não é difícil imaginar o assunto que foi objeto de debate durante essa simpática refeição. Aliás, um ministro do Supremo Tribunal Federal me disse: "Comparato, você não imagina as pressões que nós recebemos..."Tatiana Merlino indaga se as pressões vieram de Lula. Comparato responde: "Obviamente que do governo."
O sistema de escolha dos Ministros, altamente permeado por compromissos políticos com o Executivo e o Legislativo, deveria ser mudado.
No último
28 de agosto, fez 25 anos a lei de anistia imposta pela ditadura militar no Brasil.
Nesse mesmo dia, houve uma boa
notícia no desenrolar da ação proposta pelo PSOL, que questiona o
descumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no
chamado Caso Araguaia (caso Gomes Lund e outros vs. Brasil). Trata-se da ADPF n. 320. Já escrevi sobre aquela sentença em
outras notas. Entre as obrigações de fazer impostas ao Estado brasileiro, estão
encontrar os corpos e identificar e punir os responsáveis pelas mortes e
desaparecimentos forçados na Guerrilha do Araguaia.
Vejam o andamento da ação nesta ligação e cliquem em
“manifestação da PGR”:
O Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot
Monteiro de Barros, elaborou seu parecer, e ele é favorável parcialmente à ação. Eis a ementa:
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. SENTENÇA DA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO GOMES LUND E OUTROS VS. BRASIL.
ADMISSIBILIDADE DA ADPF. LEI 6.683, DE 28 DE AGOSTO DE 1979 (LEI DA ANISTIA).
AUSÊNCIA DE CONFLITO COM A ADPF 153/DF. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. CARÁTER VINCULANTE DAS DECISÕES DA CORTE IDH,
POR FORÇA DA CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS, EM PLENO VIGOR NO
PAÍS. CRIMES PERMANENTES E OUTRAS GRAVES VIOLAÇÕES A DIREITOS HUMANOS
PERPETRADAS NO PERÍODO PÓS-1964. DEVER DO BRASIL DE PROMOVER-LHES A PERSECUÇÃO
PENAL.
O "controle de convencionalidade" significa o exame da conformidade ao Direito Internacional; neste caso, ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em razão da sentença condenatória proferida contra o Brasil no Caso Araguaia.
Se é certo que a decisão na ADPF n. 153 (cujos embargos declaratórios ainda não foram julgados; a nova ADPF foi apensada a esta, tendo em vista a relação entre os dois casos) colide com a sentença, proferida meses depois, da Corte Interamericana, deve-se porém notar que ela apenas tratou do controle de constitucionalidade, o que não é o objeto da ADPF n. 320. Enquanto o STF tratou do direito interno, trata-se agora de outro tipo de exame. Passo a citar o parecer:
Na presente ADPF não se cogita de reinterpretar a Lei da Anistia nem de
lhe discutir a constitucionalidade (tema submetido a essa Suprema Corte na ADPF
153), mas de estabelecer os marcos do diálogo entre a jurisdição internacional
da Corte Interamericana de Direitos Humanos (plenamente aplicável à República
Federativa do Brasil, que a ela se submeteu de forma voluntária, soberana e
válida) e a jurisdição do Poder Judiciário brasileiro.
Em segundo lugar, porque, como observou ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS, não
existe conflito entre a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153 e a
da Corte Interamericana no caso GOMES LUND. O que há é exercício do sistema
de duplo controle, adotado em nosso país como decorrência da Constituição
da República e da integração à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: o controle
de constitucionalidade nacional e o controle de convencionalidade
internacional. “Qualquer ato ou norma deve ser aprovado pelos dois
controles, para que sejam respeitados os direitos no Brasil.” [p.
30-31]
Lembro que André de Carvalho Ramos é um dos nomes mais importantes, no Brasil, do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Com a distinção entre controle de constitucionalidade e o de convencionalidade, pode o STF, nesta ação, ser favorável à persecução penal dos agentes responsáveis pelos crimes no Araguaia, sem necessariamente entrar em conflito com o que foi julgado na ADPF 153.
Ocorre que o Judiciário, como em outros casos, leva o Brasil a violar o Direito Internacional dos Direitos Humanos e, nesta matéria específica, alegando justamente o que fora decidido pelo STF:
Conforme apurou a Procuradoria-Geral da República, das 9 ações ajuizadas pelo MPF em face de 22 agentes civis e militares
envolvidos em crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar,
apenas 3 se encontram com instrução em andamento; nas outras 6 ocorreu
trancamento da ação penal por decisão em habeas corpus ou rejeição da
denúncia, ratificada ou não posteriormente pelo tribunal correspondente. Em
vários casos, o fundamento da paralisação foi justamente a Lei da Anistia. [p.
21]
Ademais, o Poder Executivo, como é sabido, mantivera-se inerte até a sentença da Corte Interamericana:
É desnecessário dizer que, à parte iniciativas isoladas do próprio
Ministério Público Federal na região de Marabá (PA) e malgrado as recomendações
internacionais dirigidas ao Estado brasileiro desde meados da década de 1970,
nenhuma investigação efetiva a respeito dos desaparecimentos forçados cometidos
durante o regime de exceção fora feita até a sentença da Corte IDH no caso
GOMES LUND (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL. [p. 74]
Trata-se de crimes que não prescreveram, conforme a própria jurisprudência do STF (expliquei essa questão em outra nota), tendo em vista sua natureza permanente:
Por conseguinte, a natureza permanente e atual dos desaparecimentos
forçados promovidos por agentes do regime militar de 1964-1985 afasta não
apenas a prescrição penal, mas também a própria extinção da punibilidade
concedida pela Lei da Anistia, pois esta limita seu alcance temporal aos crimes
cometidos no “período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto
de 1979” (art. 1o). Uma vez que, segundo o entendimento explicitado pelo
Supremo Tribunal Federal, só é possível afirmar cessação da permanência do
sequestro após localização do paradeiro da vítima, ou após sentença que “depois
de esgotadas as buscas e averiguações [...] fixe a data provável do
falecimento”, a conduta dos agentes estatais responsáveis por privar
ilegalmente os desaparecidos políticos de liberdade, ocultando de todos (especialmente
dos familiares das vítimas) seu paradeiro, caracteriza-se, em princípio, como
crime de sequestro não exaurido. [p. 90-91]
Uma vergonha do Estado brasileiro, historicamente infenso ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, é denunciada nesta nota do parecer:
Os projetos em andamento no Congresso Nacional para tipificação do
delito ainda não foram definitivamente aprovados. Ademais, o Estado brasileiro
nem mesmo concluiu o processo de ratificação e promulgação das Convenções
Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas e Internacional para
Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado. Com efeito, a
Convenção Interamericana foi aprovada em 9 de junho de 1994, em Belém (PA), e o
Brasil subscreveu seu texto no dia seguinte. O Congresso Nacional levou sete
anos para aprová-la, o que ocorreu com o Decreto Legislativo 127, de 8 de abril
de 2011. Desde então, aguarda-se decreto presidencial para sua promulgação em
âmbito interno. Da mesma forma, o Brasil não depositou perante a Organização
dos Estados Americanos sua ratificação. No que diz respeito à Convenção
Internacional para Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento
Forçado, firmada em Paris em 6 de fevereiro de 2007 e nessa mesma data assinada
pelo Brasil, seu texto foi aprovado pelo Congresso Nacional mediante o Decreto
Legislativo 661, de 1o de setembro de 2010. Porém, a exemplo do que ocorre com
a Convenção Interamericana, a Presidência da República não emitiu decreto
determinando sua incorporação ao direito interno (promulgação). Todavia, o Brasil – para fins externos – depositou ratificação perante as Nações Unidas em 29 de novembro de 2010. [p. 87]
Não surpreende que o Congresso brasileiro tenha tanto
demorado em apreciar esses tratados. As últimas legislaturas revelaram-se, em diversos momentos,
adversárias dos direitos humanos. A mora da presidência da república em internalizar as convenções de que passou a participar também
não, tendo em vista o ataque lançado pela presidenta Rousseff contra o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos desde a decisão sobre o empreendimento com
que a ditadura sonhou, Belo Monte, e que ela decidiu realizar.
Imagino, ademais, que não seja preocupação do Estado brasileiro combater o crime que aumentou com as UPPs, o crime que vitimou Amarildo, típico das ditaduras da América Latina: os desaparecimentos forçados.
A ação, se for bem sucedida,
Imagino, ademais, que não seja preocupação do Estado brasileiro combater o crime que aumentou com as UPPs, o crime que vitimou Amarildo, típico das ditaduras da América Latina: os desaparecimentos forçados.
A ação, se for bem sucedida,
Contudo, seria mesmo necessária a revisão da lei? Lembre-se que o seu sentido foi muito disputado. Nesta matéria de 1980 do jornal O Movimento, "Os torturadores anistiados: Como está sendo aplicada a lei de anistia" (no Arquivo Ana Lagôa -AAL), vê-se a perplexidade com a interpretação de que ela beneficiaria os torturadores do regime, no caso os que cegaram Milton Coelho de Carvalho. O jornalista Otto José conta que o juiz, Larry Ribeiro, mudou de opinião "como um passe de mágica", e também o Ministério Público, depois de a advogada Ronilda Noblat alegar o envolvimento de um oficial com alta patente, o então tenente-coronel Oscar Silva.
Também de 1980, esta matéria da Isto É sobre o mesmo caso, "A Anistia beneficiou os torturadores? Um juiz de Salvador diz que sim. Mas advogados contestam" (outro dos recortes do AAL) mostra como o sentido "técnico-jurídico" de crimes conexos não serviria para servir de indulgência aos torturadores. Miguel Reale Júnior e Paulo José da Costa Jr., que não eram juristas de esquerda, são citados na reportagem. No entanto, ontem como hoje, o Judiciário fez o papel de garatujar uma interpretação garantidora da tortura, de qualidade técnica tão alta quanto é elevado o seu compromisso com os direitos humanos.
Essa qualidade alia-se à péssima história, oficializada pelo STF no julgamento da ADPF n. 153, de que a lei de anistia aprovada correspondeu ao clamor da sociedade e foi livremente negociada.
Já mencionei alguns poucos dos milhares de documentos sobre a questão que desmentem a história negacionista togada.
Ao lado, vê-se apenas mais um (guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo - APESP), com a crítica do Comitê Brasileiro pela Anistia (incluo o de Bauru, pois andei pesquisando papéis locais; sobre o CBA nacional já escrevi) ao projeto oficial: "MAIS UMA JOGADA DO GOVERNO".
Neste panfleto do CBA (também guardado no APESP), vemos a interessante comparação entre o projeto oficial e a demanda da campanha pela anistia. Corretamente, afirma-se que o projeto "Sugere perdão aos torturadores" - apesar de tudo, algum pudor restava no Executivo, que certamente não queria sustentar um debate público no Legislativo em apoio a seus estupradores e vilipendiadores de cadáver.
Seria necessário pesquisar se o Executivo esperava contar com o Judiciário para que a interpretação menos técnica e mais despudorada sobre os "crimes conexos" pudesse imperar nos tribunais.
Vê-se também no panfleto que a "Anistia do Povo" "Pede contas ao governo dos presos políticos, mortos e desaparecidos e punição para os torturadores."
O movimento estudantil dos anos 1970, apesar de vigiado e reprimido, também participou da campanha pela anistia, que logrou fazer convergir várias organizações.
Essa qualidade alia-se à péssima história, oficializada pelo STF no julgamento da ADPF n. 153, de que a lei de anistia aprovada correspondeu ao clamor da sociedade e foi livremente negociada.
Já mencionei alguns poucos dos milhares de documentos sobre a questão que desmentem a história negacionista togada.
Ao lado, vê-se apenas mais um (guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo - APESP), com a crítica do Comitê Brasileiro pela Anistia (incluo o de Bauru, pois andei pesquisando papéis locais; sobre o CBA nacional já escrevi) ao projeto oficial: "MAIS UMA JOGADA DO GOVERNO".
Seria necessário pesquisar se o Executivo esperava contar com o Judiciário para que a interpretação menos técnica e mais despudorada sobre os "crimes conexos" pudesse imperar nos tribunais.
Vê-se também no panfleto que a "Anistia do Povo" "Pede contas ao governo dos presos políticos, mortos e desaparecidos e punição para os torturadores."
O movimento estudantil dos anos 1970, apesar de vigiado e reprimido, também participou da campanha pela anistia, que logrou fazer convergir várias organizações.
Também com caráter meramente exemplificativo, pois há uma miríade de outros, destaco este outro documento, que também pode ser encontrado na internet. Eu o pesquisei em outra fonte, o Arquivo Público Mineiro (APM).
No número 12, de junho de 1975, da Carta Mensal do DOPS/SP, há uma série de transcrições de panfletos e jornais apreendidos na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Fazia-se campanha para a representação estudantil no DCE.
Um dos panfletos, "União e Organização - Plataforma para o DCE", dizia respeito à campanha de anistia. Como outros da mesma época, reivindicava-se a anistia com a punição dos torturadores da ditadura militar:
1. Liberdades democráticas para o Brasil: a) abolição do Ato Institucional nº 5, além de outros Atos Institucionais; b) anistia geral para os presos políticos; c) retorno integral da instituição do Habeas Corpus; d) fim da tortura e punição dos responsáveis;Para voltar a 2014 e encerrar esta breve nota, lembro que é um tanto desalentador notar que os três candidatos à presidência da república mais bem colocados nas pesquisas até agora divulgadas são a favor da anistia do governo militar. A esse respeito, sugiro a leitura do comentário de Mário Magalhães.
Em situações como esta, percebemos que o establishment político de hoje está aquém da luta de ontem contra a ditadura, o que deveria levar a indagações sobre os valores democráticos desses políticos profissionais.
Felizmente, há nomes que defendem bandeiras que honram os setores da sociedade brasileira que resistiram contra o regime autoritário (parcela da população foi indiferente, e outra o apoiou), e creio que é neles que se deva votar, tendo em vista a atualidade de vários aspectos dessa luta, e a relação entre liberdade e prática.
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