Escrevi algumas vezes sobre o
assunto. O problema da Lei de Anistia está ligado à interpretação elaborada
pela maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 153, em 2010,
proposta pelo Conselho Federal da OAB.
Às voltas com a evidente
incompatibilidade daquela lei com a atual Constituição, acabaram por realizar
um golpe branco, judiciário, e proclamar que a emenda constitucional n. 26 de
1985, feita para alterar a Constituição de 1967 e que trata da anistia aos
crimes políticos e “conexos” (expressão que não serve para abarcar os estupros,
torturas e desaparecimentos forçados), era superior à Constituição de 1988, servia-lhe
de limite material normativo.
Isto é, acabaram considerar que uma
alteração (manifestação do poder constituinte derivado) da Constituição
revogada da ditadura era superior à Constituição da democracia (produto do
poder constituinte originário, teoricamente superior ao derivado).
Nesse contexto, apesar das
várias exceções individuais de magistrados com valores democráticos, há
uma convergência do Judiciário com a tortura e a repressão política,
de ontem e de hoje. No tocante à tortura, verificou-se, no relatório de 2001
elaborado por Nigel Rodley, em nome da ONU, que os magistrados e o Ministério Público tendem a proteger os torturadores atuais.
Não é de crucial importância, creio, rever a lei. A revisão poderia se revelar inútil, visto que o problema não está exatamente nela, ou melhor, no seu texto, mas no Judiciário. Afinal, mesmo revista, ela poderia receber uma interpretação criativa que reprovaria qualquer aluno no terceiro semestre da faculdade de Direito e faria os torturadores serem juridicamente aprovados, até estimulados.
As virtudes democráticas da hermenêutica (em contraponto a certos filósofos que desejaram aposentá-la) manifestam-se em exemplos como esse: apenas por meio da arbitrariedade é possível beneficiar os assassinos e torturadores oficiais. Hermenêuticas da razoabilidade bastam para desmistificar tais decisões...
Não é de crucial importância, creio, rever a lei. A revisão poderia se revelar inútil, visto que o problema não está exatamente nela, ou melhor, no seu texto, mas no Judiciário. Afinal, mesmo revista, ela poderia receber uma interpretação criativa que reprovaria qualquer aluno no terceiro semestre da faculdade de Direito e faria os torturadores serem juridicamente aprovados, até estimulados.
As virtudes democráticas da hermenêutica (em contraponto a certos filósofos que desejaram aposentá-la) manifestam-se em exemplos como esse: apenas por meio da arbitrariedade é possível beneficiar os assassinos e torturadores oficiais. Hermenêuticas da razoabilidade bastam para desmistificar tais decisões...
Lembro das considerações de Fábio Konder Comparato, aqui na entrevista que deu ao número de outubro de 2010 da Caros Amigos:
O sistema de escolha dos Ministros, altamente permeado por compromissos políticos com o Executivo e o Legislativo, deveria ser mudado.
Será preciso relembrar que, na véspera do julgamento da ação movida pelo Conselho Federal da OAB no Supremo Tribunal Federal sobre a abrangência da Lei de Anistia, Lula convidou todos os ministros do Supremo para jantar no Palácio do Planalto? Não é difícil imaginar o assunto que foi objeto de debate durante essa simpática refeição. Aliás, um ministro do Supremo Tribunal Federal me disse: "Comparato, você não imagina as pressões que nós recebemos..."Tatiana Merlino indaga se as pressões vieram de Lula. Comparato responde: "Obviamente que do governo."
O sistema de escolha dos Ministros, altamente permeado por compromissos políticos com o Executivo e o Legislativo, deveria ser mudado.
No último
28 de agosto, fez 25 anos a lei de anistia imposta pela ditadura militar no Brasil.
Nesse mesmo dia, houve uma boa
notícia no desenrolar da ação proposta pelo PSOL, que questiona o
descumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no
chamado Caso Araguaia (caso Gomes Lund e outros vs. Brasil). Trata-se da ADPF n. 320. Já escrevi sobre aquela sentença em
outras notas. Entre as obrigações de fazer impostas ao Estado brasileiro, estão
encontrar os corpos e identificar e punir os responsáveis pelas mortes e
desaparecimentos forçados na Guerrilha do Araguaia.
Vejam o andamento da ação nesta ligação e cliquem em
“manifestação da PGR”:
O Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot
Monteiro de Barros, elaborou seu parecer, e ele é favorável parcialmente à ação. Eis a ementa:
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. SENTENÇA DA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO GOMES LUND E OUTROS VS. BRASIL.
ADMISSIBILIDADE DA ADPF. LEI 6.683, DE 28 DE AGOSTO DE 1979 (LEI DA ANISTIA).
AUSÊNCIA DE CONFLITO COM A ADPF 153/DF. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. CARÁTER VINCULANTE DAS DECISÕES DA CORTE IDH,
POR FORÇA DA CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS, EM PLENO VIGOR NO
PAÍS. CRIMES PERMANENTES E OUTRAS GRAVES VIOLAÇÕES A DIREITOS HUMANOS
PERPETRADAS NO PERÍODO PÓS-1964. DEVER DO BRASIL DE PROMOVER-LHES A PERSECUÇÃO
PENAL.
O "controle de convencionalidade" significa o exame da conformidade ao Direito Internacional; neste caso, ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em razão da sentença condenatória proferida contra o Brasil no Caso Araguaia.
Se é certo que a decisão na ADPF n. 153 (cujos embargos declaratórios ainda não foram julgados; a nova ADPF foi apensada a esta, tendo em vista a relação entre os dois casos) colide com a sentença, proferida meses depois, da Corte Interamericana, deve-se porém notar que ela apenas tratou do controle de constitucionalidade, o que não é o objeto da ADPF n. 320. Enquanto o STF tratou do direito interno, trata-se agora de outro tipo de exame. Passo a citar o parecer:
Na presente ADPF não se cogita de reinterpretar a Lei da Anistia nem de
lhe discutir a constitucionalidade (tema submetido a essa Suprema Corte na ADPF
153), mas de estabelecer os marcos do diálogo entre a jurisdição internacional
da Corte Interamericana de Direitos Humanos (plenamente aplicável à República
Federativa do Brasil, que a ela se submeteu de forma voluntária, soberana e
válida) e a jurisdição do Poder Judiciário brasileiro.
Em segundo lugar, porque, como observou ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS, não
existe conflito entre a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153 e a
da Corte Interamericana no caso GOMES LUND. O que há é exercício do sistema
de duplo controle, adotado em nosso país como decorrência da Constituição
da República e da integração à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: o controle
de constitucionalidade nacional e o controle de convencionalidade
internacional. “Qualquer ato ou norma deve ser aprovado pelos dois
controles, para que sejam respeitados os direitos no Brasil.” [p.
30-31]
Lembro que André de Carvalho Ramos é um dos nomes mais importantes, no Brasil, do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Com a distinção entre controle de constitucionalidade e o de convencionalidade, pode o STF, nesta ação, ser favorável à persecução penal dos agentes responsáveis pelos crimes no Araguaia, sem necessariamente entrar em conflito com o que foi julgado na ADPF 153.
Ocorre que o Judiciário, como em outros casos, leva o Brasil a violar o Direito Internacional dos Direitos Humanos e, nesta matéria específica, alegando justamente o que fora decidido pelo STF:
Conforme apurou a Procuradoria-Geral da República, das 9 ações ajuizadas pelo MPF em face de 22 agentes civis e militares
envolvidos em crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar,
apenas 3 se encontram com instrução em andamento; nas outras 6 ocorreu
trancamento da ação penal por decisão em habeas corpus ou rejeição da
denúncia, ratificada ou não posteriormente pelo tribunal correspondente. Em
vários casos, o fundamento da paralisação foi justamente a Lei da Anistia. [p.
21]
Ademais, o Poder Executivo, como é sabido, mantivera-se inerte até a sentença da Corte Interamericana:
É desnecessário dizer que, à parte iniciativas isoladas do próprio
Ministério Público Federal na região de Marabá (PA) e malgrado as recomendações
internacionais dirigidas ao Estado brasileiro desde meados da década de 1970,
nenhuma investigação efetiva a respeito dos desaparecimentos forçados cometidos
durante o regime de exceção fora feita até a sentença da Corte IDH no caso
GOMES LUND (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL. [p. 74]
Trata-se de crimes que não prescreveram, conforme a própria jurisprudência do STF (expliquei essa questão em outra nota), tendo em vista sua natureza permanente:
Por conseguinte, a natureza permanente e atual dos desaparecimentos
forçados promovidos por agentes do regime militar de 1964-1985 afasta não
apenas a prescrição penal, mas também a própria extinção da punibilidade
concedida pela Lei da Anistia, pois esta limita seu alcance temporal aos crimes
cometidos no “período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto
de 1979” (art. 1o). Uma vez que, segundo o entendimento explicitado pelo
Supremo Tribunal Federal, só é possível afirmar cessação da permanência do
sequestro após localização do paradeiro da vítima, ou após sentença que “depois
de esgotadas as buscas e averiguações [...] fixe a data provável do
falecimento”, a conduta dos agentes estatais responsáveis por privar
ilegalmente os desaparecidos políticos de liberdade, ocultando de todos (especialmente
dos familiares das vítimas) seu paradeiro, caracteriza-se, em princípio, como
crime de sequestro não exaurido. [p. 90-91]
Uma vergonha do Estado brasileiro, historicamente infenso ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, é denunciada nesta nota do parecer:
Os projetos em andamento no Congresso Nacional para tipificação do
delito ainda não foram definitivamente aprovados. Ademais, o Estado brasileiro
nem mesmo concluiu o processo de ratificação e promulgação das Convenções
Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas e Internacional para
Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado. Com efeito, a
Convenção Interamericana foi aprovada em 9 de junho de 1994, em Belém (PA), e o
Brasil subscreveu seu texto no dia seguinte. O Congresso Nacional levou sete
anos para aprová-la, o que ocorreu com o Decreto Legislativo 127, de 8 de abril
de 2011. Desde então, aguarda-se decreto presidencial para sua promulgação em
âmbito interno. Da mesma forma, o Brasil não depositou perante a Organização
dos Estados Americanos sua ratificação. No que diz respeito à Convenção
Internacional para Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento
Forçado, firmada em Paris em 6 de fevereiro de 2007 e nessa mesma data assinada
pelo Brasil, seu texto foi aprovado pelo Congresso Nacional mediante o Decreto
Legislativo 661, de 1o de setembro de 2010. Porém, a exemplo do que ocorre com
a Convenção Interamericana, a Presidência da República não emitiu decreto
determinando sua incorporação ao direito interno (promulgação). Todavia, o Brasil – para fins externos – depositou ratificação perante as Nações Unidas em 29 de novembro de 2010. [p. 87]
Não surpreende que o Congresso brasileiro tenha tanto
demorado em apreciar esses tratados. As últimas legislaturas revelaram-se, em diversos momentos,
adversárias dos direitos humanos. A mora da presidência da república em internalizar as convenções de que passou a participar também
não, tendo em vista o ataque lançado pela presidenta Rousseff contra o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos desde a decisão sobre o empreendimento com
que a ditadura sonhou, Belo Monte, e que ela decidiu realizar.
Imagino, ademais, que não seja preocupação do Estado brasileiro combater o crime que aumentou com as UPPs, o crime que vitimou Amarildo, típico das ditaduras da América Latina: os desaparecimentos forçados.
A ação, se for bem sucedida,
Imagino, ademais, que não seja preocupação do Estado brasileiro combater o crime que aumentou com as UPPs, o crime que vitimou Amarildo, típico das ditaduras da América Latina: os desaparecimentos forçados.
A ação, se for bem sucedida,
Contudo, seria mesmo necessária a revisão da lei? Lembre-se que o seu sentido foi muito disputado. Nesta matéria de 1980 do jornal O Movimento, "Os torturadores anistiados: Como está sendo aplicada a lei de anistia" (no Arquivo Ana Lagôa -AAL), vê-se a perplexidade com a interpretação de que ela beneficiaria os torturadores do regime, no caso os que cegaram Milton Coelho de Carvalho. O jornalista Otto José conta que o juiz, Larry Ribeiro, mudou de opinião "como um passe de mágica", e também o Ministério Público, depois de a advogada Ronilda Noblat alegar o envolvimento de um oficial com alta patente, o então tenente-coronel Oscar Silva.
Também de 1980, esta matéria da Isto É sobre o mesmo caso, "A Anistia beneficiou os torturadores? Um juiz de Salvador diz que sim. Mas advogados contestam" (outro dos recortes do AAL) mostra como o sentido "técnico-jurídico" de crimes conexos não serviria para servir de indulgência aos torturadores. Miguel Reale Júnior e Paulo José da Costa Jr., que não eram juristas de esquerda, são citados na reportagem. No entanto, ontem como hoje, o Judiciário fez o papel de garatujar uma interpretação garantidora da tortura, de qualidade técnica tão alta quanto é elevado o seu compromisso com os direitos humanos.
Essa qualidade alia-se à péssima história, oficializada pelo STF no julgamento da ADPF n. 153, de que a lei de anistia aprovada correspondeu ao clamor da sociedade e foi livremente negociada.
Já mencionei alguns poucos dos milhares de documentos sobre a questão que desmentem a história negacionista togada.
Ao lado, vê-se apenas mais um (guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo - APESP), com a crítica do Comitê Brasileiro pela Anistia (incluo o de Bauru, pois andei pesquisando papéis locais; sobre o CBA nacional já escrevi) ao projeto oficial: "MAIS UMA JOGADA DO GOVERNO".
Neste panfleto do CBA (também guardado no APESP), vemos a interessante comparação entre o projeto oficial e a demanda da campanha pela anistia. Corretamente, afirma-se que o projeto "Sugere perdão aos torturadores" - apesar de tudo, algum pudor restava no Executivo, que certamente não queria sustentar um debate público no Legislativo em apoio a seus estupradores e vilipendiadores de cadáver.
Seria necessário pesquisar se o Executivo esperava contar com o Judiciário para que a interpretação menos técnica e mais despudorada sobre os "crimes conexos" pudesse imperar nos tribunais.
Vê-se também no panfleto que a "Anistia do Povo" "Pede contas ao governo dos presos políticos, mortos e desaparecidos e punição para os torturadores."
O movimento estudantil dos anos 1970, apesar de vigiado e reprimido, também participou da campanha pela anistia, que logrou fazer convergir várias organizações.
Essa qualidade alia-se à péssima história, oficializada pelo STF no julgamento da ADPF n. 153, de que a lei de anistia aprovada correspondeu ao clamor da sociedade e foi livremente negociada.
Já mencionei alguns poucos dos milhares de documentos sobre a questão que desmentem a história negacionista togada.
Ao lado, vê-se apenas mais um (guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo - APESP), com a crítica do Comitê Brasileiro pela Anistia (incluo o de Bauru, pois andei pesquisando papéis locais; sobre o CBA nacional já escrevi) ao projeto oficial: "MAIS UMA JOGADA DO GOVERNO".
Seria necessário pesquisar se o Executivo esperava contar com o Judiciário para que a interpretação menos técnica e mais despudorada sobre os "crimes conexos" pudesse imperar nos tribunais.
Vê-se também no panfleto que a "Anistia do Povo" "Pede contas ao governo dos presos políticos, mortos e desaparecidos e punição para os torturadores."
O movimento estudantil dos anos 1970, apesar de vigiado e reprimido, também participou da campanha pela anistia, que logrou fazer convergir várias organizações.
Também com caráter meramente exemplificativo, pois há uma miríade de outros, destaco este outro documento, que também pode ser encontrado na internet. Eu o pesquisei em outra fonte, o Arquivo Público Mineiro (APM).
No número 12, de junho de 1975, da Carta Mensal do DOPS/SP, há uma série de transcrições de panfletos e jornais apreendidos na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Fazia-se campanha para a representação estudantil no DCE.
Um dos panfletos, "União e Organização - Plataforma para o DCE", dizia respeito à campanha de anistia. Como outros da mesma época, reivindicava-se a anistia com a punição dos torturadores da ditadura militar:
1. Liberdades democráticas para o Brasil: a) abolição do Ato Institucional nº 5, além de outros Atos Institucionais; b) anistia geral para os presos políticos; c) retorno integral da instituição do Habeas Corpus; d) fim da tortura e punição dos responsáveis;Para voltar a 2014 e encerrar esta breve nota, lembro que é um tanto desalentador notar que os três candidatos à presidência da república mais bem colocados nas pesquisas até agora divulgadas são a favor da anistia do governo militar. A esse respeito, sugiro a leitura do comentário de Mário Magalhães.
Em situações como esta, percebemos que o establishment político de hoje está aquém da luta de ontem contra a ditadura, o que deveria levar a indagações sobre os valores democráticos desses políticos profissionais.
Felizmente, há nomes que defendem bandeiras que honram os setores da sociedade brasileira que resistiram contra o regime autoritário (parcela da população foi indiferente, e outra o apoiou), e creio que é neles que se deva votar, tendo em vista a atualidade de vários aspectos dessa luta, e a relação entre liberdade e prática.
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