Terei que deixar de frequentá-la, porém, pois ela está a fechar, depois de 63 anos de atividade. No fim do ano passado, tive uma rara conversa com Milena Duchiade, e ela afirmou que estava difícil mantê-la. Não me surpreendi, por isso e pela decadência geral daquela cidade e das mudanças nos mercados de bens culturais, que já tinham vitimado a loja de discos Modern Sound.
Eu estava procurando, naquele dia, um título da Cultura e Barbárie. A livreira falou que era a Da Vinci a única a ter os livros dessa editora no Rio de Janeiro - são conhecidas as tremendas dificuldades de distribuição que impedem as pequenas editoras de distribuir seus títulos nas grandes redes.
Na matéria que indiquei acima, vemos a inteligência e a lucidez da livreira que identifica sem ilusões as razões que levaram ao fim da Leonardo da Vinci: não ter café (o Diagnóstico do Setor Livreiro de 2009 apontou a tendência de as livrarias se tornarem prestadoras de outros serviços, que não as vendas de livros), não vender informática, ter pouquíssima autoajuda e, finalmente, o estado lastimável em que está o centro do Rio de Janeiro, sob pó e pedra, que acabou de soterrar os negócios.
Li recentemente que as livrarias independentes voltaram a crescer... em Nova Iorque. Mas o Brasil é outra coisa.
A livraria continuaria se tivesse criado uma seção de livros de colorir? Haveria mais chance, e ainda mais se vendesse também lápis de colorir. Vejam esta lista de mais vendidos ("Publishnews"), de 11 a 17 de maio deste ano: http://www.publishnews.com.br/telas/mais-vendidos/Default.aspx?data=22/05/2015&tipo=semanal
Entre os vinte mais vendidos, 118825 livros de colorir. Do resto, todos os gêneros confundidos, 51637. Quase setenta por cento da quantidade de exemplares vendidos, que vieram de oito títulos, isto é, quarenta por cento da lista.
Uma perda de fôlego dos lápis de cor, deve-se ressaltar. Na semana anterior, os mesmo oito títulos haviam atingido setenta e oito por cento das vendas dos "vinte mais"...
Esses livros, além de ostentarem a virtude altamente inclusiva de não exigir muitas capacidades de leitura, sempre raras no país, possuem um caráter antiestressante certamente bem recebido pelo público. Faço notar que, nesses dois aspectos, tais obras são o oposto do que grande parte da literatura exige, que demanda letramento e não promete, em troca, uma terapia.
No entanto, em defesa dessa literatura, provavelmente a mais condizente com o momento, lembro que ela apresenta certas virtudes de algumas vanguardas, como o apelo sensorial e a interatividade com o público, que não pode ficar passivo diante da obra... Ademais, para os críticos dos livros eletrônicos, que vivem uma fase de declínio, os livros de colorir representam uma espécie de triunfo, talvez o triunfo possível neste país, dos livros impressos.
Talvez eles tenham sobretudo o apelo da nostalgia: eles remontam a época escolar, única, para a maior parte das pessoas, em que há um contato com o livro. Vejam, na pesquisa do Instituto Pró-Leitura, a queda no índice de leitura de 36 a 28% entre 2009 e 2011 (reiterada em pesquisa da Fecomércio-RJ divulgada em abril de 2015); a diminuição, tanto em números percentuais quanto em absolutos, do número de leitores entre 2007 e 2011 (de 95,6 para 88,2 milhões) - sendo leitor aquele que leu pelo menos parte de um livro nos últimos três meses antes da pesquisa. Dezesseis por cento dos não leitores são estudantes, naturalmente, em um país em que analfabetos logram obter diplomas de curso superior em instituições privadas.
O gráfico que mais me doeu foi este:
Além da queda da média, que foi de estonteantes 2,4 livros em 2007, verifica-se o papel da escola, e é provavelmente o que assegura o primeiro lugar de Monteiro Lobato entre os escritores mais admirados em 2007 e 2011. Quando se vê a "leitura por gêneros", até a Bíblia caiu. Subiram, no entanto, contos (eu não sabia disso antes de publicar Cidadania da bomba...) e livros religiosos. Relembro o Diagnóstico do Setor Livreiro de 2009, que apontou os gêneros de literatura infantil e juvenil como os mais vendidos pelas livrarias brasileiras.
O projeto de lei sobre preço fixo do livro, portanto, embora possa ter um impacto positivo sobre as livrarias independentes, não ataca as raízes do problema, que é o do desaparecimento gradual de algo que mal chegou a aparecer no país, que é a leitura.
Por sinal, a própria livreira, na condição de representante das Associações Estadual de Livrarias do Rio de Janeiro e da Nacional no II Seminário do Livro e da Leitura, creio que em 20 de maio de 2010, disse algo parecido na Câmara dos Deputados:
O último ENAF - Estudo Nacional sobre Alfabetização Funcional, diz que apenas 25% dos alfabetizados - assim considerados como tal - têm capacidade plena de leitura. Ou seja, apenas 25% daqueles que, teoricamente, saberiam ler, e dessa base estamos excluindo os realmente analfabetos.
A produção editorial, dados da CBL de 2008, foi de 211 milhões de livros para uma população de 190 milhões de habitantes, o que dá 1,1 livro produzido por ano por habitante. Desse total, a maior parte foi comprada pelo Governo, como já foi dito aqui pelo representante da Belelivros. O Governo brasileiro é um dos maiores compradores de livros do mundo; o livro didático é a grande válvula de escape das editoras, e as compras governamentais sustentam a indústria editorial. Não houvesse isso, se retirarmos dos 211 milhões de livros os 120 milhões ou 130 milhões comprados pelo Governo, sobrará quase nada.
Quase nada, ressalta-se. Imagino (mas sem dados empíricos) que, como a educação é cotidianamente sabotada no Brasil (o espancamento de professores por governos reeleitos é, na verdade, uma realidade que todo dia ocorre em nível micropolítico), seja pelos governos, seja pelos empresários da área, o contato com o livro que ocorre na infância não consiga formar leitores, apesar das compras governamentais. Outra questão, que nem sonho enfrentar agora, está nos impactos dessas compras na pauta editorial e na literatura.
Milena Duchiade, na mesma ocasião, falou de pesquisa financiada pela Câmara Brasileira do Livro, o Sindicato Nacional dos Editores, a ANL e a AEL, a partir dos dados da Pesquisa de Orçamento Familiar - POF, do IBGE. Os dados eram do início do século. É interessante ver que, se os mais pobres de fato não têm como comprar o livro, os mais ricos não o querem, simplesmente:
São esses os que poderiam ter comprado os livros da Leonardo da Vinci, e não o fizeram, bem como de outras livrarias. O número delas vem diminuindo no Brasil, como havia ressaltado a livreira na Câmara dos Deputados:
As despesas das famílias se distribuem nessa ordem; primeiro, os aparelhos eletroeletrônicos e seus conteúdos; depois, a telefonia celular - as famílias despendiam já em 2002 e 2003 mais dinheiro com telefonia celular, assinatura e aparelhos, do que com todo o lazer fora de casa (parque de diversões, discoteca, forró, motel, cinema, teatro, tudo, enfim). Só depois vem a leitura. Nessa área, mais da metade, 53%, entre jornais e revistas, mais leitores de revistas do que de jornais. Depois, vem o livro didático pago, porque o livro didático não pago entra como doação, embora apareça na pesquisa. As pessoas informam se receberam o livro em doação.
Então, primeiro, jornais e revistas: 53%; depois, livros didáticos: 20%; livros em geral: 10%, sem ser didático. Quase o mesmo gasto em fotocópias. Em relação ao livro técnico, gastava-se, em 2002-2003, mais dinheiro com fotocópia do que com livros técnicos.
Os senhores poderão afirmar: "É porque o livro é caro. É porque não tem". Não. Foi estratificado esse gasto por renda familiar e por nível de instrução do chefe da família, da pessoa de referência da família, para não chamar de chefe e ser politicamente correta. Apenas um quarto, 25% das famílias cuja renda familiar está acima de 15 salários mínimos gasta algum dinheiro com livro não didático. Portanto, não é uma questão de renda, porque elas gastaram com televisão, com telefone celular, com outros itens.
O livro não tem valor. Como disse a professora, o livro, na esfera simbólica, não é considerado um prêmio, não é considerado um valor, mas um castigo. Essa é uma questão extremamente grave.
Então, os senhores poderiam ainda afirmar: "Mas existem as pessoas com instrução. Elas são a nossa salvação". Engano. Menos de 30% das famílias cujos chefe têm nível superior - vejam: não é que tenha largado a faculdade; ele completou - continuam comprando livro. Compram outras coisas, mas não compram livros. Temos de enfrentar essa situação real.
Trouxe dados que o IBGE publicou, semana passada, em cima da pesquisa Perfil dos Municípios Brasileiros - 2009, baixados download grátis no site do IBGE.Talvez este último problema esteja relacionado com certas instituições de ensino superior, que aumentaram em número com os governos de Fernando Henrique Cardoso e, com a política para o ensino superior das administrações do PT de jogar milhões de recursos públicos em sofríveis instituições privadas, agravaram um curioso tipo de analfabetismo: o diplomado. Creio que, nesse sentido, a universidade, no Brasil, vem agravando o problema do analfabetismo.
Essa pesquisa foi feita com base em informações que as 5.565 Prefeituras Municipais de todo o Brasil fornecem. Foram comparados os dados de 2009 com os de 1999. O número de municípios que possui livraria baixou de 35% para 28%. Significa dizer que entre 1999 e 2009 um grande número de municípios deixou de ter, pelo menos, uma livraria.
Entretanto, vamos analisar o que sucedeu no tocante às unidade de ensino superior. Aumentou 95%, no período, o número de municípios que possuem instituições de ensino superior. Para se ter ideia, no Brasil há mais municípios com unidades de ensino superior - 2.132 - do que municípios que possuem livrarias, 1.557, segundo esses dados. [...]
Temos, então, esse paradoxo: quase 600 municípios onde existe uma instituição de ensino superior - que instituição de ensino superior será essa, não me perguntem, não me comprometam - não possuem livraria alguma!
Voltando à Leonardo da Vinci: li muitas pessoas contando suas histórias da livraria; algumas delas mostram a generosidade de Dona Vanna, que é mesmo uma figura ímpar. Minha memória vai em outra direção: o tempo que o centro do Rio de Janeiro tinha livrarias (continuam existindo, mas em número menor: Berinjela, Folha Seca, o Paço Imperial e outras), muitas delas dedicadas aos livros usados: a Praça Tiradentes era cercada de sebos, e isso acabou (segundo Thiago da Silva Santos, o impacto da Estante Virtual contou para essa extinção). A Livraria Brasileira, tão próxima da Leonardo da Vinci, do outro lado da avenida Rio Branco (no edifício Avenida Central), era a minha preferida e fechou em 2005; a Livraria São José (já bem decadente), também com uma história de uma clientela de intelectuais, em 2014.
Creio que deva ser lamentado o fim de mais uma livraria com livreiros, isto é, pessoas que conhecem os livros, o que as grandes redes (onde a precarização das condições de trabalho é a regra) não têm nem desejam; o fechamento de um lugar onde livros menos óbvios, ou de pequenas editoras e autores independentes, que não lograr chegar às grandes redes, são encontráveis ou encomendáveis (redes como a Livraria Cultura, por exemplo, não encomendam certas editoras); e, finalmente, um lugar de sociabilidade que as lojas virtuais não podem proporcionar. Livrarias como a Leonardo da Vinci são espaços para encontro, o que é tão necessário, especialmente neste momento em que o espaço virtual parece estimular acirramentos vazios de fanatismos satisfeitos de si mesmos e bolhas sectárias de opinião.
P.S.: Na foto, meu gato (um animal que gosta de livrarias), mostrando que a Leonardo da Vinci fez a cabeça dele.
P.S.2: Um terço das vendas mundiais dos livros de colorir Jardim Secreto e Floresta Encantada ocorreu no Brasil, segundo a notícia do Publish News.
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