O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Desarquivando o Brasil XCVI: Notas sobre o 20 de Novembro e o racismo na ditadura

A ditadura militar tardou em revogar a lei de estrangeiros racista editada por Getúlio Vargas no fim do Estado Novo. Tratava-se do decreto-lei n. 7967, de 27 de agosto de 1945, que priorizava os europeus na política migratória (o Brasil tinha política de cotas para brancos, o que é convenientemente esquecido pelos que combatem os movimentos étnicos). No entanto, a ditadura acabou por fazê-lo com a lei n. 6815, de 19 de agosto de 1980.
Bem antes disso, ela havia ratificado a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da ONU, celebrada em 1966. Ela foi promulgada, no Brasil, pelo Decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969, já no governo Médici.
Tratava-se de uma exceção na política isolacionista em relação ao direito internacional dos direitos humanos. Os militares tiveram o cuidado de deixar o Brasil de fora do Pacto de São José da Costa Rica, dos Pactos de 1966 da ONU, entre outros tratados dessa matéria.
No entanto, a exceção era bem explicável: o Estado brasileiro ratificou a Convenção sem fazer a declaração facultativa que permitisse ao Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, criado pelo tratado, receber denúncias individuais ou de grupos de vítimas, que alegassem a violação dos direitos previstos. Essa competência do Comitê, prevista no artigo 14, só foi reconhecida pelo Brasil em 2002, e foi objeto de promulgação com o Decreto Federal no 4.738, de 12 de junho de 2003. Enfim, apenas no governo Lula essa possibilidade de reclamação internacional foi aberta - para uma Convenção promulgada nos tempos de Médici...
Ademais, a adesão do Brasil reforçaria o discurso da "democracia racial" no país. E, como o mecanismo ficou internacionalmente ineficaz no tocante ao Comitê, a Convenção não poderia ser perigosa à ditadura brasileira.

Preocupada com a imagem internacional do governo, a ditadura militar sempre buscou negar as acusações de genocídio dos índios e de racismo. Apontei, em nota deste blogue sobre a edição de 1980 do Tribunal Bertrand Russell, documentos do Serviço Nacional de Informações negacionistas do racismo.
Denúncias de racismo, dessa forma, despertavam a atenção do Ministério do Exército, como se pode ver neste documento confidencial de 1972.
No caso, um estudante negro de direito impedido, em 1972, de entrar em clube social em Santos, o Caiçara Clube, tentou mover a justiça. O Ministério Público acabou pedindo a absolvição, considerando que não havia sido provado que foi o racismo o que vedou a entrada do estudante.
Um incidente de "discriminação racial", como classificaram as autoridades do Exército, sem relação com o que os incautos poderiam achar que era a segurança nacional, e, aparentemente, de dimensão apenas local, despertava atenção das autoridades militares. Isso ocorreu mais de uma vez, o que mostra como a questão era sensível para o regime.

Nesta outra nota, venho apenas lembrar que o vinte de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, era uma antiga reivindicação dos movimentos dos negros. Vejam, ao lado, este relatório sobre a manifestação desse dia em 1979, que contou com até 600 pessoas, e terminou com o lema "20 DE NOVEMBRO DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA".
Vejam também a presença dos grupos de homossexuais com as reivindicações dos negros. Tratava-se de reivindicações que incomodavam a ditadura, mas também parte da esquerda. Lembro agora de João Silvério Trevisan criticando a "esquerda ortodoxa", que se mostrava refratária aos homossexuais, negros e feministas: "Se, para essa esquerda, a sexualidade e o racismo eram temas incomodamente discutidos fora dos parâmetros da luta de classes (ou 'luta maior', em sua gíria), o aborto podia criar desagradáveis atritos com a Igreja Católica progressista" (Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade, 3a ed., Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 338).
Theodosina Ribeiro, que estava presente na manifestação, foi a primeira mulher negra a ser vereadora em São Paulo (em 1974) e a primeira a se tornar deputada estadual por SP.

A violência policial apresenta estatisticamente uma preferência pela pele negra. Já escrevi, em outra nota deste blogue, como a tortura e a execução de um homem negro, Robson Silveira da Luz, em maio de 1978, serviu para alavancar o Movimento Negro Unificado, e foi assunto da seção de São Paulo do Comitê Brasileiro pela Anistia.
No "Relatório confidencial" do DOPS/SP que reproduzo, vê-se a preocupação com a eventual criação de um partido socialista no Brasil (os militantes acabariam presos em 1978 pela Operação Lótus) e, no âmbito desse partido, com os militantes negros.
O delegado Luiz Alberto Abdalla acabou sendo condenado, porém jamais foi preso. Nesse documento, vemos a posição oficial de que o racismo era uma bandeira inventada pelos comunistas como estratégia de guerra psicológica adversa. A frase atribuída ao delegado, "Negro tem que ir pro pau", na denúncia pelo Folhetim em 14 de maio de 1978, recebe essa interpretação, bem como a obra de Clóvis Moura e a de Florestan Fernandes. Sobre os socialistas, lemos isto:
Dentro desta Frente, há um movimento denominado "AFRO LATINO AMÉRICA" de cunho nítidamente [sic] revanchista que procura incutir o racismo no negro contra os "dominadores brancos", e distorcer a miséria, este grave problema social - que aflige a todos indistintamente, principalmente a população da periféria [sic], como sendo privativa do negro.
[...]
Assim sendo, a toda ocorrência policial envolvendo elemento de origem negra, é de se esperar uma repercussão acima da expectativa para ser reivindicada a aplicação da Lei Afonso Arinos.
A Lei Afonso Arinos era a legislação antirracismo da época, de pouca efetividade, por sinal. Não por falta de ocorrência do preconceito, é claro, mas pela forte disposição das autoridades em negar a discriminação racial.
Caso de racismo em Salvador, desta vez, gerou este parecer não assinado de 1971, do Centro de Informações do Exército (CIE). Outro caso comum na história do racismo no Brasil: a proibição de entrar no "elevador social", essa forma tão degradante de divisão racial do espaço na arquitetura brasileira.
Vejam que o síndico alegou que se tratava de "questão interna" do prédio, como se violações de direitos humanos fossem mera anotação a ser apagada em ata de reunião condominial.
O Ministério do Exército viu melhor, percebeu que não era simples "questão interna", mas de forma torta: não se incomodou com a violação de direitos humanos (afinal, a ditadura militar, ela mesma, fundamentava-se na prática de crimes contra a humanidade, como tortura, desaparecimento e genocídio). O que chamou a atenção foi a possibilidade de a imagem do governo ser arranhada pelo episódio.

Depois, o parecerista trata de pessoas famosas. Vejam a referência aos artistas que estariam "explorando"  a questão por oportunismo (algo bem ridículo de se dizer de um artista negro como Tony Tornado), e que alguns o fariam por viverem "na subversão e no terrorismo".
Janete Clair, "comunista fichada", era culpada de abordar o assunto na telenovela "O homem que deve morrer".
Não vi essa obra. Vejo que os personagens principais eram todos brancos, e nisso a novela não se distanciava do racismo estrutural da tevê brasileira. Ruth de Souza, embora estivesse presente, nem aparece na galeria de personagens que a Globo fez para essa novela no seu sítio de "Memória". Na abertura, ouvia-se "Deus criou vidas. Não criou raças." O vilão, nazista, recebia o coração de um jovem negro.
Alguns podem achar surpreendente, tendo em vista a decadência jornalística que se seguiu, mas não estava errado considerar a Abril, nessa época, uma editora com "tendências esquerdistas".
Uma canção de Marcos e Paulo Sergio Valle, "Black is Beautiful", é mencionada; na letra, após a menção aos "brancos horríveis" na "Rua do Ouvidor", celebra-se a miscigenação com um "deus negro do Congo ou daqui".
Elis Regina, "que registra antecedentes de agitação subversiva no meio artístico", lembrou o parecerista do Exército, gravou-a no disco "Ela", de 1971, que confirmou o flerte com o rock começado em "Em pleno verão", do ano anterior, e o fim do purismo nacionalista, gravando ao mesmo tempo "Estrada do sol", de Tom Jobim e Dolores Duran e "Golden slumbers", de Lennon e McCartney. Pode-se vê-la apresentando a canção dos irmãos Valle em especial da tevê alemã.

Não sei se essa música foge muito do estereótipo do homem e da mulher negros como objetos de cobiça sensual, mas ela era provocativa para as autoridades. De qualquer forma, como, historicamente, a miscigenação no Brasil deu-se por meio do estupro das mulheres índias e negras por brancos, é interessante, em termos de gênero, ouvir o inverso. A gravação do compositor, além de ser muito inferior vocalmente à de Elis (como era de se esperar), é também desinteressante por esta razão: qual é a surpresa em ouvir que ele quer "uma dama de cor"? Se ao menos ele tivesse cantado a mesma letra que Elis interpretou...
Outro caso relatado no parecer foi o da cantadora Carmen Silvia no programa de Silvio Santos, da tentativa de alugar apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo.
Vejam que a preocupação oficial não era de atacar o racismo, mas de simplesmente de impedir que denúncias como essas viessem à tona, por meio do controle dos meios de comunicação social.
Eis os limites da esfera pública em uma ditadura.
Quando se fala em racismo na ditadura militar, são recordados casos famosos como o da censura a "O mestre-sala dos mares", de João Bosco e Aldir Blanc, e à telenovela "A escrava Isaura". É necessário lembrar das milhares de vitimas anônimas do racismo, que poderiam, no entanto, despertar a atenção vigilante do aparato de repressão da ditadura, se suas denúncias chegassem à esfera pública.
A data do 20 de novembro é uma oportunidade de pensar em conjunto a questão. Deveria ser feriado nacional.

P.S.: Todos os documentos foram encontrados no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).

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