O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 23 de novembro de 2014

Desbloqueando a cidade X: Marcha da Consciência Negra, São Paulo, 2014



No dia 19 de novembro, ocorreu à noite, na Alesp, um evento sobre a Consciência Negra, com os deputados Adriano Diogo e Leci Brandão e o SOS Racismo. Saí de lá pouco antes das 21 horas, havia muita gente.
À tarde, montava-se uma exposição. Eu trabalhava em frente, e ouvia às vezes o que diziam, quando estavam mais perto da sala. Parecia que o assunto constante era o assédio e a violência da polícia, e os casos eram infindáveis.

Era uma preparação para o dia 20 e a XI Marcha da Consciência Negra, que partiu à tarde do MASP para o Teatro Municipal.
O evento era inclusivo, como deve ser uma política antirracista. Vi diversas bandeiras, inclusive esta, de lésbicas anarquistas.


Nesta foto, a bandeira do Levante Popular da Juventude, com Lira Alli, e, mais atrás, a reivindicação de "Constituinte já", que parcelas da esquerda defendem, crendo que não serão derrotadas pelo momento mais conservador. A marcha apoiava esse clamor por uma assembleia constituinte.

Havia um rapaz solitário que levava uma bandeira do que me pareceu ser o PC soviético; enorme faixa fazia paralelo entre os palestinos e os negros, e dois jovens lembravam do assassinato de um importante líder político negro que acabou indo para a luta armada durante a ditadura militar: Marighella.

Outros grupos de esquerda buscavam equacionar as demandas de consciência étnica e de consciência de classe.


Mais bandeiras de grupos e organizações. A Unegro, a Uneafro, o Círculo Palmarino, a Central de Movimentos Populares (Gegê lá estava), o Congresso Nacional Afro-Brasileiro, Conlutas. A CUT também estava. Entre os partidos, os pequenos de esquerda: PSTU, PCR...

Não consegui captar muita coisa em razão das limitações de meu celular antigo e de minha falta de talento para a fotografia. As fotos, porém, talvez sirvam para a memória.

A esquerda e a extrema esquerda apareceram. Mas a direita não parecia estar presente em uma marcha contra o racismo, o que é bem significativo do estado da discussão no Brasil. Lembremos que parte da direita adota a estratégia racista de negar a existência de discriminação racial. A pequena presença de políticos também era digna de nota (vi, é claro, Adriano Diogo, que não conseguiu eleger-se em 2014 para o Congresso Nacional).

Um coletivo em homenagem ao grande geógrafo, negro, Milton Santos.

O Sindicato dos Metroviários.


Eu não sabia da existência deste coletivo, Rua, que incluiu nas reivindicações a descriminalização da maconha.

Um poeta morto foi às ruas: Paulo Leminski, nas camisetas do Rua.
O poema é ligeiramente diferente, segundo o Toda poesia (uma edição um tanto equivocada de sua poesia completa, que não manteve as variantes dos poemas e desfigurou os livros dessa obra):
Ainda vão me matar numa rua.
Quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade.
Integrava originalmente Quarenta clics em Curitiba, de 1983.
Creio que o poema, embora ainda não tenha bem definido o ritmo que Leminski criaria para si pouco depois, foi uma boa escolha do grupo: "Ainda vão em matar numa rua" não é paranoia, e sim estatística.
Uma das campanhas da Anistia Internacional chama-se, simplesmente, "Jovem negro vivo": "Em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticado por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados."
Grupos como as Mães de Maio, de vítimas da violência policial, falam abertamente em genocídio da juventude negra.

No entanto, não há respostas institucionais suficientes contra esse quadro, notadamente da parte do Judiciário.
Ao lado, mais fotos da caminhada, que desceu a Consolação em direção ao Teatro Municipal, passando em frente à Biblioteca Mário de Andrade.





















O Costa, do SOS Racismo, está à frente e ao meio. A marcha estava bem próxima do Teatro Municipal.

Este foi o início da concentração das faixas nas escadarias do Teatro.
Por sinal, a primeira ópera que será encenada ano que vem nesse teatro, segundo a faixa amarela à esquerda, será o Otello de Verdi. Uma tragédia em música que tem, no centro, a questão da discriminação racial.

Mais bandeiras. No fundo, o Shopping Light.
Foram lidas as reivindicações: reforma política; reforma da mídia; desmilitarização da polícia, fim dos autos de resistência e oposição à redução da maioridade penal; destinação de mais recursos para as políticas de inclusão racial; implantação das leis antirracismo e de promoção da população negra; o direito de expressão das religiões de matriz africana; oposição ao machismo, ao feminicídio e à violência contra a mulher negra.


Nesse momento, foi incluído um item "contra a homofobia" que não aparecia no panfleto entregue durante a marcha.
De duas leis, a implantação era cobrada: a 10639 de 2003, para ensino de História da África e da cultura afroabrasileira, e a 12981, de 28 de maio de 2014, que eu não conhecia.
Seu texto é curtíssimo; ele oficializa o "Hino à Negritude", do "Professor Eduardo de Oliveira".









Leio, na justificativa do projeto de 2007, de autoria do deputado federal Vicentinho, que a proposta havia sido apresentada pela primeira vez em 1966; depois, em 1993 e 1997, cada vez por um deputado federal diferente (Teófilo Ribeiro de Andrade Filho, Nelson Salomé e  Marcelo Barbieri).
O relatório da Comissão de Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados foi bastante sucinto e eliminou o artigo que criava prazo para o Executivo regulamentar a lei, o que foi considerado inconstitucional.
O projeto não apresenta a partitura, mas é possível ouvir a música, um lugar comum dos hinos, na voz do autor.
A letra é ruim e não cumpre o que anuncia, contar a história dos negros no Brasil.
Destaco este trecho, farto dos clichês hínicos do ufanismo varonil:
Ergue a tocha no alto da glória
Quem, herói, nos combates, se fez
Pois que as páginas da História
São galardões aos negros de altivez

Levantado no topo dos séculos
Mil batalhas viris sustentou
Este povo imortal
Que não encontra rival
É um hino que nasceu velho.

Como sempre, a polícia registrava o evento. Pesquisadores do futuro, ao consultarem os arquivos policiais sobre as manifestações nesta cidade, encontrarão farto material, provavelmente revelador também do olhar policial, do que as autoridades consideravam perigoso.
Verão, talvez, que não era o racismo, embora seja conduta criminosa, a principal preocupação dessas autoridades, e sim vigiar o combate à discriminação racial.

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