O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 28 de junho de 2016

Algo como um poema e um livro #ForaTemer

Eu participei, a convite de Ana Rüsche, deste livro de circunstância #ForaTemer (https://www.facebook.com/events/541154726064512/) e logo um editor me acusou de poesia cooptada.


Os organizadores de Golpe Antologia-Manifesto são Rüsche, Carla Kinzo, Lilian Aquino e Steffani Marion. Eis o time de autores:


Ela pode ser baixada nesta ligação. Há vários gêneros no livro, especialmente conto, cartum e poesia. Nem todos os textos foram compostos especificamente para a ocasião, e alguns não tratam especificamente dela. O que fiz é um poema para esta circunstância.






Em desacordo

Pádua Fernandes[1]




I – Entrevista

– O voto importa para o golpe?
– Sim, pois sem voto, não haveria campanha e, sem campanha, não teríamos financiadores. Trata-se de números, como em qualquer democracia representativa. Segue-se que somente pessoas jurídicas têm direitos políticos e, seguindo tecnicamente a gestão do descarte de sobras humanas, governam por meio de seus periódicos prepostos.
– É verdade que a democracia do país está tendo um caso com o golpe?
– Acompanhe as notícias deste casal da tevê nas páginas de política, ou nas de fofoca ou simplesmente nos anúncios dos patrocinadores, sempre a seção mais atualizada.
– Para o golpe, o verde vale?
– Defende a economia verde, isto é, usinas hidrelétricas em áreas indígenas e a ressignificação de bacias hidrográficas por meio de rejeitos de mineração. As paredes das usinas serão pintadas de verde, os rejeitos mudam de cor naturalmente com o tempo, a mudança é o que vale.
– O golpe combate a corrupção?
– Claro, ele soprará sobre ela e com isso encherá arquivamentos, jantares, liminares e outros bonecos infláveis da política.
– O golpe valoriza a política?
– Sim, porque ele a transforma em governabilidade, que tem um espaço duplo: paraísos fiscais e valas anônimas.
– Segundo o golpe, existe golpe?
– Não existe ar para a própria atmosfera, entende? As águas nadam a seco.
– O golpe é de direita ou de esquerda?
– O Estado segue em frente, isso basta.


II – Estrutura da federação


Aqui, onde existia
uma perna, passaram
dois tiros da Guarda
Nacional, não passou
a Ambulância Estadual,
ausentou-se a Maca
Municipal
que teria erguido o corpo
antes que agentes de segurança
pisassem sobre o membro
enfim cortado
para que a fazenda se erguesse
em terras ancestrais.

Nesta fossa, soava
o Discurso Presidencial
na vibração das bombas
Estaduais
sobre os corpos
sem a Licença Municipal
de carregarem
nos punhos
as palavras originárias.

Durante o cartaz
rasgado, nova Medida Municipal
de tempo explodindo
os Relógios Estaduais,
o Calendário
Nacional
é sempre da eleição passada,
durante o cartaz rasgado
e roubado
das mãos futuras.

No entanto,
Ancestral, Originária, ou seja,
Futura,
a federação
das bocas
a calar
os tiros.


III – Escuta e delação

Oi Roliço Tudo bem Delícia Olhe sei que tem umas vagas aí para o meu grupo Ah mas a organizadora é osso duro de roer O que que a [inaudível] está querendo Ela quer critérios claros e transparentes e o seu grupo não se qualifica Posso qualificar oferecendo vaga na [inaudível] da faculdade tem muito seminário Mas é muito pouco Eu sei que o pessoal do tribunal pode oferecer muito mais ajuda de custo que eu mas os eventos da faculdade são mais divertidos Você não entendeu o trampo Não é tão pouco hoje seminário amanhã concurso depois de amanhã chefe de departamento é um investimento como tudo na vida Você não entendeu que ela não está interessada em nada disso ela não quer o seu grupo não se encaixa nos critérios Critério é uma [inaudível] a função social desta verba é ir para a gente não podemos deixar o desvio nas mãos dos desonestos Ela acha que por ser uma antologia de poetas de até 30 anos você não se encaixa Eu tenho duas vezes 30 meu grupo eu mereço o espaço em dobro vamos derrubá-la dizer que ela está desviando o dinheiro oficial Vamos logo afastá-la ela não quis me incluir só porque estou organizando também e tenho uma idade [inaudível] A gente pode ser criativo e dizer que o governo não pode fazer propaganda de opção sexual Boa ideia os progressistas nos ajudam a antologia vai calçar 36 Quanto mesmo estão pagando pela participação nesta [inaudível] [inaudível] Ah rejubilar-me-ei com a porcentagem sobre cada um do meu grupo isto começa a me soar poesia


IV – Alarido

Impasse no passo impedido pelo Internacionalistas em prol do governo que atacou o sistema internacional de direitos Rápido e ríspido raio que O estupro pauta a política na aliança entre a bala e a bíblia A bomba abrindo as bocas da Os sem-terra de mãos dadas com as longas unhas do latifúndio Vento avante o vórtice Queimar favelas o requisito para se esquentar com a cidade e suas verbas Sussurro insidioso dos ossos sob os Corrupção é tudo igual para liderar o governo o homicídio é o diferencial Patinhos pisando a praça pagando o pato dos pactos aparelhados Aplaudiu o massacre de jovens negros premiado com o palácio e negros jovens que lhe baterão continência  Impasse na pauta do raio A merenda furtada quem diria alimentou as festas da justiça Sussurro no vórtice da bomba A aliança entre o boi e o banco deputados que mugem executivos que pastam política Avante o impedimento da praça E se o governo só for isto mesmo a administração de quem cairá amanhã rindo loucamente dos corpos que lhe amortecerão a queda só for isto mesmo a fratura dos discursos a osteoporose do público só for o consenso do protesto com a lápide
– em desacordo todas as palavras são políticas –



[1] Autor, entre outros livros, de Cidadania da bomba e Cálcio, ambos contrários às continuidades do autoritarismo no Brasil e, em especial, aos golpes repetidamente sofridos pelos povos indígenas.
 



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