O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 22 de junho de 2015

As Mães de Maio, ou os movimentos sociais pensam o mundo

Comecei a escrever isto no twitter, vendo pessoas governistas atacando as Mães de Maio. Para a gente infame, ou cuja leviandade é tão extrema quanto sua desinformação, que diz que as Mães de Maio são linha auxiliar do PSDB, sugiro, caso saiba ler, ao menos estes links, entre centenas de outros:

Para os governistas que não sabem ler, aconselho estas figuras do facebook:



O blogue das Mães de Maio poderia bastar, no entanto: http://maesdemaio.blogspot.com.br/

Principalmente recomendo o relatório que mostra que os ataques do PCC foram motivados pela criminalidade do Estado: São Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institutcional em Maio de 2006.
O relatório pesquisa como o crime organizado dentro da administração pública no Estado de São Paulo achacava o crime organizado não oficial (o PCC), o que foi um fator determinante para o assassinato de 43 agentes públicos pelo PCC em 2006, e como policiais encapuzados e integrantes de esquadrões de extermínio executaram aleatoriamente centenas de pessoas, em "'caças aleatórias' de homens jovens pobres" (p. 58).
Esse importantíssimo documento, elaborado pela International Human Rights Clinic da Universidade de Harvard e publicado pela Justiça Global, é muito conhecido. Lembro dele porque: a) foi realizado em colaboração com as Mães de Maio, entre outras entidades, e denuncia o estado desastroso da segurança pública na administração do PSDB em São Paulo; b) porque ele mostrava, em 2011, que nada havia sido resolvido e as chacinas poderiam voltar a acontecer.
O relatório mostra como o Estado já sabia do planejamento dos ataques, mas não alertou os agentes públicos (p. 62-70); se o tivesse feito, vidas de policiais poderiam ter sido salvas. Em maio de 2006, quando foi deflagrada a matança, houve uma "resposta" que o relatório indica que não foi espontânea, mas controlada:
Dia 17 foi quando a Folha de S. Paulo publicou em sua capa a manchete intitulada "Polícia prende 24 e mata 33 em 12h", a primeira grande matéria na mídia que começava a dar dimensão à resposta violenta da polícia. O declínio drástico das pessoas mortas por policiais após essa data sugere que havia um grau de controle centralizado sobre a violência policial naqueles dias.[p. 129] 
O relatório  mostra que questões deste tipo, "como um mero investigador da Polícia Civil em Suzano conseguiria montar e manter uma verdadeira central volumosa de achaques, com alvos que incluíam até os supostos líderes do PCC, sem o aval de superiores no aparato da segurança pública?" [p. 141], levaram à queda do secretário de segurança pública, e que "A escala de corrupção na Polícia Civil é assustadora." [p. 144].
Nesse confronto de crimes organizados, dentro e fora do Estado, centenas de cidadãos foram mortos: "O PCC existe em função do Estado." [p. 183] e ele "foi fortalecido através da corrupção de vários agentes públicos, que estabeleceram com seus membros relações baseadas em benefícios mútuos e achaques. Assim chegou-se a maio de 2006, quando a população foi feita refém e sequer soube do papel da corrupção policial, dos achaques, na deflagração da crise." [p. 184].
As Mães de Maio sabem disso e, por essa razão, escreveram que "A rebelião não será gourmetizada" e responderam firmemente aos políticos profissionais de esquerda que acham legal a incitação de violência policial contra movimentos populares.

Tendo notado o absurdo ululante da caracterização das Mães de Maio como "linha auxiliar do PSDB", tento entender mais dois pontos inquietantes: o pedido de violência policial contra movimentos sociais e sua subestimação por militantes da esquerda governista.

Primeiro ponto: Aqui, a reincidência é clara. Não podemos esquecer que os governistas pediram a repressão contra os manifestantes em 2013. E continuaram a fazê-lo depois, sempre enquanto estiverem no poder. São inesquecíveis, em sua reconhecida erudição e célebre ausência de preconceito de classe, os escritos (de até 140 caracteres) do sociólogo Emir Sader em maio de 2014 chamando os militantes do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) de vira-latas, aplaudindo a violência de parte da torcida do Coríntians contra os sem-teto, e pedindo mais violência. Vejam o texto de Thiago Aguiar, "Justiçamento" contra o MTST: a decadência de Emir Sader:
Naquele dia, manifestantes do MTST e de outros movimentos sociais marcharam da ocupação Copa do Povo em direção ao estádio Itaquerão, na Zona Leste de São Paulo, para reivindicar moradias e questionar a contradição entre os gastos com a Copa do Mundo e as carências sociais do país. Sader não demorou muito para escolher seu lado: entre trabalhadores pobres sem-teto e os interesses das empreiteiras e empresas que lucram bilhões com a Copa (e que não por acaso financiam o partido a que serve), optou pelos últimos, chamando os manifestantes de “vira-latas”. [...] Sader é a imagem refletida no espelho de figuras como Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino, que mostram diariamente como a velha direita é igualmente incapaz de apresentar qualquer alternativa ao Brasil. 
Por sinal, quando a Boitempo publicará as intervenções desse intelectual nas redes sociais? Seria um livro urgente...
Como o deboche ainda não tinha chegado ao nível de acinte, o intelectual escreveu mais uma vez sobre participação popular em junho seguinte; na verdade, sobre o malfadado projeto de conselhos de participação popular, que nada tinha demais e despertou a ira da direita, que costuma rugir ao ser lembrada da expressão soberania popular.
Talvez essas duas manifestações, a de maio e a de junho de 2014 (ele escreveu diversas coisas em ambos sentidos), de Emir Sader, embora aparentemente opostas, possam ser entendidas como oriundas do mesmo pressuposto: amor aos movimentos sociais, mas aos que podem ser controlados por este governo. Os demais devem ser reprimidos.
Vi, faz pouco, o contraste entre esses dois tipos de movimentos, os governistas e os criminalizados. Na UnB, o MST elogiando o governo federal, com ninguém menos do que Gilberto Kassab responsável pelo Minha Casa, Minha Vida, enquanto os índios e os extrativistas criticaram-no.
Esta nota das Mães de Maio no facebook, em fevereiro de 2015, aponta como se irmanam os partidos de ideologia aparentemente conflitante: "os Crimes de Maio de 2006 - que tem nas suas mais de 600 mortes as digitais do Sr. Geraldo Alckmin do PSDB."; "o PT tem outros B.O.s nas costas, além de seguir contando com uma série de governadores violentos que o alto comando do partido prefere blindar a exigir qualquer tipo de transformação"; os partidos se aliam, e o povo continua refém "dos poderosos".

Segundo ponto: os governistas escreveram que era claro que as "coitadas" não teriam capacidade de escrever o que sai publicado pelo movimento, o que seria uma prova de que elas estariam sendo usadas para atacar um legítimo governo de esquerda e um seminário idem.
Isso não surpreende: o ódio aos movimentos populares que não sejam manipuláveis está aliado a ideia de que um movimento, por ser popular, deve ser manipulável, não possuir autonomia, tampouco inteligência. O povo somente pode existir, nessa mentalidade governista, como instrumento de referendo do governo. Qualquer discursos mais articulados de oposição são rechaçados por essa gente que tem o desplante de se dizer de esquerda, a partir da deslegitimação de sua origem, a partir deste pressupostos elitistas: se é popular, está conosco, e, se é inteligente, não poderia ser popular...
A inteligência política das Mães de Maio pode ser constatada nas suas estratégias e nos seus pronunciamentos. Vejam, por exemplo, a fala de Débora da Silva na audiência da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" sobre o esquadrão da morte em 15 de outubro de 2014. Cito um trecho do relatório da Comissão da Verdade do Estado de S. Paulo "Rubens Paiva":
Os crimes se estenderam na atualidade e a constatação é que as instituições que cuidam da segurança das pessoas agem do mesmo modo. Foi nesse contexto que a Comissão da Verdade “Rubens Paiva” recebeu o depoimento de Débora dos Santos, fundadora do “Movimento Mães de Maio” – organização das mães dos 600 jovens vítimas de extermínio da polícia paulistana em 2006.

Sou irmã de um desaparecido do tempo do Esquadrão da Morte. Na época eles colocavam os meninos dentro da viatura, depois matava e desovava dentro de um córrego. Geralmente faziam corte na barriga. A gente tem depoimento [que explica]. Após um cabo ser exonerado do cargo, ele era vigilante, começou a contar o que acontecia. Ele colocava os meninos dentro da viatura, depois desovava, matava e desovava com corte na barriga. E ele conta, com riqueza de detalhes, nessa época que o meu irmão desapareceu.Tenho certeza que meu irmão está debaixo da água no mangue de São Vicente [baixada santista]. O nome dele é Nicodemus Justiniano da Silva, ele desapareceu em 17 de abril de 1982. Tenho dele apenas uma pequena fotografia, eu desafiei meus pais e saí em busca do meu irmão. Uma pessoa falou com que roupa meu irmão estava. O caso caiu no arquivamento da policia e minha família colocou uma pedra no assunto. Houve o extermínio do pai dos meus filhos. Ele foi encontrado na mão da polícia que o levou dizendo que ele estava tendo uma overdose. Quando liberaram o corpo dele, o médico legista conversou comigo: seu marido usava droga? Eu disse que não acreditava que foi overdose e comecei a insistir. Ele recolheu o corpo e fez a autópsia e qual foi a surpresa? A causa da morte foi traumatismo craniano e traumatismo exposto no braço direito.
Além do irmão e do marido, em 2006 Débora perdeu seu filho, Edson Rogério da Silva, assassinado no dia 15 de maio de 2006, aos 29 anos. Isso para ela foi determinante:
Foi crucial, vi minha mãe esperar a justiça sentada no sofá, vi minha sogra calada e não tocar no assunto. Quando me deparei, tive que reagir para não ver meu neto fazer o mesmo. Fui à luta para tentar transformar o que é corriqueiro na constituição desse país, a morte desse menino e tantos outros jovens. A baixada santista é o curral dos grupos de extermínio, não é à toa que lá tinha arquivo do Dops e o navio Raul Soares.
Ela, ao contrário de tanta gente na academia e na imprensa, entendeu muito bem as continuidades entre a ditadura militar e o regime democrático de hoje. E ela não tem formação universitária...
Há pouco publiquei neste blogue uma pequena nota em que contava algumas das coisas que ouvi das Mães de Maio em um seminário na FFLCH/USP. As "coitadas" ocupam as ruas e os espaços universitários, e no encontro estavam, entre outros, o professor Paulo Arantes, da Filosofia, e Anderson Gonçalves, da faculdade de Letras, com quem conversaram em pé de igualdade. Lembro de uma lição ética: elas disseram que não são coitadas, pois não se curvam para o Estado (ao contrário, lembro, dos governistas que as acusam...) e de uma lição sociológica: Débora disse que o Movimento era um "cérebro". E, de fato, ele é um exemplo de ação e de pensamento coletivos, alimentando-se (pensamento e ação) mutuamente, o que vai muito além da questão da participação de pessoas com formação universitária no Movimento, como Francilene Gomes Fernandes, mestre em Serviço Social cujo irmão foi assassinado em maio de 2006, e que pesquisou esses crimes a partir do prisma do Movimento.
Lembrei, naquele momento, da posição de Rancière (sei que muitos sociólogos o detestam, porém), exposta em vários textos e formada a partir da pesquisa desse filósofo sobre os movimentos de trabalhadores europeus no século XIX, de que os movimento sociais são movimentos intelectuais, pois criam seus próprios textos, doutrinas, veículos de imprensa... Ademais, como lembra Rancière, achar que "intelectual" é uma profissão universitária significa achar que os sujeitos em geral não são capazes de pensar o mundo.
Imagino que a maior parte das Mães de Maio nunca leu esse filósofo, mas sua ação e seus pronunciamentos confirmam-no nesse ponto. Provavelmente os detratores das Mães não o leram também, mas elas, ao contrário deles, sabem do que falam. E agem.

P.S.: Vi que Eliane Brum mencionou a resposta das Mães de Maio no texto "Mães, onde dormem as pessoas marrons?", também de 22 de junho, e que elas criticaram o Ministério Público Federal por terem "blindado" Alckmin  com o arquivamento de inquérito sobre os abusos policiais em junho de 2013.

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