A conflituosa relação entre a boa literatura e a moralidade apresenta vários casos exemplares: o processo e a condenação sofridos por Baudelaire em razão de As flores do mal; o processo de Allen Ginsberg por causa de Uivo (neste caso, o poeta venceu). Adaptando o dito de Gide, a qualidade da literatura não tem relação direta com a qualidade dos sentimentos que ela expressa.
Escrevi em 2012 uma nota neste blogue, "Poesia e bem-estar ou editais antidrummondianos entre sombras", em que explicava por que Carlos Drummond de Andrade não seria aceito como concorrente em um concurso do SESC/DF que, no entanto, abusivamente levava seu nome. O regulamento exigia que "As poesias devem conter elementos que promovam o bem-estar e os valores morais". Selecionei alguns exemplos, do primeiro livro, Alguma poesia, até o póstumo Farewell, que mostram que não eram exatamente essas as preocupações na melhor poesia de Drummond.
Por acaso, descobri que, em 2014, o concurso continua existindo e com a mesma cláusula moral: http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_carlos_drummond_2014.pdf
O mesmo se dá no concurso de contos Machado de Assis (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_machado_assis_2014.pdf), no de contos infantis Monteiro Lobato (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_monteiro_lobato_2014.pdf) e no de crônicas, que recebeu o nome de Rubem Braga: http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_rubem_braga_2014.pdf
No entanto, não há cláusulas semelhantes no concurso de pintura Cândido Portinari (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_candido_portinari.pdf); no de fotografia, Marc Ferrez: http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/regulamento_marc_ferrez_2014.pdf; para o de música, Tom Jobim, tampouco (http://sesc.sistemafecomerciodf.com.br/portal/images/downloads/premio_sesc_tom_jobim_2014.pdf)
Em termos históricos, isso não faz sentido. Pintores, fotógrafos e músicos foram tão capazes de ofender a moral dominante e de incomodar o bem-estar dos conformistas quanto os escritores. Bem sabe disso aquela rede social que permite propagação de ódio racial e extermínio de pobres, mas proíbe imagens com A origem do mundo, de Courbet, ou as fotos de Mapplethorpe.
Não sei o que significa essa diferença. Alguém que desejasse pesquisar o assunto poderia verificar se se trata de um sinal de força da literatura, ainda capaz do incômodo e do dissenso, o que não ocorreria, por exemplo, no mundo progressivamente financeirizado das artes plásticas; ou na possível fraqueza dos escritores, que aceitam essas condições humilhantes para ganhar alguns trocados; tive notícias de, em redes sociais, escritores brasileiros contemporâneos advogando o conformismo porque, alegaram, não recebiam contracheques.
Não sei que tipo de literatura sai vencedora de tais certames de quem compete para agradar mais ao suposto senso moral existente. Uma crítica de cunho kantiano às morais do bem-estar apontaria que elas não podem pretender à universalidade, tendo em vista que são diversas as concepções de felicidade, que variam de acordo com as inclinações pessoais. Como a própria ideia de universalidade deve ser posta entre parênteses, creio que essa crítica deve servir para suscitar outra: em sociedades heterogêneas e complexas, critérios artísticos como os dos editais do SESC bem podem acarretar a busca de uma suposta média, a mediocridade na melhor das hipóteses e, na pior, a intolerância. Por exemplo, desclassificar Hilda Hilst e Angélica Freitas em nome de padrões conformistas de sexualidade, ou Augusto dos Anjos por incitação ao suicídio e mal-estar do Universal...
Para ficar na poesia, resolvi procurar poemas que tivessem ganhado prêmios do SESC. Todos os que encontrei são exercícios mais ou menos poéticos de grande conformismo também na linguagem. Linhas pré-pessoanas no estilo "Querido poeta, vou-lhe escrever uma cartinha", nostalgia meio amnésica à moda do vovô, poema como aluguel de frutas, lista aleatória com exercícios fonoaudiológicos. Alguns títulos, como "O bom e o mau", "Castigo" parecem aludir à preocupação moral. Se os poemas o fazem, verificará o leitor no futuro mais ou menos distante em que as coletâneas forem editadas.
O prêmio SESC de literatura, uma parceria com a editora Record, não possui essa cláusula. Porém não contempla a poesia.
Essa questão, o concurso do SESC/DF, tem alguma relevância, porém? Continuo achando que sim, e por dois motivos: o primeiro, bem externo ao edital, é que ele sinaliza de um encaretamento geral no Brasil, politicamente e juridicamente regressivo. Lembro que essa cláusula moral coexiste com um contexto eleitoreiro em que os candidatos parecem disputar quem será mais repressivo contra os movimentos sociais e os pobres - em nome da ordem!; quem será mais bem sucedido em tratar como cidadãos de segunda classe homossexuais e mulheres - em nome da família!; quem será mais racista contra índios e quilombolas - em nome do desenvolvimento...
Falo de regressão jurídica tendo em vista o quanto essa tendência ameaça os direitos humanos, inclusive a liberdade de expressão.
Esse encaretamento ocorre também na literatura e está ligado à institucionalização dos escritores (especialmente os prosadores). Vejam o que Ricardo Lísias declarou recentemente ao Sul21:
As artes, no Brasil, estão crescendo muito e se profissionalizando. Então, os autores passaram a viver de eventos, de suas participações em eventos. Não há mal nenhum nisso. Porém, quando você se posiciona, acaba por decepcionar 50% e fecha mercado para si mesmo. Se você for convidado por uma Secretaria de Cultura do PSDB e se declara eleitor do PSOL, você deixará de ser convidado. Então, grandes autores brasileiros são hoje chapa branca. O mesmo vale para concursos literários.
O que nos leva ao segundo motivo, que está na importância da própria instituição. É lamentável que o SESC seja reincidente na cláusula moral, tendo em vista seu forte papel entre as instituições de cultura no Brasil. A esse respeito, quero lembrar de recentíssima fala de Paulo Arantes sobre o "Capitalismo acadêmico", uma das atividades da última greve da USP. O filósofo argumenta que a universidade já está privatizada, em seus mecanismos de avaliação, no empreendedorismo, nos editais. E algo de semelhante ocorre nas políticas culturais:
Política pública é a política de editais [...] A sua atividade social passa a ser produzir indicadores, pra dizer que você está conforme os termos do edital, para poder renovar o edital. Assim se reproduz a sociedade brasileira [risos]. Maior que o Ministério da Cultura é, por exemplo, o sistema SESC em São Paulo, mais que a Secretaria de Cultura, mais que o Ministério da Cultura em São Paulo [...] O SESC é o Ministério da Cultura de São Paulo [risos]. Funciona nessa base, totalmente privado, e ao mesmo tempo sendo público, [...] Ele funciona nessa base, abre o edital do SESC e pum! O sistema se reproduz, se fortalece, se legitima, e por aí vai.De fato, o SESC, em tais momentos, está a reproduzir certas estruturas de poder da sociedade brasileira que já deveriam ter sido derrubadas. Os escritores conformistas e institucionalizados ajudam na manutenção do sistema; essa é sua parte, talvez modesta mas presente, na ignomínia geral.
Seria realmente possível fazer literatura sem trazer o mal-estar? Não a que me interessa ler, pelo menos. Escreveu Drummond em "A flor e a náusea": "meu ódio é o melhor de mim".
Queria participar, mas pelo que li em seus dois artigos, seria contra minha essência militante propagar e reafirmar tais esteriótipos literários e conformistas dentro do campo que atuo.
ResponderExcluirO concurso feito pelo SESC nacional em parceria com a Record não é assim, mas esse não premia poesia.
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