Entre as obras que analisei, está Carcaça (Rio de Janeiro: 7Letras, 2016), de Josoaldo Lima Rêgo. O livro apresenta poemas de destruição da terra: “Floresta” é “A extinção/ certeira”; “alguém falou de pássaros/ quando devastava a floresta”; “é improvável que reste um rio” (um dos “64 títulos”). A carcaça que dá título ao livro, porém, continua a lutar, e ele termina com um animal extinto, do outro lado do planeta, pela colonização: o Tilacino, o Tigre da Tasmânia. Mesmo “extinto”, “manda lembranças”, e ecoa o primeiro poema, que tem por título a exclamação de Cunhambebe a Hans Staden, “Jauára ichê” (sou um tigre), em justificativa da antropofagia.
A poesia de Josoaldo Lima Rêgo apresenta explicitamente um perfil descolonial. O poema “Torres-García” parte da obra em que o artista uruguaio homônimo inverte a posição da América do Sul no mapa-múndi, realizando uma operação geopolítica e geopoética de inversão do norte, hemisfério do colonizador; Torres-García faz algo de semelhante também na afirmação dos povos originários americanos em obras como “Indoamérica”.
Em Carcaça, os povos originários também aparecem em vários momentos. Eusébio Kaapor, líder indígena assassinado perto de Santa Luzia do Paruá (no Maranhão) em 2015, provavelmente em razão da luta contra a exploração ilegal de madeira em terras indígenas, foi assimilado por Josoaldo Lima Rêgo à própria natureza devastada por meio da razão instrumental, em um dos mais impressionantes poemas do livro: “um rio morre assim, eusébio, com pólvora e razão nas entranhas” (“Eusébio”).
Este livro, porém, aprecia os cientistas ou teóricos que foram para o sul, como Goethe na Itália, ou que simplesmente desapareceram: é o caso de Ettore Majorana (no poema "Quando um italiano desaparece"), o físico italiano que sumiu antes de colaborar em programas de pesquisa colaborativa entre a Itália fascista e a Alemanha nazista.
Os poemas, em geral, são curtos e se esclarecem no conjunto; trata-se de um poeta que escreveu antes um livro do que uma coletânea de poesias (nesse aspecto, Carcaça é bem diferente de Paisagens possíveis, livro do mesmo autor publicado pela 7Letras em 2010, que apresenta um tratamento mais convencional dos espaços geográficos e poéticos). Destaco um poema sobre colonialismo interno, “Nos baixões de Altamira”, que cito integralmente:
em altamira/pa
raimundo nonato decide
matar o tempo:
dança no escuro
e arranca 4 dentes à foice
sem paz
ao som duma turbina
de hidroelétrica
A referência é muito clara: trata-se da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira, no Pará, projeto desenvolvimentista da ditadura militar (um regime genocida contra os povos indígenas) que os generais não conseguiram implementar, e se tornou uma colossal ilegalidade ambiental (objeto de investigação por desvios de dinheiro público para empreiteiras) conduzida nos governos de Lula e Dilma Rousseff e referendada por suspensões de liminares no Supremo Tribunal Federal. Esse monumento do progresso, isto é, da devastação, um dos maiores exemplos de conflitos socioambientais do mundo, afeta terras indígenas e comunidades tradicionais.
Hidrelétrica e foice: a turbina da Usina ressoa a morte. Chama-se Raimundo Nonato uma comunidade alagada pela obra, no momento sendo defendida pela Defensoria Pública em razão das indenizações não recebidas. Vários habitantes da região têm o mesmo nome, e isso se deve ao santo espanhol, que viveu no século XIII e foi chamado de não-nascido (nonato) porque foi tirado do ventre de sua mãe já morta.
Um nascimento que implica morte, imagem apropriadíssima para a construção desse empreendimento colonizador na Amazônia. Trata-se, praticamente, do oposto que realiza este livro, em que os mortos pelo progresso levantam-se para inverter o mundo.
Mostra-o o final deste poema, que tem como título seus dois últimos versos:
Hidrelétrica e foice: a turbina da Usina ressoa a morte. Chama-se Raimundo Nonato uma comunidade alagada pela obra, no momento sendo defendida pela Defensoria Pública em razão das indenizações não recebidas. Vários habitantes da região têm o mesmo nome, e isso se deve ao santo espanhol, que viveu no século XIII e foi chamado de não-nascido (nonato) porque foi tirado do ventre de sua mãe já morta.
Um nascimento que implica morte, imagem apropriadíssima para a construção desse empreendimento colonizador na Amazônia. Trata-se, praticamente, do oposto que realiza este livro, em que os mortos pelo progresso levantam-se para inverter o mundo.
Mostra-o o final deste poema, que tem como título seus dois últimos versos:
O trabalho, a estradaO que significa "explodem" nesse trecho? Como nos canaviais concentra-se boa parte do trabalho em condições análogas à escravidão (ou escravidão contemporânea) no Brasil, e nessa atividade ocorrem mortes por esforço (além de exploração do trabalho de menores), pode-se pensar que esses garotos morreram porque o século XVI custa a acabar no Brasil.
No bagaço da cana
No sumiço das falas
Dois garotos explodem
no calor do canavial
Essa explosão também pode ser lida como um gesto de revolta, o que é compatível com o início do poema: "No vidro quebrado da janela/ do quarto", que talvez aponte para uma fuga.
A riqueza desta poesia faz com que as duas leituras não sejam excludentes: neste espaço invertido, reinventado, os mortos ainda podem rebelar-se.
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