Eu estava na ALESP quando o evento ocorreu, em 17 de setembro: depois de faltar em outras ocasiões, o reitor da USP, Marco Antonio Zago, finalmente apareceu em audiência da Comissão de Educação e Cultura da Assembleia Legislativa para falar sobre a situação da Universidade de São Paulo.
Este curto vídeo dá uma pálida ideia do que foi o discurso do reitor: https://www.youtube.com/watch?v=gWLsKO6LfM4
Diferentemente do que a reportagem afirma, o auditório não estava nada lotado no começo dos trabalhos; ele foi enchendo, provavelmente em razão das ausências do Magnífico, muitos devem ter achado que ele não apareceria, e só vieram depois da notícia da presença.
Esta matéria é melhor: http://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=359200
Porém, não o suficiente para sugerir o desastre da fala de Zago.
Tirei esta foto enquanto a mesa se formava. O deputado Adriano Diogo estava a sentar-se; da esquerda para a direita, vemos Beto Tricoli, Telma Souza, o reitor, Carlos Giannazi e Carlos Neder, que é o presidente da Comissão.
Desde agosto, vi duas audiências na ALESP em que o reitor faltou. Durante esse tempo, sua inabilíssima e ilegal condução da greve na USP (a mais longa da história, outro sinal do "sucesso" da atual gestão) levou à vitória judicial dos funcionários e dos professores.
Peguei uma das folhas impressas, cartazes simples contra a desvinculação dos hospitais universitários, uma das saídas aventadas pelo reitor. É significativo que Zago queira responder a crise da universidade
sucateando-a, isto é, aprofundando a crise, o que já virou piada na
internet com o tumblr "USP vende tudo": http://uspvendetudo.tumblr.com/
Zago ligou o computador e começou sua fala. Boa parte da plateia levantou cartazes (eu inclusive) um pouco depois de o reitor começar o seu discurso. Eram de três tipos: com a foto do reitor e faltando uma vírgula; um que exigia transparência nas contas; outro, contra a desvinculação dos hospitais universitários.
A exasperante inópia da fala do reitor marcava-se desde a estrutura do discurso: mais da metade do tempo foi consagrada a uma tediosa descrição da USP, com dados como número de unidades, de pesquisadores que forma, números e números.
Havia também listas, de institutos, professores e pesquisadores; no mesmo fôlego, foram pronunciados os nomes de Marilena Chaui e Antônio Delfim Netto (despertando risos na plateia), o que sugeria que o reitor não tinha muita noção daqueles a quem se referia.
Zago praticamente não tirava os olhos de seu computador; uma rara vez em que olhou a plateia (certamente devido à modéstia e ao pudor de ver seu retrato colorido nas mãos de tantos no público) ocorreu quando mencionou Fernando Henrique Cardoso. Vaias irromperam (certamente pela atuação como político, e não por sua obra), e ele argumentou que o antigo sociólogo havia ganhado um Nobel das Ciências Sociais. A resposta coadunou-se com o espírito da fala, que também listou prêmios e condecorações.
O desfile de números, prêmios e nomes deixou claro que a inteligência da USP estava sendo dirigida por um homem-planilha, e com más planilhas.
Essa primeira parte do discurso poderia ser usada em qualquer (má) fala do reitor, não importando em qual ocasião. Depois de assim evadir-se do assunto da audiência, no quarto final de sua fala, ousou uma (infeliz) pergunta retórica: "Há crise na USP?"
A maior parte da plateia gargalhou; Carlos Neder pediu silêncio, argumentando que Zago começava a explicar a situação da USP. Não o fez, porém: usou o clichê de recorrer aos ideogramas chineses e afirmou que a crise significava "oportunidade".
O homem-clichê, que é outra face do homem-planilha, afirmou em seguida que a USP gasta mais do que recebe, e que esperava ouvir sugestões de como lidar com isso. Fim.
Não pude ficar para ver como, nas horas seguintes (contaram-me depois, no entanto), os deputados e os representantes da Adusp desconstruíram o reitor, cuja inabilidade política e administrativa ficaram mais do que comprovadas nos poucos meses de gestão; a segunda inabilidade já foi por ele admitida a contragosto, por sinal, quando reconheceu o descontrole financeiro da gestão passada (o reitor Rodas), de que participou como pró-reitor de pesquisa.
Que tempos vive a USP, em razão de sua condução política, já há tempos. Não será esquecido Rodas, com suas construções inacabadas e escritórios em Cingapura e alhures, com a contaminação do solo da USP Leste (talvez com as terras insalubres do "templo de Salomão"!), com a proeza de ser considerado persona non grata na própria faculdade que havia dirigido, com seu rápido caminho do superávit ao déficit entre outras façanhas. Em homenagem a tão marcante gestão, ele foi escolhido para o conselho superior da Fapesp pelo governador. Afinal, trata-se de um homem confiável para o poder, um professor que chama o golpe de 1964 de "revolução"; lembre-se, na sua gestão, do monumento escondido e inaugurado secretamente em homenagem aos mortos e desaparecidos da USP.
(Nota: a reeleição da destruição da USP, da segurança, da água e de tanta coisa em São Paulo mostra que o renitente conservadorismo bandeirante cobra sua conta, e os paulistas, fiéis a esse conservadorismo, marcham retamente para o precipício que prepararam.)
Por que os grupos que comprometem a USP são os que a administram? Certamente a regulação tem um papel nisso. Renan Honório Quinalha, em fala na audiência que a Comissão da
Verdade do Estado de São Paulo promoveu sobre a USP, falou do estatuto
da instituição, sua origem na ditadura militar e seu caráter
concentrador de poder. Logo o vídeo estará disponível no canal da CEV "Rubens Paiva": https://www.youtube.com/user/comissaodaverdadesp
É sinal de grave atraso político que a
Universidade não se tenha desfeito desse legado da ditadura. Infelizmente, nesse atraso, ela reproduz o que acontece, mais amplamente, no país. Incluo nessa observação a ilegalidade da administração no tocante ao dever jurídico da transparência; o reitor tornou-se um garantidor da caixa preta das contas da administração, violando a Lei de Acesso à Informação, como conta Jorge Machado.
O desastre administrativo e político da USP, creio, faz com que ela sirva de forte argumento contra as estruturas oligárquicas: o
poder institucional, nessa instituição, é fortemente dominado pelos
professores titulares, e essa centralização não tem gerado escolhas excelentes, muito pelo contrário.
O discurso da competência tem legitimado administradores incompetentes
para o bem da comunidade (adequados, contudo, para as vozes que desejam privatizar a instituição) e, em verdade, fortalece os argumentos pela
democratização da universidade.
O estatuto, no entanto, não explica tudo. Ele é um instrumento para essas forças políticas conservadoras, publicamente apoiadas não importando o que façam e (privadamente) desfaçam. Já percebi que não escandaliza neste Estado a progressiva destruição da maior universidade da América Latina (e ainda há a Unesp e a Unicamp, tão importantes, e que sofrem os reflexos dessa crise), façanha que talvez se avizinhe do impressionante e envergonhado racionamento de água em região que era de Mata Atlântica.
Já não escandalizou, como afirmou Tales Ab'Saber, um "moleque sem lastro técnico dirigindo a Universidade de São Paulo, a Unicamp", o que ocorreu em gestão anterior do atual governador, do PSDB.
Afora a indiferença (quando não a hostilidade) que os assuntos da educação despertam usualmente no meio político, a USP tem que lutar com o despeito que ela desperta no campo do ensino superior em um país de analfabetos funcionais (incluindo universitários, claro), com o tratamento que ela tem sofrido pela grande imprensa em São Paulo (lembremos do erro grosseiro da Folha de S. Paulo em relação aos salários na instituição), e com uma administração, bem, que segue esse projeto do precipício.
Tudo isso faz com que a USP não tenha tantos defensores assim fora dela - e, no interior da instituição, há esses que a administram, e contra quem ela precisa ser apoiada.
A filósofa Martha Nussbaum escreveu um pequeno livro, Not for profit: why democracy needs the humanities (Princeton University Press, 2010), em que argumenta que o crescente desprestígio das humanidades nos EUA e na Europa prejudica a democracia, visto que propriedades como espírito crítico, conhecimento e abertura para outras culturas são necessárias para uma educação fomentadora dos valores democráticos, de cidadãos do mundo. É claro que homens-planilha e homens-clichê, que são os privilegiados pela ideologia da gestão, se beneficiariam do que ensinam as humanidades...
O livro não é melhor porque não pensa o que significa a "democracia" a que se refere (e as diferenças culturais envolvidas), tampouco questiona se o sistema político nos EUA é democrático e deixa de pesquisar as raízes políticas (no sistema pretensamente "democrático") desse desprestígio.
Outro problema é não estudar o problema no âmbito mais amplo de uma crise das universidades, que também precisa ser compreendida em suas raízes políticas, que variarão de acordo com cada local e cultura. Penso que essa observação vale também para a USP, em oposição aos discursos supostamente "técnicos" e "neutros" dos gestores, politicamente tão úteis para o poder institucional.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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