O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 26 de julho de 2015

O fechamento da Camerata Aberta e a devastação como teoria da gestão

Em algumas áreas da administração pública brasileira, parece que os titulares de algumas pastas são escolhidos ou elogiados publicamente pelos rastros de destruição que deixaram, ou seja, pelo que não deixaram, mas extinguiram e desfizeram. Esse tipo de obra parece credenciá-los para carreiras mais altas no Estado, nesta época de desmanche.
Se certamente esse é o caso da Fazenda, pode-se observar o mesmo na Educação e na Cultura. Lembrem, por exemplo, da extinção da Sinfonia Cultura.
[Acréscimo em 12 de agosto de 2015: o desmantelamento dos sistema de Rádio e de Tevê Cultura também deve ser mencionado; assinei há pouco uma petição avaaz "Eu quero a RTV Cultura viva".]

No último 22 de julho, ocorreu um dos últimos concertos do projeto Camerata Aberta, grupo musical que foi criado como o conjunto de câmara da Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP Tom Jobim), ligado à Secretaria Estadual de Cultura e à organização social (OS) Santa Marcelina Cultura.
No seu disco "Espelho d'água", publicado pelo SESC/SP, lemos que a inspiração para a criação do grupo veio nada menos do que de uma sociedade musical criada por Schönberg para promover a música contemporânea: Wiener Verein für musikalische Privataufführungen (vejam a impressionante lista das obras e compositores apresentados pelo conjunto vienense, sem paralelo com nenhum grupo brasileiro) que não durou muito, mas foi fundamental como modelo para outras sociedades musicais e para a experimentação artística.
O texto do disco, escrito por Flo Menezes, pede apoio ao grupo, o único do gênero, na época, estável no Brasil.
A chamada estabilidade dos conjuntos artísticos bancados pelo Estado é, em geral, precária, porque esses projetos não são vistos como projetos de Estado, mas de um governo, ou de um partido, ou menos do que isso: no Estado de São Paulo não há alternância política há muito tempo, o que não impede o abandono de iniciativas, estruturas, órgãos.

A qualidade da Camerata não está em discussão, e foi até mesmo reconhecida por prêmios como o da APCA de 2010 e o Bravo! em 2012. No entanto, seu coordenador e os músicos foram todos demitidos no fim do ano. Vejam que o último texto do blogue do grupo é de setembro de 2014.

Assisti ao concerto. O folheto do programa, que reproduzo nesta nota, está um pouco errado. A obra de Silvio Ferraz era a "kairos 3", e a de Aylton Escobar, "Movimentos" (os dois compositores estavam presentes); Cássia Carrascoza fez as correções antes de o grupo interpretar a obra de Ferraz.
Somente cinco dos quatorze músicos do grupo estavam presentes, por "razões administrativas", explicou a flautista. Luis Afonso Montanha, em um tour de force, tocou em todas as peças.
Sobre o concerto, tive uma sensação estranha: fiquei dividido, pois presenciava algo como um fim e me entristeci, apesar do repertório e das interpretações. Os músicos, no entanto, pareciam radiantes, inclusive Lídia Bazarian (seu disco "Imaginário" é um dos intensos testemunhos da música contemporânea brasileira), que chegou a percutir com um copo as cordas do piano aberto na peça de Aylton Escobar.
Destaco o final, que reuniu todos os músicos presentes: "Toy", de Alexandre Lunsqui, com um interessante tema rítmico, que recebeu uma interpretação mais vigorosa pela Camerata Aberta do que por estes outros músicos no Chelsea Music Festival.
Silvio Ferraz, que foi um dos fundadores da Camerata e é um dos compositores mais presentes em seu repertório, escreveu uma mensagem de chamada para o concerto, que ocorreu no âmbito das atividades do Festival de Inverno de Campos do Jordão, coordenado por Fábio Zanon (que estava na plateia).
O compositor me autorizou a reproduzi-la:

Em 2009 começamos a montar o projeto Camerata Aberta.
Na cabeça do projeto estávamos eu, Paulo Zuben e Sérgio Kafejian.
Transparência necessária, fizemos o processo seletivo.
O grupo não nasceria do zero, mas herdaria um tanto das experiências de outras iniciativas no domínio da performance da música contemporânea.
A ideia era conseguir sair da prática nem sempre contínua da música contemporânea para ingressar de vez em uma atividade contínua e consistente: os músicos da Camerata teriam contato intenso com músicas recentes, com repertório tradicional, e trabalhariam com regentes internacionais convidados e também especialistas em música nova de modo a construir uma sonoridade própria e dominar o repertório mais recente.
Com os músicos selecionados herdamos muito do Grupo Novo Horizonte, do Piap, do Klangforum Wien, do Ensemble Modern de Frankfurt.
O grupo fez diversas estreias, muito concertos no Brasil e exterior, participou como ensemble em residência do curso de composição de Campos, e ganhou diversos prêmios.
Agora, cinco anos depois, aparentemente o projeto deixou de ser importante para a Secretaria de Cultura.
Os músicos foram demitidos, o coordenador também, mas a agenda 2015 estava parcialmente montada e com isto talvez tenhamos alguns concertos pela frente.
O que ganhamos nestes 5 anos? Os músicos saem desta experiência com um  repertório gigante.
Ensaiar com os músicos da Camerata é uma experiência incrível, vai-se direto à questões musicais, não há dúvidas quanto à leitura de notação nem quanto a sonoridades.
Os músicos da Camerata nestes 5 anos construíram sua sonoridade, encontraram as melhores soluções para as questões de novas técnicas instrumentais.
Dentre as repercussões da Camerata estão diversos grupos musicais que se aderiram ao nome “camerata”; os músicos tem produzido novos músicos, alunos das principais instituições de ensino de São Paulo.
Este concerto, na Sala São Paulo, talvez não venha a ter o impacto dos concertos em 2010 e 2011, quando a Camerata tinha apoio institucional necessário para suas atividades, mas sem dúvida traz a marca Camerata Aberta.
O que esperamos agora é um 
Deus-Ex-Machina
 que desça e reincorpore a Camerata às atividades da Secretaria de Cultura de São Paulo nos moldes do que a Camerata ainda é, com Zuben e Kafejian que conduziram o projeto com rigor e visão face às novas e arrojadas invenções da música instrumental atual.

Silvio Ferraz

O compositor espera uma solução muito comum nas óperas do século XVIII, que servia essencialmente para trazer o lieto fine - depois de enredos cheios de crimes e impasses - esperado pelas audiências.
Haverá um final desses para o desenredo que se abateu sobre o grupo? Trata-se de um tempo difícil para a música - orquestras (que são grupos mais caros do que os conjuntos de câmera) em várias partes do mundo têm dificuldade para se manter; dificuldades como as restrições que os Estados Unidos (um mercado importante) fazem contra a viagem de estrangeiros também afetam os músicos, o que inclui a destruição e a desaparição de instrumentos.
A música, fora de sua industrialização banalizadora, no entanto, mantém seus poderes; como veículo para a paz (esta formação criada por Daniel Barenboim, por exemplo, que congrega judeus e palestinos) e como agente atuante no que Fábio Zanon lembra que é uma das condições para sua atualidade: ser um "processo de ressocialização em cidades que têm uma cisão social muito pronunciada". O melhor exemplo disso vem da América Latina, creio: "El Sistema", na Venezuela, fez 40 anos. Para quem não sabe o que é, leiam e assistam à matéria.
Não é à toa que um dos maiores maestros de hoje, e o melhor de sua geração, seja venezuelano: Gustavo Dudamel. Sua carreira não é milagrosa, embora o gênio tenha sempre algo de acidental. Ele apareceu em uma cultura fomentada pelas instituições: nenhum governante teve a ideia de "descontinuar" o sistema alegando que esses assuntos culturais não têm importância, ou não alegando nada, como ocorreu com a Camerata Aberta.
Trata-se do oposto da filosofia da devastação (que não alcança, claro, o setor financeiro, a que tudo flui no mesmo princípio dos buracos negros) que esconde suas feições com a furada máscara de teoria de gestão.

Adendo em outubro: Não houve outros, mas o concerto que vi foi gravado:
João Pedro Oliveira: https://www.youtube.com/watch?v=Z1o_cvq-28A
Sergio Rodrigo: https://www.youtube.com/watch?v=TKbAjIgy5NE
Silvio Ferraz: https://www.youtube.com/watch?v=hxeglcL-D8A
Aylton Escobar: https://www.youtube.com/watch?v=QvnDRD9GyJI
Sérgio Kafejian: https://www.youtube.com/watch?v=sdUs6Z5kFjE
Alexandre Lunsqui: https://www.youtube.com/watch?v=ddruAv8HSrE

P.S.: Estou lendo a admirável obra do tenor e doutor em História Ian Bostridge sobre um ciclo de Schubert que ele cantou diversas vezes, "Viagem de inverno" (Winterreise), e agora cheguei a esta passagem que eu poderia muito bem ter citado na nota acima; faço-o neste adendo. O livro é Schubert's Winter Journey: Anatomy of an Obsession (New York: Alfred A. Knopf, 2015), e duvido que seja logo traduzido no Brasil:
A música clássica que queremos ouvir em concerto ou na ópera foi produzida em um período em que os custos do trabalho eram relativamente bem mais baixos do que os de hoje. O modelo de produção musical, intensivo em mão de obra, que a música clássica requer - uma orquestra sinfônica de cem indivíduos com formação especializada, por exemplo - significa que as apresentações de música são relativamente mais caras agora do que eram no seu apogeu no século XIX [...] Ao mesmo tempo, assim como bens antes considerados supérfluos hoje se tornaram virtuais necessidades nas democracias liberais, o acesso às artes em toda sua capacidade de questionamento não é mais visto como prerrogativa dos ricos e poderosos, ou mesmo dos burgueses, e sim como parte da cidadania democrática. Isso, no fim, é a justificativa para os subsídios [...] que mantêm as artes tradicionais vivas em uma sociedade capitalista.

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